ESTADO, LIBERALISMO E REGULAÇÃO: ANÁLISE CONJUNTURAL DA AVALIAÇÃO EM LARGA ESCALA NA EDUCAÇÃO
Resumo: A tendência das políticas de avaliação subsumidas em testes padronizados, classificações e rankings compõe uma perspectiva de gestão da educação em escala internacional. Nosso objetivo é analisar as reformas do Estado e as demandas geradas por esse processo ao impulsionar políticas públicas de avaliação em larga escala no cenário nacional. Para tal propósito realizamos estudos bibliográficos e análise documental, sobretudo, documentos oficiais emanados pelo Ministério da Educação. Evidencia-se que a educação, nas últimas décadas, passa a ser assumida como um serviço que deve ser avaliado e cujos resultados são relacionados a um padrão de controle, regulação, classificação e seleção, que tem direcionado a gestão das instituições e marcado a responsabilização e controle social das mesmas.
Palavras-chave: Estado; regulação; avaliação em larga escala.
INTRODUÇÃO
A categoria avaliação no âmbito educacional esteve historicamente associada, no contexto brasileiro, às práticas da sala de aula, especialmente, voltadas para avaliação dos/as estudantes. Apenas recentemente, particularmente a partir da década de 1990, observamos a ascendência da centralidade da avaliação em larga escala realizada pelo Estado, seguindo uma perspectiva internacional, apregoada, sobremaneira, na realidade Norte Americana e Inglesa. Tendência na qual as políticas públicas passam a ter a avaliação como base que sustenta reformas educacionais que, não raro, trazem para esfera pública dimensões e princípios da gestão privada.
No presente texto temos como propósito tecer análises acerca da configuração e reestruturação do Aparelho de Estado, o qual tem assumido uma perspectiva gerencialista. O objetivo é compreender as demandas destas reconfigurações no contexto educacional, especialmente, na intensificação da regulação e controle da educação por parte do Estado via avaliação. No discurso oficial e na orientação das políticas públicas educacionais aparece como tema candente a proposta da avaliação como elemento passível de garantir a qualidade da educação e acompanhar o serviço prestado à sociedade e, ancorada na racionalidade técnica, a avaliação é apresentada como representação de objetividade, neutralidade e eficácia.
Soma-se a estas linhas de análise o próprio status de “serviço” incutido sobre a educação, delineado por organismos multilaterais como a Organização Mundial do Comercio (OMC), no qual fica evidente que a educação passa a ser admitida como um serviço que deve estar enquadrada à lógica do mercado e, como tal, avaliada a fim de que os consumidores/clientes tenham parâmetros para escolher o que lhes atende. Assim como, a delineação da tese do Banco Mundial (BM) que relaciona o crescimento econômico sustentável ao nível da educação dos países, dentre outros bens sociais, o que demanda a presença de práticas avaliativas que indiquem a realidade dos países.
No texto realizamos inicialmente o problematização da perspectiva do Estado Avaliador (AFONSO, 2005) e, na sequencia, analisamos a avaliação em larga escala no Brasil, particularmente, a partir do Plano de Desenvolvimento da Educação (2007) ao atual Plano Nacional de Educação (2014-2024). As últimas duas décadas foram profícuas na elaboração de proposições e diretrizes operacionais para a efetivação de mecanismos de avaliação externa nas diferentes etapas e níveis da educação brasileira. Defende-se, portanto, nesse trabalho, a importância e necessidade da avaliação, contudo, a trajetória das políticas externa em curso evidencia princípios classificatórios e que se distanciam da concepção formativa de avaliação, especialmente ao provocar formas de responsabilização unilateral das escolas.
ESTADO AVALIADOR E A REGULAÇÃO DA EDUCAÇÃO
As redefinições da política educacional estão alinhavadas a um processo multifacetado, especialmente, no contexto atual no qual nos deparamos com a acentuada crise do capital e reestruturação do Estado. Como sustenta Afonso (2005, p.98), a compreensão do que é o Estado e dos modos como ele funciona na sociedade capitalista é uma condição indispensável para problematizar a função da escola, da educação e das dimensões que a envolve. Essa assertiva assume relevância especial neste estudo, visto que centramos nossa atenção nas configurações das políticas de avaliação, num momento em que o próprio Estado assume o papel centralmente regulador via avaliação (BARROSO, 2005).
Neste início do século XXI, vivenciamos a crise das regras proclamadas pelos famosos economistas das grandes instituições financeiras. As receitas para o “ajustamento macroeconômico” dos países em desenvolvimento, que passavam por problemas, parecem não ter surtido os melhores efeitos.
A euforia “neoliberal” dos anos de 1980 e princípios de 1990 parece estar a empalidecer mesmo os seus defensores e promotores, nomeadamente no seio das grandes organizações internacionais. As receitas do “consenso de Washington” começam a ser posta em causa com as experiências dolorosas dos países europeus do “antigo bloco de leste” ou dos “tigres” asiáticos ou das “economias emergentes” da América Latina. É nesse contexto que se começa a assistir a uma redefinição das relações entre economia e política no quadro dos processos de desenvolvimento em geral. (BARROSO, 2005, p. 743)
As manchetes de jornais e revistas destacam a exacerbada crise, crise que envolvia apenas os países pobres há poucos anos, hoje, afeta os países do Norte a ponto de atentarmos até mesmo para a possibilidade do “calote” de países antes fora de suspeitas, o que mostra que a euforia que os princípios neoliberais geraram nos dias atuais revela suas consequências. A quebra financeira repetida em ciclos cada vez menores abala as próprias estratégias do capitalismo. Mas quais são os mecanismos em curso? Neste contexto o que podemos dizer do papel que o Estado vem assumindo?
Os próprios defensores ferrenhos do neoliberalismo, como por exemplo, Francis Fukuyama, apontam para a redefinição desses princípios e mesmo a defesa de uma nova medida entre Estado e mercado, assim como novas bases de regulação do Estado. Desse modo, modelos emergentes buscam, como na vertente de Boyer (2009), superar “a crise do consenso de Washington” e a dicotomia acirrada entre Estado/mercado.
Como já assinalava Mészáros (2009) a situação tende a se agravar.
A crise estrutural do sistema do capital como um todo – está destinada a piorar consideravelmente. Vai se tornar à certa altura muito mais profunda, no sentido de invadir não apenas o mundo das finanças globais mais ou menos parasitária, mas também todos os domínios da nossa vida social, econômica e cultura (MÉSZÁROS, 2009, p.17).
Entretanto, a forma como cada país sente os impactos dos momentos que estamos vivendo é diferenciada. Assim, por exemplo, as mutações recentes na natureza do Estado assumem uma dimensão diacrônica, por isso com especificidades entre os países. No Brasil, assumimos lineares particulares, dentre outras questões é necessário avaliar, segundo Boron (1994), a não constituição do Estado de Bem-estar social nos países da América Latina, pois isso nos remete a processos de desregulamentação que não encontram as mesmas resistências, como as que se efetivam em países que viveram políticas de seguridade social e solidificaram, naquele período, significativas conquistas dos trabalhadores, dentre eles os próprios professores. Na Europa, segundo Boron (1994, p.163), a “‘presença das massas’ no seio dos estados capitalistas teve efeitos duradouros sobre a composição do gasto público, ampliando os gastos de natureza ‘social’ à medida que se consolidavam as reformas e os programas estabelecidos no pós-guerra”, garantindo gastos sociais do Estado com educação, saúde e outros programas. Deste modo, o Estado teve como tarefa a própria organização do capitalismo a fim de mantê-lo, garantindo as condições, mesmo as sociais, para mover a roda do mercado. Esse contexto surge da tentativa de manter o sistema, mas também se relacionava à forte resistência e manifestação dos trabalhadores, assim como a ameaça do socialismo, levando à aceitação de um capitalismo “mais humanizado”.
A tese de que as políticas de bem-estar do Estado keynesiano foram resultado de um estratagema burguês para enganar a massa é derrubada como um castelo de areia [...] a extensão dos benefícios sociais foi o resultado da capacidade reivindicativa e de pressão dos setores populares: ali onde estes não tinham a força política necessária a classe dominante mantinha suas prerrogativas tradicionais. Quanto, ao contrário, a ameaça “de baixo” se articulava orgânica e eficazmente, a burguesia admitia a contragosto as novas conquistas sociais dos operários. (BORON, 1994, P.162)
O alicerce desse modelo Keynesiano, que teve até 1973 anos gloriosos, era, segundo Boron (1994), a natureza intervencionista do Estado, garantindo controle fiscal e proposição do consumo da produção. Mas a crise do petróleo nos anos 70 e a estagflação incidiram cada vez mais criticas a esse modelo, principalmente pelos liberais clássicos. É nesse contexto de crise que observamos a junção dos setores liberais e conservadores, constituindo a nova direita, a qual teve reflexos centrais desde a década de 1980. Portanto, o intervencionismo passa a ser fortemente atacado, e no Brasil, onde nem mesmo tivemos a efetiva constituição desse modelo, passamos a viver a intensa valorização do mercado; a globalização; a privatização e a limitação dos direitos sociais.
Por isso, salienta Boron (1994), os países da América Latina, ainda que com especificidades, enfrentam maiores dificuldades, pois estão ainda envolvidos com questões já erradicadas nos países do Norte, os quais tratam de temas como as opções valorativas, enquanto nós temos em nossas agendas questões como as necessidades humanas fundamentais, já superadas por aqueles. Por isso, nos dias atuais sentimos mais efetivamente a nova organização capitalista, sentimos o “mal-estar”. Assim, os proletários sentem cada vez mais a precariedade:
[...] pela flexibilização e desregulamentação, de maneira sem precedentes para os assalariados. É o mal-estar do trabalho, o medo de perder o seu próprio posto, de não poder ter mais uma vida social e viver apenas do trabalho e para o trabalho (...). É o processo que precariza a totalidade do viver social. (VASAPOLLO, 2007, p.92)
Nessa reconfiguração novos elementos aparecem em cena, novas regulações. Para Barroso (2005) a regulação das políticas, em especial da educação, estão relacionadas a essas reestruturações. Efetivamente se conformando em torno de políticas públicas neoliberais, vem marcada por um Estado que não assume mais o desenvolvimento econômico e social pela via de produção dos bens e serviços, entretanto mantém-se como regulador desse desenvolvimento, como “Estado Avaliador”. Esta expressão, de acordo com Afonso (2005), aponta o interesse nessa nova organização pela avaliação, onde a preocupação centra-se mais no produto do que no processo.
O Estado vem adotando um ethos competitivo, neodarwinista, passando a admitir a lógica do mercado, através da importação para o domínio público de modelos de gestão privada, com ênfase nos resultados ou produtos dos sistemas educativos. (...) Nesse sentido, por exemplo, diminuir as despesas públicas exigiu não só a adaptação de uma cultura gestionária (ou gerencialista) no setor público, como induziu a criação de mecanismos de controle e responsabilização mais sofisticados. A avaliação aparece assim como um pré-requisito para que seja possível a implementação desse mecanismo (AFONSO, 2005, p. 49).
Já na década de 1990 Boron (1994) destacava que a intervenção do Estado redobrou e aprofundou com o propósito de assegurar, seja, pela via dos investimentos, das regulações ou dos instrumentos macroeconômicos, o pagamento de suas dívidas e das próprias dívidas das empresas privadas em transações internacionais. Portanto, a crítica dos liberais ao intervencionismo do Estado, não pode ser confundida no contexto atual como a sua minimização. Pois estes são aliados, não adversários; “a hostilidade dos defensores do mercado não é com o Estado, mas com os componentes democráticos do Estado Moderno” (BORON, 1994, p.178). Assim, realmente não cabe aos interesses dos liberais e, à lógica do mercado, a justiça distributiva. E nem o espaço para uma sociedade justa, visto ser a diferença o reinado que constitui as suas bases.
Essa reconfiguração de um novo modelo de Estado se intensificou no Brasil, especialmente, a partir do governo Fernando Henrique Cardoso (FHC), enquanto Luiz Carlos Bresser-Pereira atuava como ministro. Produto dessa reconfiguração se evidencia no Plano Diretor da Reforma do Aparelho de Estado (BRASIL, 1995) do Ministério da Administração Federal e da Reforma do Estado (MARE), o qual versa sobre a necessidade de estratégias para tornar o Estado mais moderno e menos burocrático. Dentre os elementos desta configuração está o discurso da “autonomia” do serviço público, ao mesmo tempo em que se consubstancia a regulação do produto e fortalece o Estado como instancia reguladora.
Um dos aspectos centrais desse esforço é o fortalecimento do Estado para que sejam eficazes sua ação reguladora, no quadro de uma economia de mercado, bem como os serviços básicos que presta e as políticas de cunho social que precisa implementar. Este “Plano Diretor” procura criar condições para a reconstrução da administração pública em bases modernas e racionais. [...] É preciso, agora, dar um salto adiante, no sentido de uma administração pública que chamaria de “gerencial”, baseada em conceitos atuais de administração e eficiência, voltada para o controle dos resultados e descentralizada para poder chegar ao cidadão, que, numa sociedade democrática, é quem dá legitimidade às instituições e que, portanto, se torna “cliente privilegiado” dos serviços prestados pelo Estado. (Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, 1995, p. 6-7. Grifos do autor)
Envolvida nesta lógica a reforma no campo educacional iniciada no Brasil, notadamente, a partir dos dois mandatos de FHC (1995 - 2002) não assumiu rumos distintos no governo Luiz Inácio Lula da Silva (2003 – 2010), contrariando a expectativa em relação ao partido historicamente de esquerda, contudo também não seguiu a mesma perspectiva (tema que merece uma dedicação em particular). No campo educacional a lógica meritocrática não apenas continua, mas inclusive é aprofundada.
Em abril de 2007, o ministro Fernando Haddad lançou o decreto 6.094/2007, definindo as diretrizes para a efetivação do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), no qual as avaliações ganharam centralidade com a instituição do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB). O IDEB é o resultado do desempenho dos estudantes na Prova Brasil e no Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB), aliados às taxas de aprovação divulgadas por meio do Educacenso. Segundo documentos oficiais o objetivo do IDEB é avaliar o ensino oferecido pelo sistema educacional brasileiro a partir de testes padronizados e questionários socioeconômicos. O Ministério da Educação e do Desporto (MEC) destaca o propósito de garantir recursos e assistência técnica às escolas públicas de acordo com as demandas apresentadas nas avaliações externas. Nesse contexto, os instrumentos de avaliação do sistema educacional brasileiro são apresentados socialmente pelo governo com a finalidade de auxiliar o desenvolvimento de políticas educacionais. Desde o início das reformas aos dias atuais, já se delineou vertentes mais concretas em relação ao sentido da avaliação em larga escala, contrariando os proclamados discursos oficiais.
AVALIAÇÃO EM LARGA ESCALA NO BRASIL
A análise desse artifício de controle e regulação da educação demanda a compreensão do processo histórico de uma escola que no bojo liberal foi apontada como um dos meios para a ascensão social e econômica das pessoas, gerada pelo esforço dos indivíduos e balizada pela lógica meritocrática. Discurso que subjulga as contradições de uma escola que, em grande medida, atua na reprodução das desigualdades sociais e que assim colabora para mascarar a lógica excludente do capital. Nessa relação a avaliação classificatória é usada como forte recurso no processo de seleção e justificativa das diferenças. Esse nexo permeava até a década de 1990 especialmente a relação no interior das escolas, mas as políticas de avaliação têm conduzido novos processos com velhas lógicas liberais de exclusão, pois se antes a culpabilização do “fracasso” era atribuído aos estudantes, agora as instituições escolares passaram a ser responsabilizadas pelas mazelas da educação, novamente sem a contextualização dos diferentes fatores que interferem na prática pedagógica.
O sentido da realização das avaliações desenvolvidas nacionalmente é avaliar as políticas públicas, ver o que o governo fez e o que deveria fazer para melhorar a qualidade da educação (FREITAS, 2005). Ela deve promover o compromisso do Estado, dos servidores públicos e dos gestores no interior de políticas democráticas e participativas. Mas o que realmente ocorre com os dados que o MEC obtém? No campo do discurso oficial o Ideb é lançado como índice que,
[...] permite identificar as redes e as escolas públicas mais frágeis a partir de critérios objetivos e obriga a União a dar respostas imediatas para os casos mais dramáticos ao organizar o repasse de transferências voluntárias com base em critérios substantivos, em substituição ao repasse com base em critérios subjetivos (PDE, 2007, p.23).
Art. 3º. A qualidade da Educação Básica será aferida, objetivamente, com base no Ideb, calculado e divulgado periodicamente pelo Inep, a partir dos dados sobre rendimento escolar, combinados com o desempenho dos alunos, constantes do censo escolar e do Sistema de Avaliação da Educação Básica – Saeb, composto pela Avaliação Nacional da Educação Básica – ANEB e a Avaliação Nacional do Rendimento Escolar (Prova Brasil).
Parágrafo único. O Ideb será o indicador objetivo para a verificação do cumprimento de metas fixadas no termo de adesão ao compromisso (BRASIL, DECRETO n. 6.094, 2007, Capítulo II, Art. 3º, destaque nosso).
Podemos afirmar centralmente que nos últimos anos os resultados do Ideb foram prontamente divulgados, apontando metas e estabelecendo comparações. A explicitação dos dados no site do Governo, na televisão, nos jornais, em revistas, induz a compreensão do dever cumprido por parte do Estado, pois viabiliza como critica Frigotto (1999), na lógica neoliberal, à clientela, a “liberdade” de escolha diante da mercadoria educação.
Esse papel de destaque do Ideb permanece em curso como se percebe no PNE (2014-2024) no qual o índice atua como dos eixos das políticas de educação do Estado. Contudo, uma mudança significativa ocorre em relação ao PDE e o PNE, pois no Plano a estratégia 7.36 passa a indicar políticas de premiações às escolas de acordo com o desempenho no índice. A estratégia foi assim definida: “estabelecer políticas de estímulo às escolas que melhorarem o desempenho no Ideb, de modo a valorizar o mérito do corpo docente, da direção e da comunidade escolar” (PNE, Lei Nº. 13.005/2014, Estratégia 7.36).
Assim, no PDE o Ideb é envolvido em um discurso político que assume dimensões diferentes das estratégias do PNE quanto à lógica meritocrática, pois no último este nexo fica explicito. A perspectiva presente é, sobremaneira, de:
[...] atribuição de mérito com fins classificatórios. O que define de modo mais explícito as finalidades a que vem servindo a avaliação, para além dos delineamentos adotados, é o uso que se faz de seus resultados, qual seja, a produção de classificações que apoiam a hierarquização de unidades federadas, de instituições ou de alunos (SOUZA; OLIVEIRA, 2003, p.889).
Destarte, passado quase dez anos do PDE o Estado discursa sobre a “autonomia” da escola e ao mesmo tempo coloca, sobretudo, nas mãos da instituição a resposta às demandas sociais e, sobre o professor delineiam-se novas implicações. Nesse sentido, sobre a escola recai a responsabilidade pelos produtos alcançados, que serão cobrados mediante a avaliação.
Na cultura do desempenho [...] os professores, as instituições de ensino e o trabalho docente ficam expostos negativamente, pois os aspectos ressaltados nas avaliações, verdadeiros rankings nacionais e internacionais, acabam por ressaltar as falhas do processo e evidenciar objetivos que não foram atingidos, sem, contudo, considerar os aspectos de caráter positivo do trabalho do professor e sem problematizar e analisar as circunstâncias e os possíveis motivos pelos quais os objetivos e os desempenhos esperados não tenham sido alcançados. (FIDALGO, 2009, p.93)
Conforme Fidalgo (2009), percebe-se que neste “jogo” o trabalho docente é condicionado a se desenvolver acriticamente, pois tanto os professores quanto as instituições ficam focadas nos indicadores de desempenho. Assim, temos o ímpeto dos mecanismos de responsabilização das escolas e professores, que acabam por adentrar nesta lógica sem analisar e apontar elementos fundamentais que interferem na qualidade da educação, dentre eles, dimensões de responsabilidade do Estado.
Consequentemente, o que vem ocorrendo é justamente a deturpação do sentido da avaliação, sendo esta explicitada como avaliação da instituição, atribuindo unicamente a ela as responsabilidades pelo seu sucesso ou fracasso. Como destaca Souza (2002), a avaliação sistêmica na lógica do governo impõe-se, em primeiro lugar, pela exigência de racionalização do sistema educacional, ainda que, com a justificativa de elaboração de planos mais eficazes do processo educativo. Segundo a mesma autora, as políticas de avaliação sistêmica têm gerado políticas racionalizadoras, sempre relacionadas à questão custo/benefício, envolvendo correção de fluxo escolar, progressão continuada, aceleração da aprendizagem e implantação de ciclos. As respostas da avaliação vão se naturalizando, tornando opaca a desigualdade, pois já estamos acostumados a ouvir notícias dos baixos índices dos resultados avaliativos das classes mais pobres.
Como destacamos anteriormente, as medidas propostas que envolvem os resultados da nova regulação das políticas educativas, surgem como soluções técnicas e políticas, as quais são colocadas pelo governo como necessárias para a resolução de problemas de ineficiência administrativa dos sistemas escolares, “vindo ainda acompanhada da ideia de transparência (prestação de contas e demonstração dos resultados) e de participação local” (OLIVEIRA, 2005, p.763).
Portanto, nos últimos anos, assistimos, no cenário brasileiro, a ascensão e organização de um Estado que promove a ênfase nos resultados ou produtos dos sistemas educacionais e que induz à criação de mecanismos de controle e responsabilização, passando a admitir a lógica do mercado ao importar modelos da gestão privada para o domínio público. Nesse nexo, instiga-se a competição entre as instituições escolares, ou mesmo entre os professores, ao relacionar os resultados das avaliações nacionais à política de financiamento da educação - quem atinge “bons resultados é premiado” , principalmente com a divulgação dos resultados à comunidade.
Essa nova regulação repercutiu diretamente na composição, estrutura e gestão das redes públicas de ensino. Trazem medidas que alteram a configuração das redes nos seus aspectos físicos e organizacionais e que têm se assentado nos conceitos de produtividade, eficácia, excelência, importando, mais uma vez das teorias administrativas as orientações para o campo pedagógico (OLIVEIRA, 2004, p. 1130)
Diante desses apontamentos, entendemos que a avaliação educacional é um tema complexo, campo de contradições, onde diferentes posições e concepções teóricas estão presentes. Para uns assume princípios e critérios baseados na ética, na democracia, na autonomia, orientadas por indicadores sociais, tendo, portanto, as funções diagnósticas e formativas (FREITAS, 2005). Em contraposição, temos os modelos caracterizados pelo quase-mercado, que privilegia princípios e critérios de eficiência, produtividade e competitividade, priorizando a aferição pontual dos desempenhos dos alunos. Essa segunda concepção privilegia os produtos e os resultados em detrimento do processo. De um modo geral não há análise dos diferentes fatores associados aos baixos desempenhos, como o grau de desigualdade social que assola nosso país.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na sociedade capitalista não há espaço para igualdade de resultados. Na educação cada qual atinge patamares diferenciados, justificado na ótica liberal pelas potencialidades do indivíduo. Na avaliação em larga escala a diferença também aparece com relevante papel, assumindo um padrão de controle, regulação e classificação, que tem direcionado a gestão das instituições. Em meio a esse contexto a avaliação em larga escala surge para o Estado como uma resposta política e administrativa. Estado que tem corroborado as relações sociais vigentes ou mesmo sustentado o modo de produção capitalista, garantindo a sobreposição da classe dominante sobre as classes dominadas. Pois ali se evidencia os
[...] interesses das classes já condicionadas pela divisão do trabalho, que se direcionam em todo agrupamento desse gênero e no qual uma domina todas as outras. Segue-se que todas as lutas no âmbito do Estado (...) nada mais são do que formas ilusórias sob as quais são travadas as lutas efetivas entre as diferentes classes. (MARX; ENGELS, 2008, p.29)
Portanto, o percurso das últimas décadas nos mostra como os princípios e ações do Estado, vinculados aos interesses liberais, não agem meramente por ações de aparatos repressivos como apontava Gramsci (2006), mas pela institucionalização de uma cultura enraizada pelos ideais burgueses que se disseminam por todas as dimensões da relação humana. Na lógica do autor supracitado esse processo ocorre centralmente nos meios da comunicação, nas instituições religiosas e no sistema educacional. Nesta relação os mecanismos de manutenção do sistema mudam, o que não mudam são os propósitos do capital e a base vigente do Estado, ora mais selvagem ora mais “social”, mas cujo sentido é a exploração e perpetuação da diferença. Neste bojo avaliamos o sentido repressivo que tem envolvido a lógica da avaliação sistêmica em nosso país.
REFERÊNCIAS
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