PESSOAS COM SURDEZ: DESCAMINHOS E CAMINHOS DE UMA EDUCAÇÃO NA ESCOLA DE TODOS

Resumo: Apresentamos neste texto, reflexões sobre a educação escolar de alunos com surdez, em uma perspectiva inclusiva, rompendo com o embate entre os gestualistas (pesquisadores que defendem o uso de gestos para a comunicação) e os oralistas (aqueles que defendem o uso da oralidade), nos quais os processos perceptivos, linguísticos e cognitivos poderão ser estimulados e desenvolvidos, tornando-os seres humanos capazes, produtivos e constituídos de várias linguagens. Neste contexto, de educação em uma perspectiva inclusiva, o serviço complementar da Educação Especial, que é o Atendimento Educacional Especializado na escola comum, oferece novas possibilidades para as pessoas com surdez, em que a Linguagem Brasileira de Sinais - LIBRAS e a Língua Portuguesa Escrita são línguas de comunicação e instrução. Prevendo assim, práticas escolares de qualidade a esses alunos.

Palavras-chave: Educação inclusiva; pessoas com surdez; atendimento educacional especializado.


INTRODUÇÃO

A educação inclusiva para pessoa com deficiência consiste em um movimento educacional de âmbito mundial, envolvendo ações sócio-culturais, políticas, psicológicas, educacionais e pedagógicas, desenvolvidas para garantirem o direito de esses seres humanos estarem juntos nos diversos ambientes, - independente do seu déficit, falta, falha, insuficiência ou a deficiência - nos quais devem conviver, aprender e participar, sem nenhum tipo de preconceito ou discriminação. A educação inclusiva para a pessoa com deficiência é um paradigma educacional fundamentado na concepção de direitos e valores humanos, que agrega infinitas possibilidades para essas pessoas, envolvendo em especial o acesso e a permanência no âmbito escolar com equidade.

Porém, para este processo efetivar, torna-se necessário enfrentar os empecilhos e entraves existentes, envolvendo as barreiras estruturais e atitudinais no sistema de ensino brasileiro. Ao reconhecer as dificuldades existentes, deflagramos a primeira iniciativa de confrontar as práticas excludentes, discriminatórias e preconceituosas, criando alternativas na busca de superá-las. Nesse sentido, a educação inclusiva para pessoa com deficiência assume um espaço complexo no debate, quando legitima a superação da lógica da exlusão e dos marcadores da deficiência. Nessa perspectiva, o Brasil, na atualidade enfrenta um grande desafio, o desafio de se organizar para se tornar um país que acolhe e respeita as diferenças humanas dessas pessoas, valorizando seus potencias individuais e coletivos, relegando o caráter excludente, discriminatório e segregacionista, em especial na escola de ensino regular público e privado que se organiza, ainda, incorretamente para potencializar a capacidade das pessoas com deficiência (ALVES; DAMÁZIO, 2010).

Assim, ao se pensar em todas as questões polêmicas que perpassam a discussão acerca da educação das pessoas com deficiência, iniciando pelas leis, a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva de 2008 apresenta como proposta educacional para o ambiente escolar, ações que envolvam práticas educacionais inclusivas, e, consequentemente, a promoção de uma escola aberta a todos. Várias são as leis que asseguram os direitos das pessoas com deficiência, mas do que adiantam belas e tracejadas linhas legais, se no âmago da questão não se vê uma mudança de paradigma nas proposições e ações sócio político educacionais? De que vale um papel se as pessoas não conseguem mudar a forma de ver a pessoa com deficiência? Percebe-se progresso nas leis, mas as modificações nas atitudes estruturais e atitudinais ainda deixam muito a desejar, as leis são necessárias para assegurarem os direitos, porém a mudança de mentalidade, envolvendo os novos paradigmas da contemporaneidade, é emergente na busca de uma sociedade mais justa e solidária para a vida em sociedade dessas pessoas.

Sendo assim, a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva de 2008 apresenta como proposta ao atendimento dos alunos com deficiências, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação, o Atendimento Educacional Especializado, a ser praticado, preferencialmente, na escola de ensino regular. Neste sentido, nosso lócus de pesquisa e ações práticas para o trabalho é a escola de ensino regular que existem em todos os municípios brasileiros, atendendo um ou vários alunos com deficiência, matriculados nestas escolas que “devem estar” aberta para todos.  Para isso, algumas propostas praticadas nestas escolas precisam ser revistas e algumas tomadas de posição e compreensão de bases epistemológicas de caráter inclusivas precisam ficar mais claras, para que, realmente, as práticas pedagógicas para a escola comum pública e também privada apresentem resultados efetivo e produtivo para a educação das pessoas com deficiência. Muitos são os empecilhos e entraves, mas as possibilidades e alternativas são infinitas, inconclusas e depende do olhar que temos sobre o ser humano com deficiência.

Compreendemos assim, a pessoa com deficiência, como um ser dialógico, transformacional, inconcluso, reflexivo, síntese de múltiplas determinações num conjunto de relações sociais, como um ser que possui diferenças e capacidades de idealizar e de criar, ter a capacidade de reinventar os caminhos até hoje praticados em favor de seu processo educacional pela escola brasileira e criar um novo lócus de vida.

A educação escolar é um processo de desenvolvimento pleno do ser humano. Em seu decurso, são construídos conhecimentos com base nas necessidades de transformação social, sendo necessário levar em conta o fato de que cada pessoa os constrói, alicerçando-os em suas experiências próprias e adicionando-os àqueles pertencentes ao legado histórico da humanidade e constituídos por diferentes contextos culturais. Assim, o confronto de conhecimentos viabiliza a geração de outros novos, portanto ao se pensar na educação das pessoas com deficiência não podemos desvencilhar da construção de uma escola que atenda a todas as diferenças, levando em consideração qual a concepção de homem que esta escola tenha/têm.

Nesse sentido, e considerando que o ato de educar para ser válido deve considerar a vocação ontológica do homem, a vocação de ser sujeito e as condições em que vive neste exato lugar, neste momento, neste determinado contexto e que a apropriação do conhecimento é fator de relevada importância social e histórica, torna-se necessário criar uma via, que possa favorece de forma inclusiva a educação escolar de pessoa com deficiência nesta escola de ensino regular.

Assim, acreditarmos na nova Política Nacional de Educação Especial, numa perspectiva inclusiva, e não coadunamos com essas concepções que dicotomizam as pessoas com ou sem deficiência, pois, antes de tudo, por mais que diferentes nós humanos sejamos, sempre nos igualamos na convivência, na experiência, nas relações, enfim, nas interações, por sermos humanos. A educação de alunos com deficiência, do nível básico ao superior de ensino, constitui um dos desafios que mais tem marcado os caminhos traçados para adoção de uma escola para todos, no Brasil. São muitos os entraves e de diferentes naturezas.

Em relação à educação de alunos com surdez, do nível básico ao superior de ensino, constitui um dos desafios que mais tem marcado os caminhos traçados para a adoção de uma escola para todos no Brasil. São muitos os entraves e de diferentes naturezas. Na história da escolarização desses alunos, a exclusão foi e continua sendo um destaque. Apesar dos esforços que, atualmente, estão sendo envidados para que esses alunos estejam com os demais colegas ouvintes nas mesmas turmas das escolas comuns, são em grande parte os próprios alunos com surdez que se negam a estudar em ambientes escolares inclusivos.

Vamos tratar do que está acontecendo, neste momento, na escolarização do aluno com surdez na perspectiva inclusiva da educação escolar brasileira. Abordaremos o papel da Educação Especial na inclusão desse aluno e a proposta de uma escola comum para todos, em que a questão das barreiras da surdez é tratada no conjunto das ações que visam atender ao direito à diferença de todos os alunos, na igualdade de direitos à educação, como prediz a inclusão.

A premissa de que os critérios de inclusão/exclusão estão centrados nos alunos não deixa brechas para que outros fatores, como a estrututa dos sistemas educacionais e sua organização pedagógica, como influentes e mesmo determinates do desempenho dos alunos em geral.  Em nome desses critérios, a exclusão se perpetua, e a escola não evolui em suas práticas e atendimentos.

É raro que se questionem as consequências da prática já consagrada de se decidir de modo arbitrário se um aluno é ou não é capaz de cursar uma escola comum. Não se leva em conta o fato de que esse aluno tem, acima de tudo, o direito de frequentar a escola e de se formar com seus pares da mesma faixa etária, usufruindo e se beneficiando de uma escola para todos, indistintamente.

A exclusão escolar, com base nas limitações e diferenças de alguns alunos, foi prevalente no passado, embora, tenha defensores até hoje. Nessa perspectiva, cabe aos professores e especialistas avaliar e decidir se os alunos estão ou não aptos a freqüentar as salas de aula do ensino regular e definir atendimentos, encaminhamentos, no geral, sem o conhecimento /consentimento dos pais, desconsiderando os preceitos legais que garantem a inclusão incondicional nas escolas brasileiras.

A Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Pessoa Portadora de Deficiência Decreto 3.956/2001 é clara quando se pronuncia a esse respeito. Parece que tudo concorre para que se perpetue uma situação de exclusão, devidamente amparada por interpretações equivocas da lei e por pressupostos científicos que impedem a criação de um sistema educacional realmente democrático e inclusivo.

Hoje, o paradigma educacional mais avançado é aquele que reivindica o reconhecimento e a valorização das diferenças, nas organizações escolares e demais ambientes de vida social, para que todos os alunos e as pessoas em geral possam deles participar, indiscriminadamente, sendo atendidos em suas necessidades, sejam elas temporárias ou permanentes.

A igualdade deve ser exigida, quando as diferenças inferiorizam as pessoas, mas as diferenças não podem ser negadas/ignoradas; há que se atender às peculiaridades das pessoas, dos alunos, para que se possa pleitear uma sociedade e uma escola justas, e dentro dos padrões de uma vida decente e digna.

O direito ao Atendimento Educacional Especializado -AEE- está previsto na Constituição Brasileira de 1988 e nos artigos 58, 59 e 60 da Lei 9394/96 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional-LDBEN. O AEE é um serviço da Educação Especial, instituído pela nova Política Nacional de Educação Especial, na Perspectiva da Escola Inclusiva (MEC, 2008), para atender a alunos com deficiência, transtornos globais de desenvolvimento e altas habilidades, incluídos nas turmas comuns de ensino regular.

Há quem entenda que, com o Atendimento Educacional Especializado, a Política Nacional de Educação Especial caiu novamente nas tramas do ensino especial, por não diferenciar o AEE dos serviços oferecidos pelas classes e escolas especiais, tradicionalmente, concebidos como espaços escolares que substituem o ensino regular.

O AEE identifica, elabora e organiza recursos pedagógicos e de acessibilidade que eliminem as barreiras para a plena participação dos alunos, considerando as suas necessidades específicas; complementa e/ou suplementa a formação do aluno com vistas à autonomia e à independência na escola e fora dela. Esse Atendimento difere do ensino formal proporcionado pelas escolas comuns e não se confunde com o atendimento clínico. Oferecido no horário oposto ao das aulas nessas escolas, no AEE, o aluno aprende com professores especializados o que é necessário para que possa eliminar e/ou atenuar barreiras que o impedem de conseguir um bom desempenho escolar ao cursar o ensino comum. Apóia o desenvolvimento do aluno com deficiência, transtornos gerais de desenvolvimento e altas habilidades, disponibilizando-lhe o ensino de linguagens e de códigos específicos de comunicação e sinalização; tecnologia assistiva. O serviço também adapta e produz materiais didáticos e pedagógicos, tendo em vista as necessidades específicas dos alunos, propicia o enriquecimento curricular (para alunos com altas habilidades).

Há ainda grande relutância em se adotar a perspectiva complementar do ensino especial nas escolas especiais e nas redes de ensino comum e, também, de admitir que, até mesmo no caso de alunos bastante prejudicados pela deficiência, o direito à educação em escolas comuns não cessa de existir.

Estamos, pois, defrontando-nos continuamente com grupos que se alinham com o que é próprio de um ambiente escolar restritivo e com outros que propõem uma escola que provoca o conflito, o encontro, a convivência com as diferenças de todo tipo, inclusive, as deficiências.

Cabe, então, perguntar: Qual é a escola que queremos para todos os nossos alunos? Como seriam essas escolas: ambientes desafiadores ou restritivos de ensino e de aprendizagem? Estas são as questões centrais, os desafios destes tempos de crise e indecisão das nossas escolas, diante da inclusão.

ALUNOS COM SURDEZ E A INCLUSÃO – CAMINHOS A PERCORRER, SENTIDOS A REALIZAR

Alunos com surdez que consideram as deficiências como umas das diferenças de todos nós, contrapõem-se à nova Política de Educação Especial e se sentem mais uma vez excluídos, reivindicando espaços escolares, onde estariam preservados culturalmente e utilizando a língua de sinais para se comunicarem. Eles desconsideram o direito às suas diferenças nas escolas comuns e afirmam que a igualdade, nessas escolas, os inferioriza, por questões culturais e de língua e por todo um passado de opressão que sofreram nas salas de aula, com colegas e professores ouvintes. Existem, contudo, outros, que divergem dessa posição e estão acompanhando os novos rumos traçados pela educação brasileira na Política Nacional de Educação Especial.

No caso de alunos com surdez, que apregoam o ensino escolar em escolas à parte, só para surdos, o Atendimento Educacional Especializado não lhes diz respeito e nada tem a ver com suas necessidades durante o processo de escolarização.

Para os alunos com surdez que defendem a inclusão escolar e social, o Atendimento Educacional Especializado é parte desses processos e condição indispensável para que possam responder aos desafios da escola para todos, garantindo-lhes o direito às suas diferenças ligadas à língua de sinais e à Língua Portuguesa, como segunda língua das pessoas com surdez, na modalidade escrita.

Há dois séculos, aproximadamente, instaurou-se um embate político e epistemológico entre os gestualistas e oralistas, que tem ocupado lugar de destaque nas discussões e ações desenvolvidas em prol da educação das pessoas com surdez. Enquanto as discussões se reduzem à lingua falada e à lingua de sinais, os alunos com surdez ficam relegados à condição de pessoas excluídas ou de uma minoria linguística, quem em ambas as situações, são prejudicadas, tendo em vista suas capacidades e seu potencial de desenvolvimento.
De fato, há que se desviar o foco do problema da educação dos alunos com surdez nesta ou naquela língua e buscar outros motivos que possam explicar o seu fracasso escolar, entre os quais, a qualidade do ensino escolar, das práticas pedagógicas adotadas para todos. Temos de construir um campo de comunicação e interação amplo, possibilitando que a língua de sinais e a escrita tenham lugares de destaque na escolarização do aluno com surdez.

A aquisição da língua de sinais não é garantia de pleno desenvolvimento e  aprendizagem do aluno com  surdez. É fundamental, para o seu avanço escolar, que a escola provoque e exercite sua capacidade representativa. As trocas simbólicas desse aluno com o meio físico e social propiciam o desenvolvimento dessa capacidade sem a qual o progresso intelectual se compromete.

Por essas e outras razões, legitimamos a abordagem bilingüe na educação escolar dos alunos com surdez e concordamos com a obrigatoriedade dos dispositivos legais do Decreto 5.626 de 5 de dezembro de 2005, que determina o direito a uma educação que garanta a formação da pessoa com surdez, em que a Língua Brasileira de Sinais - Libras e a Língua Portuguesa, preferencialmente, na sua modalidade escrita, constituam línguas de instrução, e que o acesso às duas línguas seja simultâneo no ambiente escolar e demais locais em que ocorra o processo educativo do aluno com surdez. Não adotamos o bimodalismo, que mistura Libras com Português sinalizado.

Compartilhamos com Morin (2001) a ideias de educação como processo de desenvolvimento e transformação plena e aberta dos seres humanos, baseadas em experiências interativas com as diferenças e constituídas na dimensão multicultural. As políticas públicas internacionais e nacionais partem do direito de todos de conviver e viver em uma sociedade sem discriminação e de que todos têm o direito de ser iguais, quando as diferenças nos inferiorizam, e o direito de sermos diferentes, quando a igualdade nos descaracteriza (SILVA, 2005).

Ao reivindicarem uma escola a parte estudar, viver, as pessoas com surdez estariam lutando por melhorias em suas vidas na escola, na sociedade em geral ou demarcando um território de poder, segregado, ou mesmo sendo controlados e manipulados novamente por ouvintes interessados em domínio acadêmico relacionado a um tema, a um objeto preciso de estudo?

Nesse contexto confuso de rupturas, de embates entre gestualistas e oralistas, o caminho definido pela Política Nacional de Educação Especial seguiu uma nova direção, ao legitimar a sua perspectiva inclusiva na abordagem bilingüe para a educação escolar dos alunos com surdez. Para nossa Política, a ruptura com o mundo ouvinte não marca ou respeita a diferença da pessoa com surdez, ou mesmo lhe retira a deficiência. As relações políticas e sociais envolvem todo e qualquer ser humano independente de sua deficiência ou não.

Havendo uma deficiência ou uma perda total da audição, não é nelas que a educação se prenderá. O que importa são as capacidades de cada um dos alunos com ou sem surdez para se inserir e entender o mundo que o cerca; não dicotomizamos as pessoas em ouvintes e surdas e o que se promove nas escolas é a troca de aprendizados entre os alunos, pela qual o conhecimento vai se construindo. A atenção deve estar voltada para o potencial natural que os seres humanos têm, independente de deficiência, diferença, limites e devemos buscar a transformação das escolas e das práticas pedagógicas excludentes em ensino inclusivo.

Nesse contexto de compreensão, é que entendemos a educação do aluno com surdez nas escolas comuns, é o que a Política Nacional de Educação Especial, na perspectiva inclusiva, orienta para o desenvolvimento do Atendimento Educacional Especializado desse aluno.

CONDIÇÃO BILÍNGUE DA PESSOA COM SURDEZ – CONSTRUINDO POSSIBILIDADES

Tomando como concepção de sujeito como o ser humano “aberto”, “disperso”, “constituído nas relações discursivas com o outro”, enfim, o “descentrado”, a constituição do “sujeito com surdez bilíngue” deverá estar em consonância com uma concepção de linguagem – como mediação simbólica, atividades discursivas -, língua – como instituição social, criação histórica e coletiva, como forma de conhecimento e um meio de construir, estabelecer, manter e modificar relações/interações com os outros - e bilinguismo – como processo de apropriação de duas línguas que coexistem, relacionam, interconectam, a partir dos processos recursivos que os sujeitos com surdez colocam “em deslizamentos” nas práticas sociais e discursivas, ao se tecerem em redes culturais e discursivas de conhecimento, na relação de comunicação interativa com os outros.

Nesse sentido, rompendo com o paradigma da dicotomização entre oralistas e gestualistas, e colocando à cena o sujeito com surdez pós-moderno, vemos que a tendência bilíngue se torna um “território” que se desterritorializa a clausura desse sujeito, a partir do enfoque com que tratamos o sujeito com surdez, suas redes culturais e de conhecimento, sua constituição na relação/interação com o outro, sob a ótica do “multicultural”. Porém, ao pensar a abordagem bilíngue para a educação linguística da pessoas com surdez, deslocamos o lugar especificamente linguístico (para este há um “olhar” dado pelos estudiosos em seus aspectos estritamente cognitivo-léxico-gramatical) e o tratamos com outros contornos: a Libras e a Língua Portuguesa, em suas variantes de uso padrão, ensinadas no âmbito escolar, devem ser tomadas em seus componentes histórico-cultural, textual, interacional e pragmático, além de seus aspectos “formais”, fonologia, morfologia, sintaxe, léxico e semântica (DAMÁZIO E FERREIRA, 2010).

Para que isso ocorra, sob a força da ressignificação do sujeito com surdez, da tendência bilíngue e da educação, como o propõe o Atendimento Educacional Especializado, não discutiu o bilinguismo com olhar fronteiriço ou territorializado, segundo o que a “literatura”, principalmente a estrangeira tem produzido. Para nós, a pessoa com surdez não é “estrangeiro” em seu próprio país, mas usuário de um sistema linguístico com características e “status” próprios, no qual cognitivamente se organiza e estrutura o pensamento e a linguagem nos processos de mediação simbólica, na relação da linguagem/pensamento/realidade e práxis social, pois a linguagem se forja na práxis social humana, porque a linguagem foi socialmente modelada a partir de uma determinada práxis social (DAMÁZIO E FERREIRA, 2010).

Assim, nesse processo de ressignificação da educação de pessoas com surdez, sob a ótica bilíngue, percebemos que muitas questões se colocam, que há muitos estudos e pesquisas a serem realizadas e que a chamada “proficiência” em duas línguas ainda parece uma ilusão, pois ainda se pensa na subordinação de uma língua a outra – L1 x L2; há mais uma visão educacional/terapêutica bilíngue, priorizando a língua de sinais; prega-se uma hierarquia nos usos da língua, como se pudesse ser definido a priori; o bilinguismo muitas vezes dá lugar ao bimodalismo; não se leva em conta a abordagem bilíngue, considerando as pessoas em seus graus de surdez – bilateral profundo, a pessoa com coclear, os filhos de pais com surdez, os filhos de pais sem surdez; a formação de professores bilíngues; os processos de se gestualizar, sinalizar, articular, oralizar, ler e escrever na aquisição e desenvolvimento das línguas. Há muitas questões e pouquíssimas respostas, mas que poderão ser revistas, retomadas, pesquisadas e estudadas sob o paradigma do sujeito pós-moderno.

Por isso, é necessário discutir que mais do que uma língua, as pessoas com surdez precisam de ambientes educacionais estimuladores, que desafiem o pensamento e exercitem a capacidade perceptivo-cognitiva. Obviamente, são pessoas que pensam, raciocinam e que precisam como os demais de uma escola que explore suas capacidades, em todos os sentidos. Se só a posse de uma língua bastasse para aprender, as pessoas ouvintes não teriam problemas de aproveitamento escolar, já que entram na escola com uma língua oral desenvolvida. A aquisição da língua de sinais, de fato, não é garantia de uma aprendizagem significativa. O ambiente em que a pessoa com surdez está inserida, em especial o da escola comum, na medida em que não lhe oferece condições para que se estabeleçam mediações simbólicas com o meio físico e social, não exercita ou provoca a capacidade representativa dessas pessoas, consequentemente, compromete o desenvolvimento do pensamento, da linguagem e da produção de sentidos.

Assim, a natureza dos problemas que envolvem as pessoas com surdez está relacionada “ao meio escolar que não expõe esses alunos a solicitações capazes de exigir deles coordenações mentais cada vez mais elaboradas, que favorecerão o mecanismo da abstração reflexionante e, consequentemente, os avanços cognitivos” (POKER, 2001:300). Concordamos com a autora quanto ao problema do atraso cognitivo da pessoa com surdez referir-se mais à sua impossibilidade de usar a sua capacidade representativa do que a uma limitação linguística, exclusivamente.

Nesse contexto de compreensão é que legitimamos a construção do Atendimento Educacional Especializado para pessoas com surdez (doravante AEE PS) a partir da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva, que disponibiliza serviços e recursos. Esse atendimento tem como função organizar o trabalho complementar a classe comum, com vistas à autonomia e independência social, afetiva, cognitiva e linguística da pessoa com surdez na escola e fora dela.

ENSINO COMUM E ATENDIMENTO EDUCACIONAL ESPECIALIZADO PARA PESSOAS COM SURDEZ - AEE PS

O Atendimento Educacional Especializado para alunos com surdez, na perspectiva inclusiva, estabelece, como ponto de partida, a compreensão e o reconhecimento do potencial e das suas capacidades, com vistas ao seu pleno desenvolvimento e à aprendizagem escolar. As diferenças desses alunos são reconhecidas, e o Decreto 5.626 de 5 de dezembro de 2005, determina o direito das pessoas com surdez a uma educação bilíngüe.

O AEE PS propicia ao aluno com surdez oportunidades de aprender as duas línguas- a Língua Brasileira de Sinais -LIBRAS e a Língua Portuguesa- e de aprender, por meio delas, o que é próprio do ensino formal, desenvolvido nas salas de aula das escolas comuns onde estão incluídos.

A organização didática do AEE PS é idealizada com base no estudo de cada caso e de um plano de ação que envolva o uso de todo tipo de recursos imagéticos e de pistas que possam colaborar com o processo comunicacional e a participação ativa e interativa dos alunos com surdez com o professor de AEE PS, o professor comum e com outros colegas de turma.

São inúmeras as barreiras a serem ultrapassadas por esses alunos para que possam progredir na sua escolarização, em escolas inclusivas. Damázio (2005) resumiu-as nas que seguem:

Ultrapassar essas e outras barreiras da educação escolar do aluno com surdez na perspectiva da inclusão tem a ver com o que questionamos neste texto: descaminhos e caminhos de uma educação na escola de todos, rompendo com os ambientes restritivos para a sua aprendizagem? Uma vez relacionadas as barreiras que restringem esses ambientes, apresentaremos o AEE PS, que, organizado em três momentos didático-pedagógicos, é uma opção que os torna desafiadores das possibilidades de aprendizagem dos alunos com surdez.

O AEE PS, na perspectiva inclusiva, estabelece como ponto de partida a compreensão e o reconhecimento do potencial e das capacidades do aluno com surdez, vislumbrando o seu pleno desenvolvimento e aprendizagem. Observa-se a obrigatoriedade dos dispositivos legais, que determinam o direito a uma educação bilíngüe para esses alunos, em que LIBRAS e Língua Portuguesa escrita constituem línguas de instrução no desenvolvimento de todo o processo educativo.

Como uma construção e reconstrução de experiências e vivências conceituais, no AEE PS, a organização do conteúdo curricular perde sua visão linear, hierarquizada e fragmentada do conhecimento e é compreendido como uma teia de relações. Esse atendimento provoca uma transformação da prática pedagógica do professor comum, para que o ensino comum possa se conectar à sua proposta.

O AEE PS é pensado em redes interconectadas, sem hierarquização de conteúdos, sem dicotomizações, reducionismos; seu ambiente educacional visa ao aprender a aprender. Suas intervenções são baseadas em planos de ações idealizadas e executadas pelo professor de AEE PS, após um estudo exaustivo de cada caso, que não prescinde do apoio de outros profissionais da área. Procura-se desenvolver nos alunos ouvintes e com surdez uma formação ampla, dimensionada e conectada aos tempos atuais.

Os contextos de ensino são definidos e escolhidos, observando-se a sua significância, representatividade conceitual e a obrigatoriedade dos conteúdos de nosso currículo oficial. Esses contextos enriquecem o ambiente de ensino e formam as redes de saberes que levam aos avanços conceituais dos alunos. Os professores, ao planejarem, fazem pesquisa bibliográfica, elaboram o mapa conceitual de conhecimentos que envolvem esses saberes, agregando as habilidades envolvidas na construção dos conhecimentos, tais como saber relacionar, experimentar, conectar saberes, analisá-los, sintetizá-los, compô-los, recompô-los, reinventá-los e outros..

Na sala de aula comum e no AEE PS, os alunos fazem perguntas, analisam, criticam, fazem analogias, associações diversas entre o que sabem e os novos conhecimentos em estudos. Os professores registram o desenvolvimento que cada aluno apresenta. O AEE PS estimula a interação e a comunicação entre o professor, os colegas e o aluno com surdez na sala de aula comum e garante a participação desse aluno nas aulas do ensino regular. Ele assegura o acesso às duas línguas: LIBRAS e Português.

A organização didática do AEE PS é idealizada a partir da formação do professor e da avaliação inicial do aluno com surdez. Em seguida, o professor elabora o plano AEE PS, envolvendo três momentos didático–pedagógicos (DAMÁZIO, 2005):

Esse AEE PS deve respeitar o ambiente comunicacional das duas línguas- LIBRAS e Língua Portuguesa- e promover a participação ativa e interativa dos alunos ouvintes com os alunos com surdez.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste texto, tivemos o propósito de demonstrar a possibilidade de as pessoas com surdez estudarem na escola comum numa perspectiva inclusiva, com o atendimento educacional especializado, oferecido como complementar a classe comum, visando ao pleno desenvolvimento e aprendizagem por meio de LIBRAS e da Língua Portuguesa escrita.

Concluímos que é preciso refutar as propostas de educação de alunos com surdez que não sejam inclusivas, pois discriminam. Assim sendo, rompemos com o embate entre gestualistas e oralistas, que prejudica o desenvolvimento dessas pessoas, ao canalizr a atenção para o problema de língua em si. De fato, o fracasso escolar de alunos com surdez na escola comum não pode continuar sendo centrado no uso desta ou daquela língua, mas principalmente na qualidade das práticas escolares oferecidas a todos os alunos, nas escolas comuns.

Embora a língua de sinais seja condição necessária para a escolarização das pessoas com surdez, ela não é suficiente, por si só, para resolver todos os problemas escolares desses alunos, assim como não é suficiente para que eles dêem prosseguimento aos seus estudos em todos os níveis de ensino.

O estudo sistemático de LIBRAS e da Língua Portuguesa escrita não é apenas um complemento necessário ao bom desempenho escolar do aluno com surdez, mas a garantia da sua inclusão em escolas comuns e na sociedade em geral. Eles não constituem um trabalho segregado e/ou substitutivo da escolarização do aluno com surdez nas turmas de ensino regular.

Negar aos alunos com surdez a possibilidade de estudar em uma escola comum na perspectiva inclusiva é, para nós, uma grande perda de espaço social, afetivo, cognitivo e linguístico no processo de escolarização dessas pessoas, nos níveis básico e superior de ensino.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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