DIREITO DE APRENDER: COMPROMISSO TODOS PELA EDUCAÇÃO E PROGAMA MAIS EDUCAÇÃO

Resumo: No artigo, analisa-se o Compromisso Todos Pela Educação e o Programa Mais Educação a partir das contribuições teóricas do Ciclo de Políticas de Ball e Bowe, através dos estudos de Mainardes e da análise do discurso de Fairclough. O foco está na compreensão e no registro de discursos hegemônicos do Todos Pela Educação (TPE) encontrados nos documentos orientadores do Programa Mais Educação (PME). Para exemplificar essas variedades discursivas foi empreendida a análise de um documento em particular, o Rede de Aprendizagens (2009). Essa análise revela uma incongruência de ideias na política educacional brasileira que se mesclam na construção de um discurso de foco na aprendizagem.

Palavras-chave: Política educacional; Todos Pela Educação; Programa Mais Educação


INTRODUÇÃO: O TODOS PELA EDUCAÇÃO (TPE) E O PROGRAMA MAIS EDUCAÇÃO (PME)

O PME instituído pelas Portarias Normativas Interministeriais nº 17 e nº 19, de 24 de abril de 2007 é uma das inúmeras políticas desenvolvidas no contexto federal no bojo do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) que, por sua vez, encontra-se articulado ao Plano de Aceleração e Crescimento (PAC) e ao Compromisso Todos Pela Educação.

Entre as 28 diretrizes estabelecidas no Decreto Federal n. 6.094/2007 que institui o Compromisso Todos pela Educação, no artigo 2.º, na 1.ª meta, encontra-se o objetivo: “estabelecer como foco a aprendizagem, apontando resultados concretos a atingir”. (BRASIL, 2008c). A meta em questão estabelece o grande tema, o ideal a ser buscado na educação nacional. Segundo Camini (2010), o Todos pela Educação retoma alguns acordos e compromissos já assinados, anteriormente, pelo Brasil, como é o caso da Semana Nacional de Educação para Todos em 1993, do Compromisso Nacional de Educação para Todos em 1994, da Conferência Nacional de Educação para Todos em 1994 em Brasília, a qual resultou no Acordo Nacional de Educação para Todos.

O Compromisso Todos Pela Educação é fruto das demandas do Movimento Todos Pela Educação (TPE). Esse movimento tem origem nas articulações realizadas há vários anos no país pelos empresários de forma desarticulada. Em 2005, pela primeira vez de forma orgânica, esse segmento consegue se organizar e criar o TPE. A justificativa para a criação da organização do movimento é a má qualidade da educação brasileira para a capacidade competitiva.

Fundado em 2006, o Todos Pela Educação é um movimento da sociedade civil brasileira que tem a missão de contribuir para que até 2022, ano do bicentenário da independência do Brasil, o país assegure a todas as crianças e jovens o direito a Educação Básica de qualidade. Apartidário e plural, congrega representantes de diferentes setores da sociedade, como gestores públicos, educadores, pais, alunos, pesquisadores, profissionais da imprensa, empresários e todas as pessoas ou organizações sociais que são comprometidas com a garantia do direito a uma Educação de qualidade. (BRASIL, 2008c).

Essa intrínseca relação entre o Movimento Todos Pela Educação, Compromisso Todos Pela Educação e PDE pode ser encontrada e percebida na grande variedade de programas desenvolvidos pelo governo federal e nesse caso em particular no PME.

Um aspecto significativo é a referência ao bicentenário da independência como data para atingir as metas previstas pelo TPE. Shiroma, Garcia e Campos (2011) registram que essa não é uma exclusividade do TPE, mas sim uma demanda da Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI), a partir de um amplo programa de reformas educativas no continente, conforme documento disponibilizado pelo título: Metas Educativas 2021: La educación que queremos para La generación de lós bicentenários (2009). (METAS EDUCATIVAS, 2014).

Dessa forma, a análise de metas, documentos e políticas no Brasil permite constatar uma série de aspectos priorizados por organismos multilaterais e de classe. Para análise desses processos, recorremos ao Ciclo de políticas de Ball e Bowe (1992), com base nos estudos de Mainardes (2006), e Mainardes e Marcondes (2009), para compreendermos as relações e a trajetória da política de educação integral presente no PME. A abordagem do ciclo de políticas é um modelo analítico para pesquisar, pensar e compreender políticas educacionais que oferece uma estrutura conceitual, tornando possível construir a trajetória da política desde seu contexto de elaboração até o contexto dos resultados e efeitos. Para Ball,

O ciclo de políticas não tem a intenção de ser uma descrição das políticas, é uma maneira de pensar as políticas e saber como elas são ‘feitas’, usando alguns conceitos que são diferentes dos tradicionais como, por exemplo, o de atuação ou encenação (enactment). (MAINARDES; MARCONDES, 2009, p. 305).

Mainardes (2012) oferece uma retrospectiva do caminho percorrido por Ball e Bowe na concepção da abordagem que se origina em 1992, quando os autores concebem e descrevem os contextos da influência, da produção do texto e da prática. Em 1994, Ball reatualiza a abordagem e acrescenta outros dois contextos: o dos resultados/efeitos e o da estratégia política. Em entrevista a Mainardes e Marcondes (2009), Ball registra ter repensando sua abordagem, sinalizando que o contexto dos resultados/efeitos pode ser percebido no contexto da prática, e que o contexto da estratégia/ação política pode ser percebido no contexto da influência.

Nesse artigo, prioriza-se a análise do contexto da produção do texto, no qual é possível, a partir de análise e leitura atenta dos documentos da política, perceber influências, tanto a nível macro quanto micro-político. Essa inter-relação se estabelece de forma dinâmica com os outros contextos, a saber: contexto da influência e contexto da prática.

Para análise documental contamos com as contribuições dos estudos de Norman Fairclough, que considera o discurso moldado pela estrutura social, ao mesmo tempo que constitutivo dessa estrutura. O foco para utilizar a análise da teoria social do discurso é a possibilidade que ela prioriza uma concepção de discurso que dê conta das práticas discursivas em mudanças que alteram o conhecimento, as relações e as identidades sociais. Também recorremos a sua concepção de hegemonia com base em Gramsci.

Hegemonia é liderança tanto quanto dominação nos domínios econômico, político, cultural, e ideológico de uma sociedade. Hegemonia é o poder sobre a sociedade como um todo de uma das classes economicamente definidas como fundamentais em aliança com outras forças sociais, mas nunca atingido senão parcial e temporariamente, como um equilíbrio instável (...) (FAIRCLOUG, 2001, p. 122).

Neste sentido pretendemos compreender a hegemonia e as configurações dos discursos produzidos na política do PME e de seus documentos, sem esquecer o campo de disputas já elencado, no qual essa política educacional está inserida.

PME E SUAS CONCEPÇÕES DE EDUCAÇÃO

Para compreender os caminhos percorridos até a concepção de um programa como o PME é necessário considerar que a educação integral no Brasil, ou o tempo integral, não é discussão nova na cena brasileira. Conforme Coelho (2009), a educação brasileira convive com temas permanentes e temas recorrentes, nos quais as práticas e políticas públicas nem sempre se concretizam de maneira consistente. Para a autora, a educação integral é um desses temas que podemos considerar recorrentes. O Programa Mais Educação, instituído pelas Portarias Normativas Interministeriais nº 17 e nº 19, de 24 de abril de 2007, é um dos componentes do Plano de Ações Articuladas (PAR), elaborado por municípios e estados para o recebimento de transferências voluntárias e assistência técnica do MEC. Seu objetivo é “fomentar a educação integral de crianças, adolescentes e jovens, por meio do apoio a atividades socioeducativas no contraturno escolar” (BRASIL, 2007a).

A concepção de educação integral do PME está assim expressa na Portaria 17/2007 e referenciada em outros textos como, por exemplo, nos Cadernos Série Mais Educação

Art. 1° - Instituir o Programa Mais Educação, com o objetivo de contribuir para a formação integral de crianças, adolescentes e jovens, por meio da articulação de ações, de projetos e de programas do Governo Federal e suas contribuições às propostas, visões e práticas curriculares das redes públicas de ensino e das escolas, alterando o ambiente escolar e ampliando a oferta de saberes, métodos, processos e conteúdos educativos (BRASIL, 2009c, p.14).

O PME foi instituído inicialmente em municípios prioritários com baixo Índice de desenvolvimento da educação básica (Ideb), em 2008, sendo aumentado, gradativamente, ano a ano, sua área de atuação. Em 2013, segundo dados do MEC o PME deveria atender cerca de 45.000 escolas públicas brasileiras. (APRESENTAÇÃO, 2014). Dessa forma, o Programa pode ser considerado uma opção estratégica para melhoria da qualidade da educação, haja vista que relaciona o desempenho do Ideb como critério importante para receber o programa.

O PME nasce com o compromisso de articular ações entre vários ministérios, como estabelece em seu título “Portaria Interministerial” e, portanto, torna-se também um Programa intersetorial em nível federal, estadual e municipal. Os textos basilares do programa, como, por exemplo, “Passo a Passo”, “Rede de Saberes Mais Educação” e “Manual Operacional Educação Integral”, o tratam como um instrumento na garantia ao direto de aprender e não como o direito à educação. Apesar da sutileza na alteração do termo educação para aprender, há uma mudança discursiva que confere centralidade à aprendizagem. Da mesma maneira, o programa incentiva a garantia de outros direitos humanos fundamentais.

O ideal da Educação Integral traduz a compreensão do direito de aprender como inerente ao direito à vida, à saúde, à liberdade, ao respeito, à dignidade e à convivência familiar e comunitária e como condição para o próprio desenvolvimento de uma sociedade republicana e democrática (...) (BRASIL, 2009a, p. 6-7, grifo nosso).

Aliado a esses pressupostos de direitos, podemos ainda evidenciar que o PME pretende garantir também questões que abarcam o universo das políticas sociais e protetivas em relação à infância e à juventude. A justificativa para essa garantia se dá pela vulnerabilidade que atinge uma grande parcela da população brasileira, conforme a Portaria do PME

IV – prevenir e combater o trabalho infantil, a exploração sexual e de outras formas de violência contra crianças, adolescentes e jovens, mediante sua maior integração comunitária, ampliando sua participação na vida escolar e social e a promoção do acesso aos serviços-assistenciais do Sistema Único de Assistência Social – SUAS. (MEC, 2007a, p. 2 - 3).

Nessa mesma perspectiva, Saboya (2012) afirma, a partir de analise documental do PME, que esse apresenta uma política educacional centrada mais nas ações de caráter social e assistencial, do que propriamente educacional. Entretanto, no Decreto nº 7083/2010, do mesmo ano, as finalidades do PME são redimensionadas para apenas uma, dando ênfase à ideia de que o PME é um Programa destinado à educação, portanto, com o objetivo de fazer com que os estudantes tenham o direito de aprender.

A finalidade do PME, apresentada no Decreto nº 7.083/10, em seu Art. 1º, é a seguinte: “Contribuir para a melhoria da aprendizagem por meio da ampliação do tempo de permanência de crianças, adolescentes e jovens matriculados em escola pública, mediante oferta de educação básica em tempo integral” (BRASIL, 2010a, p. 1). Em meio a esse emaranhado de objetivos, portarias e documentos, constata-se que, apesar de uma parte significativa dos documentos terem sido produzidos por instituições, universidades de reconhecido trabalho acadêmico intelectual, os textos expressam inúmeras contradições entre si.

Mainardes (2006) registra que os textos são representações da política e precisam ser analisados no seu tempo e local de produção. Da mesma forma, o texto nem sempre é claro e coerente, mas está sujeito a contradições. “Os textos políticos são o resultado de disputas e acordos, pois os grupos que atuam dentro dos diferentes lugares da produção de textos competem para controlar as representações da política”. (BOWE et al., 1992 apud MAINARES, 2006, p. 52).

As análises dos documentos do PME demonstram claramente esse contexto de disputas em ação. O Programa possui um expressivo número de textos e documentos de estudo, apoio e orientações para sua implementação na escola, bem como portarias sobre a utilização dos recursos financeiros. No quadro abaixo, veem-se os documentos disponibilizados no site do Ministério da Educação:

Quadro 1 – Documentos do Programa Mais Educação
DOCUMENTOS

REFERÊNCIAS

Muitos Lugares para Aprender, ano 2003.

Documento elaborado pelo Centro de Estudos em Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária – CENPEC, Fundação Itaú Social e UNICEF. Texto referência que registra princípios e concepções da ação complementar à escola.

Cadernos CENPEC (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária), ano 1, nº 2, 2006.

Caderno produzido pelo CENPEC com objetivo de contribuir na discussão e ampliar o conhecimento sobre a educação integral.

Tecendo Redes, ano 2006.

Seminário Nacional patrocinado pela Fundação Itaú e UNICEF que teve como objetivo o engajamento de toda sociedade brasileira e a mobilização de muitos lugares de aprendizagem na construção de redes capazes de promover a educação integral.

Portaria Normativa Interministerial nº 17 de 24 de abril de 2007.

Portaria que institui o PME, criada pelo MEC, que visa a fomentar a educação integral de crianças, adolescentes e jovens, por meio do apoio a atividades socioeducativas no contraturno escolar.

Bairro-Escola, 2007

Documento produzido pela Associação Cidade-Escola Aprendiz, MEC, UNICEF, Prefeitura de Belo Horizonte e Prefeitura de Nova Iguaçu. Traz a experiência do projeto escola-bairro de Vila Madalena-SP que posteriormente foi expandido para outras cidades. O foco é desenvolver e disseminar experiências pedagógicas que consolidem uma nova cultura do educar que transcenda a escola, mas se associe a ela com o propósito de potencializar todas as oportunidades educativas existentes na comunidade.

Caderno Rede de Aprendizagens, ano 2008b

Pesquisa realizada pela UNICEF, UNDIME, MEC e INEP. Apresenta o resultado de estudo realizado em 37 municípios a partir do Ideb e do contexto socioeconômico dos alunos e das famílias.

Resolução nº 19 de 15 de maio de 2008a

Resolução criada pelo MEC que dispõe sobre os processos de adesão e habilitação e as formas de execução e prestação de contas referentes ao Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE) e oferece outras providências.

Escola que Protege, ano 2008

Publicação do MEC e UNESCO elaborada como instrumento didático aos participantes de curso de formação com mesmo nome. O programa tem como finalidade promover ações educativas e preventivas para reverter a violência contra crianças e adolescentes.

Manual Programa Mais Educação – Passo a Passo, ano 2009a

Manual criado pelo MEC, apresentando às escolas orientações de como implementar o PME.

Caderno Série Mais Educação -Rede de Saberes Mais Educação – Pressupostos para Projetos Pedagógicos de Educação Integral, ano 2009d

Caderno criado pelo MEC e destinado a professores e diretores de escolas. Pertence à Série Mais Educação referente aos estudos sobre Projetos Pedagógicos.

Caderno Série Mais Educação – Educação Integral, ano 2009b

Caderno criado pelo MEC, que traz o Texto Referência para o Debate Nacional a cerca da Educação Integral.

Caderno Série Mais Educação - Gestão Intersetorial no Território, ano 2009c

Caderno criado pelo MEC que traz os marcos legais do Programa Mais Educação, as temáticas da Educação Integral e Gestão Intersetorial, a estrutura organizacional e operacional do PME, os projetos e programas ministeriais que compõem o programa e sugestões para procedimentos de gestão nos territórios.

Centros e museus de ciência do Brasil, ano 2009

Guia produzido pela Associação Brasileira de Centros e Museus de Ciência com levantamento dessas instituições no Brasil.

Mapeamento das experiências de jornada escolar ampliada no Brasil: Estudo Qualitativo, ano 2010c

Pesquisa realizada pela UFMG, UFPR, UNIRIO e UNB entre 2008 e 2009, que mapeou as experiências de jornada ampliada no Brasil a partir da metodologia qualitativa.

Mapeamento das experiências de jornada escolar ampliada no Brasil: Estudo Quantitativo, ano 2010d

Pesquisa realizada pela UFMG, UFPR, UNIRIO e UNB entre 2008 e 2009, que mapeou as experiências de jornada ampliada no Brasil a partir da metodologia quantitativa.

Caminhos para elaborar uma proposta de Educação Integral em Jornada Ampliada, ano 2011a

Cartilha da Série Mais Educação, lançada pelo MEC no ano de 2011, trazendo orientações de como ampliar tempos, espaços e oportunidades educativas para crianças, adolescentes e jovens aprenderem.

Manual de Educação Integral para Obtenção de Apoio Financeiro através do Programa Mais Educação – PDDE/Integral- 2009a/2010b/2011b

Manual criado pelo MEC, nos respectivos anos, que orienta secretarias e escolas sobre os critérios para utilização dos recursos do PDDE/INTEGRAL, do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE).

Educação patrimonial Mais Educação, ano 2012

Manual criado pelo MEC que traz a proposta de Educação Patrimonial no âmbito do Programa Mais Educação.

Educação patrimonial Mais Educação: Manual de aplicação, ano 2013

Manual que apresenta fichas e maneiras práticas de realizar o catálogo do patrimônio cultural da comunidade no âmbito do Programa Mais Educação.

FONTE: Elaborada pelas autoras a partir das publicações disponibilizadas pelo MEC, disponível em: portal.mec.gov.br. Acesso em: 20 de ago. de 2013.

Os documentos indicam que a educação integral e a jornada ampliada são temas recorrentes nas políticas educacionais e, por isso, constam na página documentos anteriores à criação oficial do PME. Outro aspecto a ser destacado é que muitos documentos não são necessariamente específicos do PME, mas trazem concepções, princípios e organizações aprovadas para o Programa. Também se destaca a parceria com os organismos internacionais, no que se refere aos documentos que não são próprios do PME, mas são assumidos por ele.

A CRIAÇÃO DO DISCURSO HEGEMÔNICO: FOCO NA APRENDIZAGEM

Como foi mencionado anteriormente, evidencia-se uma mudança discursiva dos termos direito a educação para os termos direito de aprender, nos documentos do PME e, também, em vários outros documentos do Ministério da Educação. Essa mudança não é casual, e, sim, remonta a acordos e compromissos internacionais. Shiroma, Garcia e Campos (2011) compreendem que há uma nova tendência no discurso sobre a educação, ou seja, se antes, na concepção liberal, a educação era uma forma de ascensão social, essa perspectiva é abandonada na nova ordem econômica. A nova tendência estabelecida centra-se na educação, com o intuito de situá-la como fator de inclusão social, na qual as pessoas que não tiverem acesso a essa estarão automaticamente excluídas da sociedade. Essa perigosa possibilidade só pode ser alterada se toda sociedade se mobilizar em prol da educação, premissa apresentada pelo TPE. Da mesma forma, as autoras ainda registram que, além do apelo cívico, há uma ressignificação do ideal de qualidade dos empresários dos anos 90. Como a ideia de qualidade total foi bastante criticada no contexto educacional, essa mesma ideia de qualidade ressurge a partir de outras características mais adaptadas ao paladar dos educadores e da sociedade. A qualidade ressignificada, na atualidade, aparece como condição da efetivação do direito à educação.

Da mesma maneira, o direto à educação também é ressignificado para o direito de aprender. Conforme a ordem do discurso, a educação apresenta má qualidade e, por isso, as crianças e os jovens não aprendem. Esse máxima baseia-se também nas críticas anteriores de que não bastava o mero acesso à educação, era também necessário garantir a permanência do estudante na escola com qualidade. O problema é a forma como essa qualidade e esse aprender estão sendo instituídos, no contexto atual, a partir das influências externas e do TPE. “A qualidade na perspectiva empresarial agora é reduzida aos resultados de aprendizagem, medidos através de testes de rendimento e pela avaliação das performances dos estabelecimentos escolares.” (SHIROMA, GARCIA, CAMPOS, 2011, p. 238).

As mesmas justificativas podem ser encontradas no livro da pesquisadora estadunidense Diane Ravitch (2012), para as reformas no sistema escolar norte americano que instituíram as avaliações nacionais. Em “Vida e Morte do Grande Sistema Escolar Norte Americano” (2012) encontra-se uma série de semelhanças entre as políticas educacionais das ultimas décadas nos EUA com as políticas adotadas pelo governo brasileiro. Ravitch registra a intensa proximidade das grandes empresas com incentivos e investimentos na educação. Entretanto, essa relação se dá numa perspectiva de recriar, nas instituições educacionais, os mesmos pressupostos das empresas.

Os líderes empresariais gostam da ideia de transformar as escolas em um mercado onde o consumidor é o rei. Mas o problema com o mercado é que ele dissolve comunidades e as substitui por consumidores. Ir à escola não é a mesma coisa que ir as compras. [...] O mercado não é a melhor forma de proporcionar serviços públicos (RAVITCH, 2012, p. 247).

Além disso, essa estratégia utilizada para indução da qualidade tem provocado uma série de outras políticas cujo objetivo é responsabilizar escolas e professores pelos índices dos estudantes nos testes e avaliações, fechamento de escolas, incentivo à escolas autônomas, entre outras.
Para explicitar como esses discursos são colocados em prática, faz-se necessária uma análise do documento Rede de aprendizagens, que está entre os documentos de referência do PME.

ANALISE DO DOCUMENTO REDE DE APRENDIZAGENS

O documento Rede de Aprendizagens (2008b) é resultado de uma pesquisa empreendida pelo Fundo das Nações Unidas para Infância (UNICEF), Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), Ministério da Educação (MEC) e União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), em 37 redes municipais selecionadas a partir do Ideb e do contexto socioeconômico dos alunos e suas famílias. O objetivo foi identificar boas práticas que garantem o direito de aprender.

O documento está estruturado em 6 partes: (1) A metodologia da pesquisa; (2) Introdução: Mais do que um conjunto de escolas, uma rede de aprendizagem; (3) Os dez pontos básicos: A construção da aprendizagem: principais fundamentos para uma base sólida; (4) Fatores de sucesso importantes, mas menos mencionados: Outros aspectos para garantia da aprendizagem; (5) Desafios: Superar obstáculos avançar nas conquistas; (6) Anexos: Um raio X das redes municipais analisadas.

Abaixo, estão sistematizados os tópicos e a ênfase dada por cada um deles na parte 3 do documento, o qual contém o maior número de páginas, explicações e exemplos de boas práticas.

Quadro 2- Documento Rede de Aprendizagens (2008b)
OS DEZ PONTOS BÁSICOS

ÊNFASE DA MENSAGEM

(1) Aprendizagem: o foco que alinha toda a rede

Gestão centrada na aprendizagem; Compromisso com cada um dos alunos e alunas: garantindo seu direito de aprender.

(2) Gestão com consciência e práticas de rede

Gestão participativa envolvendo a rede a partir de diagnóstico, avaliação, planejamento. Papel de destaque aos dirigentes municipais no monitoramento das metas a atingir.

(3) Planejamento solidário

Envolver todos os professores na discussão e elaboração do Projeto Político Pedagógico. Realizar sistematicamente planejamentos em rede, compartilhando e oportunizando trocas. A grande maioria das redes baseia seu plano estratégico no PDE.

(4) Avaliação: ferramenta da aprendizagem

Os professores das redes não temem a avaliação. Estabelecimento de uma cultura da avaliação. Prática de avaliações para além da Prova Brasil com consultorias externas privadas. Reconhecimento da importância das avaliações realizadas pelo INEP. Professor também é posto à prova

(5) O valor do professor

O professor é o principal responsável pelo sucesso das redes. É a ele que pais e alunos atribuem a responsabilidade direta pelos bons resultados alcançados pela escola. Compromisso do professor com o aluno. É importante valorizar o mérito do professor –premiação.

(6) Compromisso com a formação

“Se os alunos vão bem é porque a professora ensina bem” (p.47). A formação é considerada como um fator relevante para bons índices de aprendizagem. Valorização da formação tanto inicial quanto continuada.

(7) A valorização da leitura

A leitura é um aspecto fundamental com prioridade nos primeiros anos do Ensino fundamental. Os municípios desenvolvem vários projetos com esse fim.

(8) Um a um nenhum a menos

Crença na capacidade de toda criança de aprender. Combate à repetência como propõe o PDE a partir de práticas que respeitem o tempo de aprender de cada um. Monitoramento e atendimento individualizado de cada criança.

(9) Atividades complementares fazem a diferença

A escola como articuladora de muitas outras oportunidades de aprendizagem. Ampliação do tempo de permanência na escola com atividades variadas, desenvolvidas por meio de parcerias.

(10) Parceiros da aprendizagem

Abertura de portas para atores externas às redes. Foram detectados quatro tipos de articulação: com setor privado, com universidades, com organizações não governamentais, e com órgãos do setor público. As Secretárias municipais têm o papel de organizar e mobilizar a comunidade e as empresas privadas a apoiar a educação do município.

FONTE: Dados sistematizados pelas autoras.

Os dez pontos elencados no quadro acima podem ser relacionados diretamente com as metas do TPE e das políticas gerenciais. Mesmo que o TPE não participe da organização da pesquisa, suas 28 diretrizes (DIRETRIZES, 2013) e as cinco principais metas (METAS, 2013) estão presentes e alinhadas a todos os pontos acima mencionados.

Tiradentes et al. (2011), em análise da atuação dos Organismos Internacionais, em particular do Programa de Reforma Educativa na América Latina e Caribe (PREAL), afirmam que sua atuação no Brasil se dá “através da prescrição organizada de documentos voltados para recomendação de “Boas Práticas”, justificados por uma proposta de “maior qualidade” para educação” (p.3). Essas recomendações visam à criação de um consenso universal e à naturalização dos discursos.

No documento analisado, a aprendizagem aparece como responsabilidade de professores e diretores. De maneira geral, encontram-se falas registrando que, antes do foco na aprendizagem, estavam sem rumo a escola, os professores, os estudantes e os pais. Contudo, isso muda a partir do estabelecimento de metas claras a serem alcançadas. A aprendizagem é medida de maneira enfática nos resultados das avaliações nacionais, e as boas secretarias de educação, boas escolas, bons professores são aqueles que não têm medo das avaliações. Essas prescrições estão em todo o documento Rede de Aprendizagem (2008b) e estabelecem o discurso oficial sobre o aprender e a aprendizagem.

CONSIDERAÇÕES PROVISÓRIAS

Nesse texto procurou-se construir a trajetória do contexto de formulação dos textos do PME, permeado pelo contexto das influências, utilizando a abordagem do ciclo de políticas. Nesse caminho, foram reconstituídos, a partir de um compromisso especifico, o TPE e as ordens discursivas em ascensão na política educativa brasileira.

Registrou-se um enfraquecimento do termo discursivo direito à educação para o fortalecimento do termo direito de aprender. Essa mudança pode ser compreendida a partir da arena da influência, com fortes reflexos na arena da formulação.

Os documentos produzidos exclusivamente para o PME como, por exemplo, “Passo a Passo”, “Rede de Saberes Mais Educação” e “Manual Operacional Educação Integral”, são documentos produzidos por especialistas, na sua grande maioria por universidades ou institutos, com história de trabalho com educação popular. Nesses documentos, é possível conferir uma unidade nas concepções de educação integral, baseada nas experiências de Anísio Teixeira e de Darcy Ribeiro. Há uma expressa identificação e valorização dos saberes populares e incentivo da parceria entre escola, bairro e comunidade.

Nesse sentido, o discurso hegemônico é de que o direito de aprender, com foco na aprendizagem, surge como uma garantia para alcançar a tão almejada qualidade da educação. Um desdobramento necessário para o aprofundamento dessa discussão centra-se na qualidade sobre a qual se debruçam os pesquisadores. Será a qualidade medida unicamente por índices e por provas de rendimento? Essa parece ser a problemática submersa do iceberg, no qual aparece somente a ponta, mas nas profundezas existe uma enorme geleira, quando se trata do discurso hegemônico com foco na aprendizagem.

REFERÊNCIAS

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