INTERCULTURALIDADE COMO POLÍTICA EDUCATIVA
Resumo: Em muitos países latino-americanos, a partir da década de 1990, ocorreram processos de reforma na educação com vistas à equidade social e a implementação de políticas voltadas para a promoção da educação para os mais necessitados. Contudo, o maior desafio para a promoção da equidade em educação é a desigualdade social e o investimento na educação básica para melhoria da qualidade na escola. O presente artigo analisa a questão da interculturalidade como política educativa. Discute-se a relação entre modernidade e colonialidade, a dimensão politico-pedagógica latino-americana e o próprio conceito de interculturalidade para, por fim, apontar desafios para a política educativa na atual conjuntura.
Palavras-chaves: interculturalidade; política educativa; colonialidade.
"(...) é tempo de aprendermos a nos libertar do espelho eurocêntrico onde nossa imagem é sempre, necessariamente, distorcida. É tempo, enfim, de deixar de ser o que não somos" (Quijano, 2008, p.139)
O presente artigo pretende analisar a questão da interculturalidade como política educativa. Para tanto, discute-se a relação entre modernidade e colonialidade, a dimensão politico-pedagógica latino-americana e o próprio conceito de interculturalidade para, por fim, apontar desafios para a política educativa na atual conjuntura.
Parte-se do princípio de que muito se tem falado da necessidade de melhoria na qualidade da educação. As questões relativas à baixa qualidade têm sido ressaltadas pela divulgação dos resultados de avaliações em larga escala que demonstram como vão as escolas públicas e os sistemas escolares, não somente no contexto brasileiro, mas também em outros países latino-americanos. Tal situação tem demandado ações governamentais que apontam para mudança ainda necessárias.
É interessante perceber que a preocupação com a qualidade do ensino ofertado tem relação direta com o desempenho dos estudantes, que é verificado por avaliações tanto interna como externa à escola na busca por uma educação de qualidade.
No contexto de um Estado avaliador (BARROSO, 2005), como modelo de regulação pós-burocrático do sistema de ensino, que surgem a partir das reformas neoliberais dos anos 1990. Constata-se, assim, como a meritocracia tem fundamentado a noção de conhecimento escolar e como a questão da qualidade da educação assumiu centralidade por meio de políticas de avaliação.
A discussão sobre a qualidade da educação põe no centro das políticas educacionais a avaliação e esta, por sua vez, retira o foco do debate sobre o direito e orienta seus sentidos na racionalidade administrativa que persegue a eficiência a qualquer preço. Em meio à busca de resultados, vai se perdendo no processo a construção histórica da educação como um bem público, um direito social e que, como tal, não pode ser regulada como mercadoria, produto ou resultado passível de mensuração (OLIVEIRA, 2014, p.83).
Nesse sentido, resultados de avaliações de habilidades por meio de provas escritas não servem como parâmetro de resultados educacionais, pois qualquer nível de resultado que seja estipulado é passível de ser questionado. Metas não podem ser impostas facilmente à educação dessa maneira, o que se deve, em parte, à natureza intrinsecamente imprevisível da educação. Em lugar dos resultados da aprendizagem, deve-se dar atenção aos processos educacionais nos quais os alunos se engajam. Ao contrário de se determinar resultados específicos previamente, o foco nos processos evidencia vários conhecimentos, habilidades e valores significativos nas práticas educativas. “O direito à educação, nesse caso, seria, por exemplo, o engajamento em processos de desenvolvimento da alfabetização, e não a conquista de um nível específico de alfabetização” (MCCOWAN, 2011, p.15).
A propósito disso, é curioso perceber como estão comuns em situações do cotidiano a divulgação de relatos de experiências consideradas exitosas e até mesmo o uso de expressões que remetem à “educação de primeiro mundo” como sinônimo de uma educação de boa qualidade. Tal situação revela o imaginário de que uma boa escola está nos países europeus e nos Estados Unidos (extensão da Europa) numa lógica de reprodução cultural, política e epistêmica dos países centrais. Dessa forma, vai constituindo também uma geopolítica moderno-colonial da educação, chamada por Silva (2013) de “uma espécie de divisão mundial da educação, ou melhor, do sistema educacional”.
Para o autor, essa geopolítica moderno-colonial da educação é alicerçada na Colonialidade. E a escola é uma das principais instituições moderno-colonial.
Na Modernidade todos e todas têm que ir a escola. Hoje em dia os sujeitos ingressam no sistema de ensino mais cedo e passam mais tempo, aliás passam toda vida com a ideia de formação continuada. Como a lógica predominante que move, estrutura e materializa a escola é da Colonialidade, há uma contínua força de conformação dos sujeitos aos interesses da sociedade moderna/capitalista/colonial. (SILVA, 2013, p. 8).
MODERNIDADE E COLONIALIDADE
Dussel (2005) opõe-se à interpretação hegemônica no que se refere à interpretação da Europa Moderna, pois a modernidade seria uma invenção ideológica. O autor apresenta dois conceitos de “modernidade”. O primeiro deles é eurocêntrico, provinciano e regional. “A modernidade é uma emancipação, uma saída da imaturidade por um esforço da razão como processo crítico, que proporciona à humanidade um novo desenvolvimento de ser humano” (p.27). O segundo conceito diz respeito à modernidade num sentido mundial, onde empiricamente nunca houve História Mundial até 1492. “Esta Europa Moderna, desde 1492, ‘centro’ da História Mundial, constituiu, pela primeira vez na história, a todas as outras culturas como sua ‘periferia’ ” (DUSSEL, 2005, p.27).
Segundo o autor, se a Modernidade tem um núcleo racional, “como saída da humanidade de um estado de imaturidade regional, provinciana, não planetária, essa mesma Modernidade” (p. 29), por outro lado, realiza um processo irracional que “se oculta a seus próprios olhos. Ou seja, por seu conteúdo secundário e negativo mítico, a Modernidade é justificativa de uma práxis irracional de violência” (p.29). E assim o autor descreve o mito:
1. A civilização moderna autodescreve-se como mais desenvolvida e superior (o que significa sustentar inconscientemente uma posição eurocêntrica).
2. A superioridade obriga a desenvolver os mais primitivos, bárbaros, rudes, como exigência moral.
3. O caminho de tal processo educativo de desenvolvimento deve ser aquele seguido pela Europa (é, de fato, um desenvolvimento unilinear e à europeia o que determina, novamente de modo inconsciente, a falácia desenvolvimentista).
4. Como o bárbaro se opõe ao processo civilizador, a práxis moderna deve exercer em último caso a violência, se necessário for, para destruir os obstáculos dessa modernização (a guerra justa colonial).
5. Esta dominação produz vítimas (de muitas e variadas maneiras), violência que é interpretada como um ato inevitável, e com o sentido quase-ritual de sacrifício; o herói civilizador reveste a suas próprias vítimas da condição de serem holocaustos de um sacrifício salvador (o índio colonizado, o escravo africano, a mulher, a destruição ecológica, etcetera).
6. Para o moderno, o bárbaro tem uma culpa (por opor-se ao processo civilizador) que permite à Modernidade apresentar-se não apenas como inocente mas como emancipadora dessa culpa de suas próprias vítimas.
7. Por último, e pelo caráter civilizatório da Modernidade, interpretam-se como inevitáveis os sofrimentos ou sacrifícios (os custos) da modernização dos outros povos atrasados (imaturos)17, das outras raças escravizáveis, do outro sexo por ser frágil, etcetera (p.29)
De acordo com Quijano (2005), o advento do colonialismo-colonização do Novo Mundo tem alicerce na racialização e na racionalização da sociedade. O processo de racialização impôs uma classificação humana em três raças: brancos, índios e negros. Essa é uma classificação hierárquica na qual os brancos europeus são o sujeito superior que produz cultura, ciência e civilidade; já os índios são sujeito intermediário servil e os negros são sujeito inferior escravo, sendo que ambos os grupos não considerados produtores de cultura, ciência e civilidade (SILVA, 2013).
Quijano (2007) apresenta três eixos constitutivos da colonialidade. O primeiro é a Colonialidade do Poder que se refere à imposição da classificação e da hierarquização racial da sociedade, se estendendo às relações de gênero, de trabalho, de religião etc.
Assim se define, com uma conotação de naturalidade, os vários tipos de classificação e de exploração necessários e alicerçantes da sociedade moderna capitalista: patriarcado - classificação-exploração de gênero; urbanocentrismo - classificação-exploração territorial; heterocentrismo - classificação-exploração sexual; etnocentrismo - classificação-exploração étnica, entre outras classificações-explorações. (SILVA, 2013, p. 5-6).
O segundo eixo é a Colonialidade do Ser que se refere à interiorização da condição de inferior pelos povos subalternizados e a aceitação da condição de superioridade dos povos colonizadores.
A Colonialidade do Ser é um fenômeno individual e coletivo, tanto atinge o sujeito como o grupo a que pertence, com isso essa Colonialidade tem uma falsa legitimidade, alcançando as subjetividades em diversos níveis de (auto) percepção de valores socioculturais e de referências ontológicas. Essa dimensão da Colonialidade é a construção de uma cultura naturalizada de classificação e de hierarquização dos sujeitos que é incorporada pelos grupos e seus respectivos membros (SILVA, 2013, p. 6).
O terceiro eixo é a Colonialidade do Saber que se refere à imposição de uma única epistemologia válida: a eurocêntrica que sustentou e sustenta as ciências modernas e suas derivações como é o caso dos currículos escolares, ou melhor, da seleção, da organização e da materialização dos conteúdos escolares (conhecimentos, valores, crenças, costumes, atitudes).
A Colonialidade do Saber é fundamental para justificar a superioridade dos colonizadores e inibir/impedir a crítica da condição de superioridade e dos mecanismos de controle social, epistêmico e civilizatório. Esse eixo da Colonialidade faz com que o subalternizado além de não ser considerado sujeito de direito também não possa assumir a condição de sujeito epistêmico, enquanto aquele que tem a prerrogativa de produzir conhecimento válido (SILVA, 2013, p. 6).
Walsh (2008) acrescenta o eixo da Colonialidade da Natureza que representa a cisão radical que a modernidade produziu entre o ser humano e a natureza. Essa cisão serviu e serve para justificar sua exploração exacerbada da natureza em função dos interesses dos colonizadores em princípio e, posteriormente, do capitalismo enquanto modelo econômico-societal mundial.
Com essa separação também se cria uma hierarquia entre o ser humano explorador(sujeito de direito) e a natureza a ser explorada juntamente com os sujeitos de favor. A natureza também é desinstituída da condição de ser para assumir um posição do não-ser e virar meramente objeto de exploração juntamente com os sujeitos de favor (SILVA, 2013, p. 6).
Para Walsh,
a colonialidade da natureza encuentra su base en la división binaria naturaleza/sociedad, descartando lo mágico-espiritual-social, la relación milenaria entre mundos biofísicos, humanos y espirituales, incluyendo el de los ancestros, la que da sustento a los sistemas integrales de vida y a la humanidad misma (2008, p. 138).
Nessa perspectiva, os Estudos Pós-coloniais Latino-americanos, como aponta Silva (2013), surgem nas Américas nos pensamentos e nas práticas sociais indígenas e afro-caribenhos, dialogando com os movimentos de descolonização na Ásia e na África. Tendo como pressuposto que a Europa é uma invenção feita meio da invasão da denominada hoje de América Latina que deu base para a construção de uma matriz de poder mundial de dominação.
A DIMENSÃO POLÍTICO-PEDAGÓGICA LATINO-AMERICANA
Oliveira (2014), ao discutir sobre o movimento pedagógico latino-americano, considera importante uma retomada das propostas educativas, haja vista que as reformas neoliberais dos anos 1990 orientaram as demandas do campo educativo para a luta em defesa do direto à educação, na gratuidade do ensino, no acesso à escola e na preservação de estruturas. Perdeu-se, assim, a centralidade das teorias pedagógicas e da produção e difusão do conhecimento escolar.
A autora, ao tratar da proposta de construção político-pedagógica latino-americana, aponta como possibilidade a recuperação dos aportes pedagógicos da região (de Simón Rodriguez a Paulo Freire) e a importância de se aprofundar no movimento estudantil e com as organizações comprometidas com a defesa da educação pública, como direito social. Além disso, destaca alguns eixos do movimento pedagógico latino-americano:
Integração regional com sentido anti-imperialista; a multiculturalidade e o respeito à diversidade; a articulação das escolas com as organizações de bairro; a escola como centro cívico cultural e comunitário; uma prática pedagógica e didática que se fundamente na construção crítica e democrática do conhecimento enraizado na identidade e realidade latino-americana e caribenha; condições para que seja possível o trabalho docente e interdisciplinário, recuperando o controle das trabalhadoras e trabalhadores sobre o processo educativo; a avaliação dos processos educativos concebida de maneira integral, institucional, participativa, sistemática, formativa, diagnóstica e não punitiva. (OLIVEIRA, 2014, p. 78)
Logo, propõe o resgate da singularidade do sujeito latino-americano, colocando no centro do debate das políticas educativas as propostas pedagógicas, o lugar do conhecimento e a prática e o conteúdo na definição dos currículos.
Candau e Russo (2010) enfatizam que as políticas públicas na área educativa precisam contemplar as diferenças culturais e propõe a perspectiva intercultural como um dos eixos articuladores dos currículos escolares. Para as autoras a interculturalidade é concebida como uma estratégia ética, política e epistêmica.
Nesta perspectiva, os processos educativos são fundamentais. Por meio deles questiona-se a colonialidade presente na sociedade e na educação, desvela-se o racismo e a racialização das relações, promove-se o reconhecimento de diversos saberes e o diálogo entre diferentes conhecimentos, combate-se as diferentes formas de desumanização, estimula-se a construção de identidades culturais e o empoderamento de pessoas e grupos excluídos, favorecendo processos coletivos na perspectiva de projetos de vida pessoal e de sociedades “outras”. (CANDAU e RUSSO, 2010, p. 166).
Contudo, as autoras destacam que há ambiguidades nesse processo caso o aspecto funcional da interculturalidade seja enfatizado. Há fragilidade quando a educação intercultural é orientada para determinados grupos étnicos, em geral, indígenas, e não é incorporada de modo consistente nos processos educativos oferecidos efetivamente a toda a população. Nesse sentido, a perspectiva intercultural no âmbito educativo não pode ser reduzida a uma mera incorporação de alguns temas no currículo e no calendário escolar.
Trata-se, de modo especial, da perspectiva crítica, que consideramos ser a que melhor responde à problemática atual do continente latino-americano, de uma abordagem que abarca diferentes âmbitos - ético, epistemológico e político -, orientada à construção de democracias em que justiça social e cultural sejam trabalhadas de modo articulado. O que está em questão atualmente, quando aprofundamos o debate sobre a interculturalidade na América Latina e a própria possibilidade de construção de estados pluriétnicos, plurilinguísticos e, inclusive, plurinacionais, assim como o reconhecimento, construção e diálogo entre diferentes saberes e a afirmação de uma ética na qual diferença cultural, a justiça, a solidariedade e a capacidade de construir juntos se articulem. (CANDAU e RUSSO, 2010, p. 167)
A INTERCULTURALIDADE
A partir dos anos de 1990 houve na América Latina uma nova atenção à diversidade étnico-cultural, resultado de reconhecimentos jurídicos e de uma necessidade cada vez maior de promover relações positivas entre distintos grupos culturais, de confrontar a discriminação, o racismo e a exclusão, de formar cidadãos conscientes das diferenças e capazes de trabalhar conjuntamente no desenvolvimento do país e na construção de uma sociedade justa, equitativa, igualitária e plural. Segundo Walsh (2004) a interculturalidade se inscreve neste esforço em três perspectivas distintas.
A primeira perspectiva é a interculturalidade relacional que faz referência da forma mais básica e geral ao contato e intercâmbio entre culturas, isto é, entre pessoas, práticas, saberes, valores e tradições culturais distintas, as quais poderiam dar-se em condições de igualdade ou desigualdade.
Desta maneira, se assume que a interculturalidade é algo que sempre existiu na América Latina pois sempre existiu aqui o contato e a relação entre os povos indígenas e afrodescendentes, por exemplo, e a sociedade branco-mestiça crioula, do que poderia ser conhecida a evidência na própria mestiçagem, nos sincretismos e nas transculturações que são parte central da história e “natureza” latino-americana-caribenha. (p. 2).
Walsh (2004) afirma que o limite desta perspectiva é o ocultamento ou minimização da conflitividade e dos contextos de poder, dominação e colonialidade contínua. Da mesma forma, limita a interculturalidade ao contato e à relação – muitas vezes somente individual –, encobrindo ou deixando de lado as estruturas da sociedade – sociais, políticas, econômicas e também epistêmicas – que põem a diferença cultural em termos de superioridade e inferioridade.
A segunda perspectiva é a interculturalidade funcional, que reconhece diversidade e diferença culturais, visando a inclusão desta no interior da estrutura social estabelecida. Esta busca promover o diálogo, a convivência e a tolerância. Contudo, tem-se uma lógica que reconhece a diferença, sustentando sua produção e administração dentro da ordem nacional, neutralizando-a e tornando-a funcional a esta ordem e, assim, aos ditames do sistema-mundo e à expansão do neoliberalismo.
Neste sentido, o reconhecimento e o respeito à diversidade cultural se converteram em uma nova estratégia de dominação, que aponta não para a criação de sociedades mais equitativas e igualitárias, mas ao controle do conflito étnico e à conservação da estabilidade social com a finalidade de impulsionar os imperativos econômicos do modelo (neoliberalizado) de acumulação capitalista, agora “incluindo” os grupos historicamente excluídos em seu interior. Sem dúvida, como discutiremos adiante, a onda de reformas educativas e constitucionais dos anos 90 – as quais reconhecem o caráter multiétnico e plurilinguístico dos países e introduzem políticas específicas para os indígenas e afrodescendentes – são parte desta lógica multiculturalista e funcional (p. 2).
A terceira perspectiva, assumida pela autora, é a da interculturalidade crítica. Com esta perspectiva, tem-se como ponto de partida o problema estrutural-colonial-racial. A interculturalidade passa a ser entendida como uma ferramenta, como um processo e projeto que se constrói demanda da subalternidade. Aponta e requer a transformação das estruturas, instituições e relações sociais, e a construção de condições de estar, ser, pensar, conhecer, aprender, sentir e viver distintas.
A interculturalidade entendida criticamente ainda não existe, é algo por construir. Por isso, se entende como uma estratégia, ação e processo permanentes de relação e negociação entre, em condições de respeito, legitimidade, simetria, equidade e igualdade. Porém, ainda mais importantes, é seu entendimento, construção e posicionamento como projeto político, social, ético e epistêmico - de saberes e conhecimentos-, que afirma a necessidade de mudar não só as relações, mas também as estruturas, condições e dispositivos de poder que mantêm a desigualdade, inferiorização, racialização e discriminação. Por tanto, seu projeto não é simplesmente reconhecer, tolerar ou incorporar o diferente dentro da matriz e estruturas estabelecidas. Pelo contrário, é implodir – a partir da diferença - as estruturas coloniais do poder como desafio, proposta, processo e projeto; é re-conceitualizar e re-fundar estruturas sociais, epistêmicas e de existências que põem em cena e em relação equitativa lógicas, práticas e modos culturais diversos de pensar, atuar e viver. (Walsh, 2004, p. 3).
Por isso, o foco problemático da interculturalidade não reside somente nas populações indígenas e afrodescendentes. E necessário compreender a interculturalidade como uma proposta de sociedade, como projeto político, social, epistêmico e ético dirigido à transformação estrutural e sócio-histórica, agindo em cada instância social, política, educativa e humana.
Sobre as políticas educativas emergentes no século XXI, Walsh (2004) aponta dois eixos de mudança. O primeiro se refere aos vínculos crescentes entre educação e “desenvolvimento humano integral” a fim de melhorar a qualidade de vida e o nível de bem-estar do ser humano em escala individual e social, potencializando a equidade, o protagonismo, a democracia, a proteção dos recursos naturais e o respeito à diversidade étnico-cultural. O segundo eixo de mudança, diz respeito às novas políticas que tratam de proteger uma educação universal, única e diversa para alcançar a igualdade e incorporar plenamente a diversidade.
A interculturalidade crítica deve ser entendida como uma ferramenta pedagógica, que põe em questionamento contínuo a racialização, subalternização e inferiorização e seus padrões de poder, torna visíveis maneiras distintas de ser, viver e saber, e busca o desenvolvimento e criação de compreensões e condições que não só articulam e fazem dialogar as diferenças num marco de legitimidade, dignidade, igualdade, equidade e respeito, mas que também – por sua vez – alentam a criação de modos “outros” de pensar, ser, estar, aprender, ensinar, sonhar e viver, que cruzam fronteiras. (Walsh, 2004, p.11)
Assim, para a autora, a interculturalidade crítica e a descolonialidade, neste sentido, “são projetos, processos e lutas - políticas, sociais, epistêmicas e éticas - que se entrelaçam conceitual e pedagogicamente, alentando uma força, iniciativa e agência ético-moral que fazem questionar, transtornar, sacudir, rearmar e construir” (p. 11). Tal dimensão é chamada por Walsh de pedagogia descolonial.
De fato, essas perspectivas se aliam com as da chamada pedagogia crítica, iniciada por Paulo Freire nos anos 60 e retomada por muitos educadores e ativistas-intelectuais do mundo até os anos 90, quando se iniciou seu declínio. “Isto coincide com o auge do projeto neoliberal, a quase desaparição de uma agência e projeto da esquerda, e o conservadorismo crescente das universidades (...) assim como da instituição de educação em sua totalidade” (Walsh, 2004, p.11).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em muitos países latino-americanos, a partir da década de 1990, ocorreram processos de reforma na educação com vistas à equidade social e a implementação de políticas voltadas para a promoção da educação para os mais necessitados. Os afrodescendentes, os indígenas, as populações mais afastadas no meio rural, dentre tantos grupos populacionais em condições de pobreza, os portadores de deficiência passaram a ser contemplados nas políticas educacionais mais recentes. Contudo, o maior desafio para a promoção da equidade em educação é a desigualdade social e o investimento na educação básica para melhoria da qualidade na escola (OLIVEIRA, 2013).
Miglievich-Ribeiro (2014) afirma que “a cosmovisão moderna pecou ao se considerar sinônimo de conhecimento único, verdadeiro, universal, esquecendo se tratar de uma cosmovisão dentre outras” (p. 11).
O principal desafio ético-político-epistemológico trazido pela razão decolonial é a consciência da geopolítica do conhecimento, a partir da qual se trata de rejeitar a crença iluminista na transparência da linguagem em prol de uma fratura epistemológica capaz de inserir uma perspectiva inédita e libertadora tanto no campo discursivo como na esfera da ação, assumindo a impossibilidade de qualquer ciência falar em nome de coletividades heterogêneas e multifacetadas mas a premência de se insurgir contra quaisquer estruturas de poder e opressão que silenciem alguém (MIGLIEVICH-RIBEIRO, 2014, p.11).
Na atual conjuntura, revisar as epistemologias modernas nas distintas áreas do conhecimento torna-se um desafio teórico, ético e político. Ballestrin (2012) afirma que a discussão decolonial entrou tardiamente nas Ciências Humanas brasileira. E que a Ciência Política é a mais afastada e distanciada do pós-colonialismo em suas diferentes manifestações, não somente no Brasil, mas também na América Latina e no mundo. Sendo assim, é importante que a Ciência Política dialogue com o argumento pós-colonial a fim de suprir a ausência de reflexão sobre sua própria epistemologia e o receio em relação aos excessos de “normatividade”.
Faz-se necessário também compreender a pluralidade do movimento pedagógico latino-americano bem como interpelar as políticas públicas e os trabalhadores da educação em suas práticas cotidianas no sentido de constituição de uma identidade regional, recuperando o controle docente sobre o processo educativo e sua avaliação de maneira integral, participativa, sistemática, formativa, diagnóstica e não punitiva. Enfim, é necessário resgatar a educação pública como um direito social, trazendo de volta a centralidade das teorias pedagógicas no projeto latino-americano de educação. (OLIVEIRA, 2014).
Recordando Bourdieu (1983), o campo social, como outro qualquer, é um lugar de luta com suas relações de força, estratégias, interesses, mas onde todas essas invariantes revestem-se de formas específicas.
REFERÊNCIAS
BALLESTRIN, Luciana. O giro decolonial e a América Latina. In: 36 ANPOCS, 2012, Águas de Lindóia. 36 Encontro Anual da ANPOCS, 2012.
BARROSO, João. O Estado, a educação e a regulação das políticas públicas. Educação & Sociedade. Out 2005, vol.26, nº 92, p.725-751.
BOURDIEU, Pierre. O Campo Científico. In: Ortiz, Renato (org.) Bourdieu – Sociologia. Coleção Grandes Cientistas Sociais, vol. 39, Editora Ática, São Paulo, 1983.
CANDAU, Vera Maria Ferrão; RUSSO, Kelly. Interculturalidade e educação na América Latina: uma educação plural, original e complexa. Revista Diálogo Educacional, v. 10, n. 29, p. 151-169, jan./abr. 2010.
DUSSEL, Enrique. Europa, modernidad y eurocentrismo. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais perspectivas latinoamericanas. Edgardo Lander (org). Colección Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. setembro 2005.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. LANDER, Edgardo (org). Buenos Aires: Conselho Latino-americano de Ciências Sociais -CLACSO, 2005
QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del Poder y Clasificación Social. In: CASTRO-GÓMEZ, S.; GROSFOGUEL, R. (Org.). El Giro Decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores; Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Pontificia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007, p. 93-126.
QUIJANO, A. Colonialidade do Poder, Eurocentrismo e América Latina. In: ROSENMANN, M. R. Pensar América Latina: el desarrollo de la sociología latinoamericana. Buenos Aires, Clacso, 2008.
McCOWAN, Tristan. O direito universal à educação: silêncios, riscos e possibilidades. Praxis Educativa. Universidade de Ponta Grossa, v.6, n°1, jan-jun, 2011.
OLIVEIRA, Dalila Andrade; ARAUJO, Heleno. Profissionais da educação: a valorização do trabalho docente na última década. In: Pablo Gentili. Política educacional, cidadania e conquistas democráticas. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2013.
OLIVEIRA, Dalila Andrade. Os docentes e o movimento pedagógico latino-americano. In: Dalila Andrade Oliveira; Myriam Feldfeber. (Org.). Políticas educativas para América Latina: praxis docente y transformación social. Lima: Fondo Editorial UCH, 2014, p. 65-85.
MIGLIEVICH-RIBEIRO, Adelia. Por uma Razão Decolonial: Desafios Ético-político-epistemológicos à cosmovisão moderna. In: Civitas, Porto Alegre, v. 14, n. 1, p. 66-80, jan-abr. 2014.
SILVA, Janssen Felipe da. Geopolítica da educação: tensões entre o global e local na perspectiva dos Estudos Pós-Coloniais Latino-Americanos. XXI Encontro de Pesquisa Educacional do Norte e do Nordeste, Recife, 2013.
WALSH, Catherine. Interculturalidade crítica e educação intercultural. Consejo Regional Indígena de Cauca, Colômbia, 2004.
WALSH, Catherine. “Interculturalidad crítica y pedagogía de-colonial: In-surgir, re-existir y re-vivir,” Entrepalabras. Revista de Educación en el Lenguaje, la Literatura y la Oralidad (La Paz: Universidad Mayor San Andrés), Nos. 3-4, Feb. 2010.