DISCUTINDO A LEI 10.639/03 POR MEIO DE UMA REFLEXÃO SOBRE A PRÁTICA PEDAGÓGICA NO COTIDIANO ESCOLAR
Resumo: Neste artigo será discutida a Lei Federal 10.639/03 que torna obrigatório o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nas escolas públicas e privadas de todo o território nacional, abordando aspectos referentes à prática pedagógica no cotidiano escolar. O objetivo desse trabalho portanto, consiste em fazer uma reflexão sobre como a prática docente envolvendo a temática diversidade étnico-racial vem sendo desenvolvida no cotidiano escolar pelos profissionais da educação. O artigo apresenta como suporte teórico Nilma Lino Gomes, Eliane Cavalleiro, Kabenguele Munanga, Antoni Zabala e Inês Barbosa de Oliveira. A metodologia se respalda na análise de referenciais bibliográficos.
Palavras-chave: prática escolar; cotidiano escolar; lei federal 10639/03
INTRODUÇÃO
Refletir sobre as demandas e as práticas que estão presentes no contexto escolar é uma prerrogativa dos profissionais da educação, pois é o posicionamento diário no fazer pedagógico que indicará sobre o sujeito que a escola quer formar.
Dessa forma, este artigo apresenta como objetivo fazer uma reflexão sobre como a prática docente envolvendo a temática diversidade étnico-racial vem sendo desenvolvida no cotidiano escolar pelos profissionais da educação que atuam nesses espaços.
Para o alcance do objetivo proposto será percorrido um caminho sobre o histórico da Lei Federal 10.63/03, bem como serão apresentados os conceitos de prática escolar, cotidiano escolar e cegueira epistemológica. Esses conceitos serão apresentados a partir do posicionamento teórico de Antoni Zaballa e Inês Barbosa de Oliveira. Os autores Kabenguelê Munanga, Eliane Cavalleiro, Nilma Lino Gomes entre outros que se fizerem necessários, serão utilizados para dar suporte em relação a discussão sobre diversidade étnico-racial e suas especificidades.
DESENVOLVIMENTO
Em 09 de março de 2003, foi sancionada a Lei Federal 10.639/03, que versa sobre o ensino da história e cultura afro-brasileira, cuja lei ressalta a importância da cultura negra na formação da sociedade brasileira. Essa lei é resultado de um longo processo de lutas e reivindicações de movimentos sociais formados pelos afrodescendentes, bem como intelectuais engajados na luta ao combate do racismo e discriminação que estão presentes no meio social atingindo de uma forma mais impactante as pessoas negras.
Dessa forma:
[...] as pressões dos movimentos negros e, consequentemente, suas articulações com políticos mais sensíveis à questão racial brasileira, tiveram como resultado a inclusão, por meio de leis, de disciplina sobre a História dos negros no Brasil e a História do continente Africano nos ensinos fundamental e médio das redes estaduais e municipais de ensino. (SANTOS, 2005, p. 26).
Assim, a sanção da lei foi o reconhecimento de uma dívida social com os afrodescentes. Dívida essa, resultante do processo histórico construído em mais de três séculos de escravização dos negros africanos que foram submetidos ao mais profundo nível de desrespeito e desumanidade que a sociedade contemporânea tem registro.
Os movimentos sociais atuam na correção dos efeitos da discriminação que foi praticada no passado, bem como luta na continuidade de reivindicações contra o racismo e a segregação social, para que dessa forma sejam garantida a igualdade de oportunidade a todos os direitos, sendo fundamental o direito à educação (WASILEWSKI, 2015, p. 40).
Nesse sentido, a Lei reconhece a necessidade da implementação de políticas de reparações, com o intuito de ressarcir todos os danos causados aos descendestes africanos, entre elas as políticas de ações afirmativas Conjuntos de ações políticas dirigidas à correção de desigualdades raciais e sociais, orientadas para a oferta de tratamento diferenciado com vista a corrigir desvantagens e marginalização criadas e mantidas por estrutura social excludente e discriminatória. BRASIL, Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília: MEC, 2013, p. 499..
A partir da lei referida, o estudo da história e cultura afro-brasileira e africana deve seguir novas diretrizes curriculares devendo ser discutidas no cotidiano escolar sob um novo enfoque. A cultura afro-brasileira passa a ser reconhecida institucionalmente, como elemento importante da constituição e formação da sociedade brasileira, considerando os negros como sujeitos históricos, sendo valorizadas também, a cultura e as religiões de matrizes africanas.
É sabido por todos, que a identidade do povo brasileiro é constituída a partir da mistura, miscigenação de várias etnias. Mesmo que a sociedade e a escola em alguns momentos insistiram em negar esse aspecto, não promovendo as discussões necessárias sobre essa realidade, a interferência das culturas dos diferentes povos é percebida no cotidiano social sendo evidenciado no contexto escolar.
A origem da falta de discussão da temática diversidade étnico-racial, em muito passa pelo ideário da democracia racial e ainda, por aspectos relacionados à formação do profissional que devido à ausência de reflexão e também capacitação não consegue transcender os conteúdos óbvios extraídos dos livros didáticos e buscar subsídios que o respaldariam em um trabalho privilegiando os aspectos presentes no cotidiano escolar.
Cotidiano escolar é descrito por Inês Barbosa de Oliveira (2011), “como o todo que se entrecruza.” Nesse sentido, o cotidiano escolar vai dizer respeito a tudo e todos que se relacionam dentro da escola estabelecendo uma interface com a sociedade, não importando se essa relação acontece dentro ou fora do universo escolar, uma vez que escola e sociedade estão imbricadas não havendo dissociação.
É percebida, a partir da observação do campo escolar, o surgimento e a presença de muitas demandas relacionadas à diversidade étnico-racial pois é nesse ambiente que se relacionam diariamente sujeitos dos mais diferentes contextos social, econômico, étnico, religioso, cultural, etc. suscitando muitos momentos oportunos para discussão dessa temática.
No entanto, para que essas demandas sejam atendidas e não se tornem mais um problema para o contexto escolar, uma vez que nem sempre os professores e equipe pedagógica estão instrumentalizados para lidarem com elas, é necessário informação e formação, pois é sabido, que durante o processo de profissionalização da maioria dos professores, pouco ou quase nada foi estudado na perspectiva que a Lei Federal 10.639/03 preconiza. Isso significa, que para os professores trabalharem de acordo com o que a Lei delibera, precisam muito mais do que boa vontade, precisam de formação.
A formação garante em tese, que as práticas desenvolvidas no chão da escola, não sejam pautadas no senso comum, mas sejam centradas a partir do conhecimento científico, pois só dessa maneira, poderão contribuir com a formação dos alunos que passam diariamente por suas salas de aula, mostrando-lhes a contradição e oportunizando a construção dos seus próprios conceitos e ideais sobre a diversidade étnico-racial e tudo que envolve esse importante tema.
Trabalhos desenvolvidos na sala de aula a despeito da Lei 10.639/03 se inserem numa prática educativa mais voltada para problemas pontuais de um modo pragmático, sem no entanto, considera-lo como tema gerador para questionamentos de causas, consequências e compreensão de todo o processo de escravização que ocorreu no Brasil por mais de três séculos, como se pode comprovar a partir de registros históricos.
Segundo Cavalleiro (2005):
A maioria dos profissionais de educação não teve a oportunidade de realizar, de maneira sistemática, leituras a respeito da dinâmica das relações raciais e do combate ao racismo na sociedade brasileira. Nesta trajetória, acabam por trazer, em suas falas e práticas, referenciais do senso comum sobre as desigualdades entre negros e brancos na sociedade brasileira. (CAVALLEIRO, 2005, p. 82).
Muitos ambientes escolares ainda se apoiam na ideia veiculada que no Brasil vive-se numa democracia racial, como já fora dito, deixando assim de estabelecer um diálogo comprometido e necessário sobre a diversidade étnico-racial. No entanto, Nilma Lino Gomes (2005), nos adverte:
O mito da democracia racial pode ser compreendido, então, como uma corrente ideológica que pretende negar a desigualdade racial entre brancos e negros no Brasil como fruto do racismo, afirmando que existe entre estes dois grupos raciais uma situação de igualdade de oportunidade e de tratamento. [...]. (GOMES, 2005, p. 57).
Nesse sentido, corrobora-se com a ideia do mito da democracia racial, quando nas práticas docentes não é oportunizado o momento para discussão sobre a temática diversidade étnico-racial, tratando esse assunto como um tema naturalizado nas relações escolares.
Compreender como as relações sociais e escolares se configuram contemplando a diversidade existente é uma condição imprescindível para o profissional envolvido com a educação, principalmente quando se objetiva assumir o posicionamento de uma prática educativa reflexiva em que haja o rompimento com as concepções existentes que privilegiam um grupo e inferiorizam o outro. Concepções essas, advindas de um processo de formação histórico no qual a sociedade brasileira foi forjada.
Nesse sentido:
Muito mais do que um tema ou um conteúdo a ser incluído no currículo, a diversidade cultura é um componente do humano. Ela é constituinte da nossa formação humana. Somos sujeitos sociais, históricos, culturais e por isso mesmo somos diferentes. (GOMES, 2003, p. 73).
As diferenças existentes, portanto, são marcas identitárias e por isso mesmo, devem estar presentes nas discussões e nas práticas diárias.
A falta de reflexão da abrangência da prática, contraria o que vem descrito pelo teórico Antoni Zabala, que escreve que toda prática está respaldada em uma teoria, mesmo que o professor não tenha clareza da mesma (ZABALA, 1998, p. 14).
É preciso que o professor compreenda os processos educativos que deve seguir, para desta forma melhorar sua prática educativa (ZABALA, 1998, p. 15).
Para Zabala:
“Os processos educativos são suficientemente complexos para que não seja fácil reconhecer todos os fatores que o definem. A estrutura da prática obedece a múltiplos determinantes, tem sua justificação em parâmetros institucionais, organizativos, tradições metodológicas [...]. (ZABALA, 1998, p.16).
A todo momento, é latente a necessidade dos sujeitos escolares, responsáveis pelo processo de formação dos alunos, se apropriarem dos conhecimentos inerentes à sua prática, para assim, desenvolverem um ensino respaldado na teoria, ação e na reflexão, tendo por princípio atender as especificidades e demandas dos grupos sociais presentes dentro do ambiente escolar.
Essa prática deveria ter como pressuposto despertar os alunos para reflexão sobre a importância das diferenças culturais como fator identitários de cada grupo que compõe a sociedade e convive diariamente nos espaços sociais, sendo um deles o escolar. Mostrar ainda, que as diferenças entre os grupos são características inerentes a cada um, e precisam ser respeitadas mantendo assim, as especificidades e a identidade de cada contexto social.
De acordo com Munanga:
A identidade é uma realidade sempre presente em todas as sociedades humanas. Qualquer grupo humano, através do seu sistema axiológico sempre selecionou alguns aspectos pertinentes de sua cultura para definir-se em contraposição ao alheio. A definição de si (autodefinição) e a definição dos outros (identidade atribuída) têm funções conhecidas: a defesa da unidade do grupo, a proteção do território contra inimigos eternos, as manipulações ideológicas por interesses econômicos, políticos, psicológicos, etc. (MUNANGA, 1994, p. 177-178).
Nesse sentido, ao ser identificada a identidade de pertencimento dos sujeitos que se relacionam no espaço escolar, todas as diversidades da qual se compõem a sociedade seriam contempladas nesse mesmo contexto, sem com isso, pesar sobre si, juízos de valores, mas, contrariamente, serem atendidas suas especificidades, formalizando um ambiente de inclusão, análise, reflexão e construção do conhecimento, sendo o professor o mediador desse processo por meio de sua prática escolar.
De acordo com Zabala (1998, p.16): “a prática escolar é algo fluido, fugidio, difícil de limitar com coordenadas simples e, além do mais, complexa, já que nela se expressam múltiplos fatores, ideias, valores, hábitos pedagógicos, etc.”
Contudo, para que o professor trabalhe com todos esses componentes descritos, executando ações que construam uma prática reflexiva, na qual os alunos são colocados como sujeito no processo educativo, é necessário um aprimoramento constante, em que a avaliação sobre a própria prática seja recorrente, para assim, construir uma prática instigadora e consciente no âmbito escolar, devendo ser a reflexão sobre diversidade étnico-racial um elemento constante nas discussões produzidas no fazer diário.
Faz-se necessário também, uma integração, na prática dos professores, de alguns elementos que são descritos por Zabala como componentes de uma prática educativa.
Segundo esse autor, “As finalidades, os propósitos, os objetivos gerais ou as intenções educacionais, [...], constituem o ponto de partida primordial que determina, justifica e dá sentido à intervenção pedagógica.” (ZABALA, 1998, p. 22).
Nesse sentido, é necessário que o professor tenha claro, as finalidades, os propósitos, os objetivos e as intenções sobre as temáticas, mais especificamente, sobre a temática diversidade étnico-racial sabendo que o ponto de partida é o para que ensinar e o como ensinar.
Nesse sentido, Silva(2005), nos assevera:
“A grande tarefa no campo da educação” há de ser a busca de “caminhos e métodos para rever o que se ensina e como se ensinam, nas escolas públicas e privadas, as questões que dizem respeito ao mundo da comunidade negra. A educação é um campo com sequelas profundas de racismo, para não dizer o veículo de comunicação da ideologia branca”. (ROCHA,1988 apud SILVA, 2005, p. 155).
Dessa forma, visibilizar a cultura africana reconhecendo o valor da mesma na formação histórica deste pais respalda o para que ensinar. Já o como ensinar deve ser objeto de constante busca e aprimoramento nas práticas desenvolvidas pelos educadores que se deparam com esse compromisso todos os dias em milhares de salas de aulas em todos os sistemas educacional existentes no País.
Fica nítida, portanto, a necessidade do profissional da educação comprometer-se com sua prática, pois a partir do que veicula em seu fazer diário tem-se a possibilidade do rompimento ou da continuidade de um ideário que subjuga e hierarquiza as pessoas simplesmente pelas suas diferenças culturais.
Portanto, abordar a temática referente a cultura afro-brasileira e africana necessita-se de um olhar totalizador sobre todo o processo histórico ao qual está envolvido essa temática. Cuidados são necessários no sentido de não ratificar a visão que põe o negro num patamar de inferioridade, mas no sentido de construtor de uma sociedade na qual ele é sujeito.
Ao trabalhar diversidade étnico-racial, o professor não pode abordar o assunto a partir somente de seus conhecimentos empíricos, para não correr o risco de ficar preso aos conhecimentos advindo do senso comum.
Desse modo:
A capacidade de uma pessoa para se relacionar depende das experiências que vive, e as instituições educacionais são um dos lugares preferenciais, nesta época, para se estabelecer vínculos e relações que condicionam e definem as próprias concepções pessoais sobre si mesmo e sobre os demais. A posição dos adultos frente à vida e às imagens que oferecemos aos mais jovens, a forma de estabelecer as comunicações na aula, o tipo de regras de jogo e de convivência incidem em todas as capacidades da pessoa. (ZABALA, 1998, p. 28).
É notório que o professor, ao estar à frente do processo educativo em suas salas de aula, também tem em suas mãos a prerrogativa de conduzir esse processo com eficiência e responsabilidade, afim de deixar impactos positivos em seus alunos que às vezes já trazem marcas negativas de processos educativos equivocados, que não contribuíram para formar sujeitos capazes de fazer uma reflexão acerca de sua própria identidade.
Ainda em Zabala (1998) a respeito do papel do educador tem-se:
É preciso insistir que tudo que quanto fazemos em aula, por menor que seja, incide em maior ou menor grau na formação de nossos alunos. A maneira de organizar a aula, o tipo de incentivos, as expectativas que depositamos, os materiais que utilizamos, cada uma destas decisões veicula determinadas experiências educativas, e é possível que nem sempre estejam em consonância com o pensamento que temos a respeito do sentido e do papel que hoje em dia tem a educação. (ZABALA, 1998, p. 29).
Nesse sentido, todo professor, ao produzir o seu planejamento deve ter a clareza da obrigatoriedade de incluir, as Diretrizes para a Educação étnico-racial como prevê o disposto na Lei Federal 10.639/03 que diz respeito ao ensino da diversidade Étnico-Racial na disciplina de História, mas também deve ter a mesma clareza que as ações escolhidas para desenvolvimento dessa vão incidir e causar impactos diretos na formação dos discentes.
Por isso, para o desenvolvimento de trabalhos envolvendo essa temática, deve-se ter a clareza da abordagem que se quer dar e o que se quer atingir. Nesse sentido, faz-se necessário também o domínio da teoria, para que a prática não se estabeleça tendo como suporte o senso comum.
A preocupação com a maneira de organizar a prática docente, deve permear as aulas diariamente, extrapolando o planejamento e se manifestando como objeto da prática diária. Deve sair da exigência legal, da teoria, para se efetivar as práticas que vão mostrar aos alunos a contradição na qual a sociedade tem suas raízes e sustentação, dando-lhes a oportunidade de formularem a própria representação sobre todos os elementos que envolvem essa temática.
Admitir que o preconceito racial permeia as relações escolares é um passo fundamental em direção a tomada de consciência do problema que aflige nossos alunos no contexto escolar e fora dele. A partir disso, construir um trabalho que atenda as expectativas das demandas escolares é um caminho necessário para minimizar os impactos negativos que a população negra sofre diariamente nas relações estabelecidas socialmente.
Observa-se a partir de conversas com professores e alunos de diferentes níveis de ensino, que conflitos que surgem no cotidiano escolar envolvendo racismo, discriminação e preconceito, na maioria das vezes, são tratados como indisciplina. Para a resolução desses conflitos não são apresentadas intervenções adequadas, no sentido de levar os sujeitos envolvidos a uma reflexão da sua condição como sujeito pertencente a uma sociedade constituída de forma multicultural.
A prática desenvolvida pelo professor deve levar os alunos a perceberem que a sociedade se apresenta como diversa e que eles, como indivíduos e como sujeitos coletivos, devem respeitar e ser respeitados dentro de qualquer espaço ou segmento em que atuam, tornando evidente a necessidade de todos os envolvidos na educação ampliarem os horizontes em relação a concepção dessa temática.
Todos os profissionais da educação devem levar consigo a responsabilidade da prática de uma educação emancipatória, respeitando os saberes dos sujeitos, mas possibilitando um rompimento com o senso comum, o que garantirá aos alunos, atuarem como sujeitos construtores da sua própria trajetória intelectual, transcendendo essa atuação além dos muros da escola (OLIVEIRA, 2004).
Os processos de aprendizagens nos quais estamos envolvidos, reforçam a ideia que o cotidiano independente do universo escolar, tem seu próprio currículo, uma vez que a vida é entendida como plural e não pode ser dissociada do mundo em que os sujeitos atuam e se relacionam (OLIVEIRA, 2004, p. 11).
Toda escolha traz consigo intencionalidades, ideologias, desejos, possibilidades e ao escolher determinadas práticas são também escolhidas as políticas que estão explícitas ou implícitas nessas práticas, desse modo, o conhecimento teórico das escolhas efetuadas, são imprescindíveis para que os profissionais da educação possam desenvolver um trabalho com significado para si e para todos envolvidos no contexto escolar (OLIVEIRA, 2010, p. 375). É necessário que se compreenda como são produzidos os preconceitos, para que os professores possam fazer a intervenção adequada.
No ambiente escolar ainda é encontrada a ideia presente em muitas práticas escolares da negação do direito à diferença, pois em nossa sociedade é latente a prática da padronização, desrespeitando qualquer aspecto singular. Tem-se ainda, a hierarquização de alguns perfis: econômico, físico, profissional, social, entre outros, que ao se manifestarem no ambiente escolar serão causadores de exclusão do diferente. Nesse sentido, Oliveira (2010), declara:
Assim, são inferiorizados, por meio de diferentes práticas de discriminação, fundamentadas em preconceitos os mais diversos: negros, mulheres, homossexuais, pobres, gordos, feios, “burrinhos” (alunos com dificuldades de aprendizagem), deficientes, etc. (OLIVEIRA, 2010, p. 389).
É percebido que o diálogo deve ser mantido e ampliado no âmbito escolar, afim de resguardar o direito à diferença, que se manifesta em todos os cotidianos escolares. Partindo do pressuposto que as diferenças com as quais todos convivem nos ambientes escolares, são componentes da sociedade como um todo, sociedade essa, que é dinâmica e plural, pois ser diferente não significa ser melhor ou pior, mas apenas diferente (OLIVEIRA, 2010, p. 389).
Ao centrar a prática em si mesmo, desconsiderando as parcerias que podem ser estabelecidas entre os múltiplos profissionais que se relacionam no cotidiano escolar, pode-se estar privilegiando o que Inês Barbosa de Oliveira(2007), chamou de cegueira epistemológica que seria uma não aceitação do que não conseguimos ver (OLIVEIRA, 2007, p. 56). Essa cegueira impede os profissionais envolvidos no processo educacional de romper com a falta de clareza que impossibilita uma visão mais abrangente.
A falta de clareza aqui, vem descrita como os preconceitos encontrados e alimentados nos interiores das escolas, às vezes, pelos próprios profissionais da educação, como já fora descrito, respaldados no falso ideário da democracia racial.
Para minimizar esse problema, o trabalho coletivo seria um caminho a ser percorrido e certamente teríamos menos resistência em trabalhar e discutir assuntos tão urgentes no meio escolar, e passaríamos de práticas insipientes para práticas emancipatórias, tendo um ganho muito acentuado para formação do aluno.
Segundo Inês Barbosa de Oliveira:
A produção do conhecimento precisa ser sempre obra coletiva, na qual a cegueira de uns pode ser minimizada pela capacidade de ver de outros, portadores de outras cegueiras etc. Nesse sentido, o ambiente escolar ajudaria na transposição das cegueiras que cada um traz consigo, à medida que valorizasse o olhar do mundo e para o mundo que cada um traz, sendo o primeiro passo no caminho rumo às novas descobertas. (OLIVEIRA, 2007, p. 56).
Fica evidente a necessidade de discutir o a concepção que é encontrada nas práticas desenvolvidas pelos educadores sobre a composição do espaço escolar, suas funções, sua constituição formal, as ideias e ideologias, e como a partir de nossas práticas, podemos pensá-lo dentro da realidade que o compõe (OLIVEIRA, 2009, p. 18).
Ao se comprometerem com uma educação cujo olhar está sobre o sujeito da aprendizagem, os educadores se desprendem de modelos formatados e passam a construir uma educação significativa para todos os envolvidos (OLIVEIRA, 2001, p. 2). Dessa forma, o espaço para reflexão torna-se real, possibilitando avanços, principalmente para o aluno.
Nesse sentido, Oliveira declara:
Criando maneiras de fazer (caminhar, ler, produzir, falar), maneira de utilizar, tecendo redes de ações reais, que não são e não poderiam ser meras repetições de uma ordem social / de uma proposta curricular preestabelecida e explicada no abstrato, os educadores e educadoras que estão nas escolas tecem redes de práticas pedagógicas que, através de usos e táticas de praticantes que são, inserem na estrutura social / curricular criatividade e pluralidade, modificadores das regras e das relações entre o poder instituído e a vida dos que a ele estão, supostamente, submetidos. ( OLIVEIRA, 2001, p. 2).
A responsabilidade de ser o elo entre o senso comum e o saber cientifico está presente no ato de ensinar. Dessa maneira, o educador tem em suas mãos a decisão de por meio de sua prática permanecer com os modelos pedagógicos repetitivos que levam a exclusão ou criar outro modelo em que estejam presentes todas as diversidades e especificidades do contexto escolar, possibilitando crescimento e oportunidade de construção do sujeito.
Oliveira (2001), trabalha com a ideia que ao conhecer a realidade presente nas escolas, os profissionais envolvidos teriam também, maiores possibilidades de pensar e alternativas curriculares.
Nesse sentido:
Compreender concretamente essas múltiplas e complexas realidades que são nossas escolas reais, com seus alunos, alunas, professores e professoras e problemas reais, nos coloca, deste modo, diante do desafio de mergulhar nestes cotidianos, buscando neles mais do que as marcas das regras gerais de organização social e curricular, outras marcas, da vida cotidiana, dos acasos e situações que constituem a história de vida dos sujeitos pedagógicos que, em processos reais de interação, dão vida e corpo às propostas curriculares. (OLIVEIRA, 2001, p. 5).
Relata ainda, que só as experiências diárias vão dar o suporte necessário para o professor ir se forjando como profissional. Portanto, salienta, que é a partir de experiências reais, que o saber vivido é evidenciado, e que a educação passa a ter um significado para o aluno que se constitui como parte igualmente importante em todo o processo de ensino-aprendizagem (OLIVEIRA, 2001, p. 16).
É necessária a compreensão das especificidades dos múltiplos sujeitos escolares que atuam em um mesmo ambiente, fazendo-se necessário também, o respeito a cada um desses elementos que se entrecruzam tecendo redes de conhecimentos (ALVES; OLIVEIRA, 2003, p. 83).
Nesse sentido, esses múltiplos sujeitos são os alunos, que estão imbuídos de valores que foram se forjando em seus contextos sociais, influenciados por pessoas do seus cotidianos, pela mídia e pelos contextos vividos de um modo geral. Ao chegarem nos espaços escolares passam também a serem sujeitos de ações, e seu portfólio cultural passa a ser socializado.
Surge deste contexto as várias situações que eclodem no ambiente escolar. As concepções e valores de todos os sujeitos escolares são externadas no convívio diário, trazendo à tona problemas que vão recair sobre os professores. Daí, a necessidade do conhecimento teórico estar presente na prática, possibilitando reflexão, tomada de atitude, direcionamentos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Comemora-se treze anos que os movimentos sociais conseguiram ver suas lutas traduzidas em vitórias após um caminho intenso, pois a promulgação da Lei Federal 10.639/03 representou um grande avanço no campo educacional e para toda sociedade que se preocupa em viver em uma sociedade com mais equidade. Com essa Lei, estudantes brasileiros adquiriram o direito de em suas escolas contarem com o ensino da história e cultura africana e afro-brasileira em todas as disciplinas e de um modo especial na História e na Arte. No entanto, só isso não é suficiente, pois trabalhar com a cultura afro-brasileira nos diferentes níveis escolares, requer embasamento teórico-metodológico, materiais adequados, atitudes e reflexão diferentes dos encontrados nas práticas e espaços escolares, possibilitando assim, a desfragmentação de preconceitos sedimentados por um longo tempo em que a cultura afro-brasileira foi invisibilizada no contexto escolar.
Requer também, um compromisso de cada um dos profissionais que atuam no sistema educacional em vincular a prática ancorada na teoria, para que nas salas de aula, não seja reproduzido o senso comum, que impede a construção de uma educação de fato emancipatória e transformadora, mas uma educação que tenha por princípio a capacidade de romper com as marcas do preconceito, racismo e discriminação que insistem em permear a nossa sociedade. Pois sabe-se que essas características são limitadoras da sociedade que em muitos aspectos se mostra presa a um passado histórico em que os resquício do processo de formação cultural estão inculcados e impossibilitando a construção de uma sociedade a partir de um projeto societário democrático e emancipatório.
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