A CIRCULARIDADE DA POLÍTICA DE EDUCAÇÃO ESPECIAL NO BRASIL: ASSUMINDO UMA REDE MUNICIPAL DE ENSINO COMO ‘JANELA’ INTERPRETATIVA
Resumo: Este texto objetiva analisar os direcionamentos da Educação Especial a partir da Constituição de 1988, chegando à publicação do documento Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, de 2008, dando ênfase aos efeitos destes direcionamentos para a Rede Municipal de Ensino de Vitória da Conquista-BA. O percurso compreensivo assume como ponto de partida os conceitos do campo da análise de políticas. A pesquisa foi do tipo qualitativa. O olhar retrospectivo tem permitido inferir que o percurso histórico da Educação Especial no Brasil é caracterizado por retrocessos e avanços no que se refere à tentativa de assegurar o direito à educação regular e pública às pessoas com deficiência.
Palavras-chave: Educação Especial; Circularidade; Políticas Públicas.
1. INTRODUÇÃO
A busca pela compreensão acerca dos direcionamentos da Educação Especial a partir da publicação da Constituição de 1988, culminando com a publicação do documento intitulado Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, de 2008, bem como as notas técnicas orientando o atendimento educacional especializado, tem nos levado a percepção de um tipo de circularidade sinalizando avanços e retrocessos. Neste texto, questiona-se acerca do ponto de partida, e sobre as possíveis mudanças e repetições da Política de Educação Especial, destacando os movimentos de uma Rede Municipal de Ensino de Vitória da Conquista -BA
No campo da análise de políticas, no qual assumimos como base a obra de Muller e Surel, começamos a compreender um pouco da dinâmica que envolve a transformação do problema social em político, a inserção na agenda e esses são movimentos que sinalizam a construção de uma política. A nosso ver, esse mover não é pautado em uma compreensão linear, ‘objetiva’’; é, pois, passível de entendimento sob o jogo complexo das lógicas cognitivas e normativas.
Assumindo tais perspectivas, passamos a conceituar uma política pública como um construto social e como um construto de pesquisa. Na mesma direção, também passei a compreender que uma política pública é formada por um conjunto de medidas concretas que constituem a substância ‘visível’ da política, e essas medidas podem ser identificadas por meio dos recursos financeiros, reguladores e materiais.
2. A CIRCULARIDADE
Com base nesse movimento compreensivo, passamos a observar o percurso pelo qual a Política que chamamos de Política Nacional da Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva de 2008 foi sendo construída. Entretanto, a conjectura – o processo de análise – levou-nos a também questionar as bases desse movimento, ou seja, fez com que sentíssemos a necessidade de destacar os efeitos das concepções de cidadania e direito para os direcionamentos da Política de Educação Especial no Brasil. Os questionamentos e incursões possibilitou perceber os cenários de um país cuja base se centrava em um modelo agroexportador, com a presença histórica de latifúndios e mão de obra escrava, a ‘preocupação’ com o direito à educação veio a aparecer tardiamente, e não para todos (aspecto que parece explicar, ainda que parcialmente, a negligência com a educação das pessoas com deficiência).
Nesse sentido, inferimos que a Educação Especial possui dois momentos. O primeiro, caracterizado pela ação substitutiva/paralela ao ensino regular, formato no qual o poder público assumia uma postura de ‘quase’ desresponsabilização pela Educação Especial, visto que essa modalidade era oferecida pelas instituições não governamentais, filantrópicas, como APAE, Pestalozzi etc. Isso nos mostra que, historicamente, as fronteiras entre o público e privado foram muito tênues na Educação Especial (PERONI, 2009).
Todavia, em um segundo momento vivido pela Educação Especial, com base nas normativas, essa modalidade começa a assumir novos direcionamentos políticos, passando a ser caracterizada pela ação complementar/transversal ao ensino regular, o que representa um sinal de assunção da perspectiva inclusiva. Nesse momento, foi possível identificar o que julgo ser um avanço do Estado quanto às questões ligadas aos direcionamentos da Política da Educação Especial.
Nesse sentido, inferimos que tais direcionamentos políticos somente começaram a ganhar forma, em contexto nacional, com base nas normativas publicadas, a partir da década de 1980, que são: a Constituição de 1988; a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, de 1996; as Diretrizes Nacionais para Educação Especial na Básica, de 2001, bem como com a publicação do documento orientador/sistematizador em 2008, sob o título Política Nacional da Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva; além de Resoluções, Portarias, e a previsão de recursos por meio da dupla contabilização da matrícula no FUNDEB.
Acrescento que tais normativas foram permeadas pela produção de programas específicos para a área da Educação Especial: Programa Educação Inclusiva Direito à diversidade; Programa de implantação das Salas de Recursos Multifuncionais; Programa de Forfjfkmação Continuada de Professores na Educação Especial – Modalidade a Distância; Programa Escola Acessível. Todos esses programas, voltados para a área da Educação Especial, coabitam a escola, ou seja, têm a escola como último espaço.
Essas ações e esses programas, pensados no campo da Educação Especial, passaram a ser interligados ao Programa de Desenvolvimento da Educação-PDE e estas ações do PDE ganham mobilidade por meio do PAR, o qual, por sua vez, propõe um novo regime de colaboração. Ressalto que este busca proferir a atuação dos entes federados – Estados, Distrito Federal e Municípios –, envolvendo, primordialmente, a decisão política, a ação técnica e o atendimento da demanda educacional, visando à suposta melhoria dos indicadores educacionais. Acrescentamos, ainda, que, em tal regime de colaboração, os municípios nascem como (co)autores, captadores das políticas, garantindo-lhes, de certa maneira, autoria no processo. Importante fazer alusão a uma outra leitura possível a essa forma de articulação, a qual poderá ser vista como uma nova maneira de regulação da União em relação às ações locais do município. Ainda não consigo significar essa dinâmica com profundidade, isto é, perceber os efeitos dessa interligação de ações e programas.
Assumindo que essa complexidade é, de fato, inerente à análise, aproximamos-nos, ainda mais, no percurso compreensivo, da abordagem cognitiva. Esta, citada por Muller e Surel (2002), instigou-nos a apreender a dimensão simbólica da construção da política, a qual é constituída de valores, crenças, visões de mundo e de sociedade que dão sentido à ação do Estado. Para Muller e Surel (2002, p. 51):
a abordagem cognitiva repousa sobre a ideia de que uma política pública, [... ] opera como um vasto processo de interpretação do mundo, ao longo do qual, pouco a pouco, uma visão do mundo vai impor-se, vai ser aceita, depois reconhecida como verdadeira pela maioria dos atores do setor, porque ela permite aos atores compreender as transformações de seu contexto, oferecendo-lhes um conjunto de relações e de interpretações causais, que lhes permitem decodificar, decifrar os acontecimentos com os quais eles são confrontados (MULLER E SUREL, 2002, p. 51).
Com base em tais apontamentos, passamos a pensar na possibilidade de que algumas políticas públicas podem oferecer novas perspectivas; sendo assim, os objetivos das políticas ganham ênfase, pois eles constituem o que comecei a chamar de – desenho do percurso da política. Segundo Muller e Surel (2002), existem objetivos definidos, proclamados pelos tomadores de decisões e gestores públicos, e os implícitos, que estão subentendidos. Notamos, baseados nesses estudiosos que há, entretanto, uma “distância inevitável entre os objetivos de uma política, tais quais são definidos pelos ‘tomadores de decisão’, e os resultados constatados no momento da implementação. Com base nessa lógica, é possível inferir que uma política pública se apresenta, em tese, como um tipo de imagem social, que é uma representação do sistema sobre o qual tal política tem influência, agregando, também, para se fazer efetivar, um conjunto de meios organizacionais, financeiros, administrativos, jurídicos e humanos. Esse último aspecto parece representar os instrumentos, as técnicas que também tratam das relações de poder que são tecidas em um processo social concreto. Nesse referencial ou nessa ‘imagem da realidade’, os atores vão organizar suas visões, identificando problemas e definindo posturas de ação.
Na atualidade, podemos deduzir que esses ‘referenciais’ (sinalizadores da existência de uma política) da política são constituídos por movimentos que relacionam os âmbitos global e local. Compreendo, com base em Muller (2010), que o âmbito global é aquele formado por um conjunto de valores fundamentais que constituem as crenças básicas de uma sociedade, bem como uma série de normas que permitem escolher entre as condutas. Segundo Muller (2010, p.172): “una representación de la sociedad”. Já o âmbito local se refere à área de ação de uma regulação global, propriamente; por isso, podemos dizer que é um processo ativo de produção de "regras de jogo". Ou seja, se percebermos ambos os campos, global e local, como parte de um circuito (batesonamente falando), o local parece ser aquele que (retro)alimenta o funcionamento do sistema.
Assumindo esta perspectiva – a da existência da relação entre os movimentos global e local no campo dos direcionamentos das políticas –, foi que passamos a ‘olhar’ para a Rede Municipal de Educação de Vitória da Conquista. Tomando-a como contexto desse estudo, buscamos compreender tanto Município como um ente federado que obedece às normativas comuns a todo um Estado Nacional, isto é, que obedece tanto àqueles referenciais globais apreendidos; quanto aos aspectos que tratam das características locais ligadas a Rede Municipal de Educação. Assim, anunciei os cenários da Rede Municipal de Educação, enfocando a política de Educação Especial
3. A JANELA INTERPRETATIVA
Neste momento, abordamos os direcionamentos da Política de Educação Especial da Rede Municipal Educação de Vitória da Conquista. Assim, retomamos um pouco da história, da trajetória, bem como os atuais movimentos da própria rede no que se refere à atenção no campo educacional, dirigida às pessoas com deficiência. Necessário ressaltar dois aspectos: o primeiro deles é que descrevemos e analisamos adotando a premissa de que “hay brechas entre clases de descripciones, brechas que no están necesariamente em la cosa descrita” (BATESON, 1994, p. 164); o segundo é que, defendemos um tipo de olhar sobre as políticas que tem, como ponto de partida, a possibilidade de ‘aprendizagem’ dessas pelo atores. Esses aspectos são recursivos e retroalimentam a caminhada, pois reafirmam nossa perspectiva epistemológica relacionada à produção de conhecimento e destacam a percepção assumida sobre o processo político.
Inspirados por esta forma de ‘olhar’ as políticas foi que consultamos profissionais A descrição mais detalhada sobre esses profissionais está presente no ANEXO II deste estudo. ligados historicamente à Educação Especial da rede para que me ‘ajudassem a olhar’, a recontar a história, assumindo, assim, a necessidade, conforme Bateson (1986), da multiplicidade de olhares, de perspectivas.
A atenção aos sujeitos com deficiência no contexto da Rede Municipal de Educação teve início com a criação das Classes Especiais, que começaram a surgir em meados da década de 1980. Havia, no total, cinco classes especiais para toda a rede. Os alunos que frequentavam esses espaços eram aqueles percebidos pela escola como alunos com dificuldades de aprendizagem Informação obtida em entrevista com coordenadora pedagógica – especificidade inclusão escolar –da SMED – maio de 2010. Ela atua há 30 anos na Rede Municipal e participou diretamente do processo de implantação das classes especiais nas escolas.. Segundo relatos:
[...] o perfil do aluno especial das classes especiais não era o perfil do aluno incluído hoje. Tínhamos o material de avaliação com os critérios: alunos com histórico de fracasso escolar, sem avanços na escolaridade. Aí, os meninos especiais, com atraso intelectual, eram enviados para a APAE; os nossos eram os com atraso intelectual leve, dificuldade de aprendizagem (Josefine – coordenador no núcleo pedagógico da SMED –especificidade Inclusão Escolar Nome fictício – Profissional da Rede Municipal, ligada diretamente ao núcleo pedagógico – especificidade Inclusão Escolar.).
A condição de deficiência, nesse período, no cenário da Rede Municipal, era justificativa para que se enviasse o aluno para as instituições especializadas de caráter filantrópico, como a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE), a Associação Conquistense de Integração do Deficiente (ACIDE) e a Escola de Educação Especial Lions Clube (EDELC). Ressalto que instituições desse tipo começaram a ganhar contornos no Brasil a partir de 1950. Ou seja, esses espaços têm se ocupado historicamente dos processos educacionais das pessoas com deficiência no Brasil. Temos aqui ‘atores’ que historicamente influenciaram/influenciam o processo de percepção das pessoas com deficiência no contexto da rede, já que essas instituições se apresentavam, naquele momento, como espaços substitutivos ao ensino regular na história da Educação Especial de todo o município. Há, assim, uma ‘relação de poder’ que anuncia e direciona o percurso das tessituras, o qual influencia, no cenário pesquisado, o processo das interpretações, da adesão, da resistência.
Abrimos, metaforicamente, parênteses, neste momento do texto, com o objetivo de esclarecer que, para a APAE, enviavam-se, preferencialmente, os alunos com algum tipo de transtorno e deficiência mental; para a ACIDE, encaminhavam-se os alunos cegos e com baixa visão; para a EDELC, dirigiam-se os alunos surdos.
No cenário da rede, foi somente no ano de 2002, com a administração do governo do Partido dos Trabalhadores (PT), que as classes especiais foram extintas e seus alunos, inseridos nas classes regulares. Essa extinção foi impulsionada pelo movimento de inclusão escolar, que ganhava força em âmbito internacional, destacando as vantagens do processo educacional de pessoas com deficiência no contexto da escola comum (tal movimento será retomado neste estudo no eixo de análise). Muitos países começaram a mostrar um maior interesse e uma maior preocupação em relação à constituição dos espaços para a educação das pessoas com deficiência.
Nesse mesmo período, iniciava-se, também, em todas as escolas da rede, a matrícula de alunos oriundos das instituições filantrópicas – APAE, ACIDE e EDELEC. Conforme informações de coordenadoras da SMED, essas instituições filantrópicas, a partir daquele ano, começaram a enviar alunos que supostamente teriam mais condições de se adaptar à escola regular. Segundo relatos [...], havia um encaminhamento da APAE do aluno que tinha condições de estar na escola regular. (Josefine)
Em contato com diversos sujeitos, houve relatos que destacaram a complexidade, os desafios que se apresentaram nesse momento:
Houve uma imposição da lei, e a lei garante que esse aluno tem que estar na escola, mas não houve um preparo. Muitas vezes este movimento da política chega na escola sem uma preparação, uma sedução da política para o professor; quando há uma sedução, há um encantamento (Laura- gestora escolar.
Como professora de tanto tempo, sei o que passei e sei como foi difícil, como foi árduo o caminho. Eu percebo assim, Kátia, que foi uma inovação que poderia ter sido melhor se houvesse preparado primeiro o professor, se tivesse trabalho, antes, com pessoas. Mesmo sabendo que as pessoas com necessidades educativas têm o direito, mas da maneira que foi implantado não surtiu muito efeito, porque mesclou a realidade e a necessidade de se implantar. Não sei se porque lá fora, em outros países, já havia implantado e aqui houve uma tentativa de adequação à política do Banco Mundial de se investir no país, não sei, e havia uma urgência em fazer a lei acontecer. Então, ficou assim, meio alinhavado. Mas hoje eu percebo um número maior de ações do governo federal, estadual e municipal; eles têm procurado investir no social até porque os portadores já sabem dos seus direitos; chega uma hora que, se o governo, o município não oferecem a inclusão social, eles são multados, penalizados. (Laura)
O grifo acima, referente a um maior número de ações do governo federal, sinalizada pela entrevistada, parece mostrar que o conjunto de programas propostos no campo da Educação Especial ligados à formação de professores, à implantação das Salas de Recursos Multifuncionais, dentre outros, têm sido percebidos como ações favorecedoras do processo de inclusão dos sujeitos com deficiência.
Os relatos postos acima nos levaram, ainda, às conjecturas de Muller e Surel. Para eles (2002, p. 60), “na construção das narrações, existe, com efeito, uma multiplicidade de dinâmicas cognitivas que alimenta de maneira sempre imperfeita as percepções dos atores”. Assim, é possível perceber que os atores interpretam segundo suas lógicas cognitivas. Ou, segundo Bateson (1986), os sujeitos estão aprendendo o contexto, com base nas relações, no processo vivido.
Após a exposição desses relatos e a tentativa de compreensão das bases de sua produção, retomamos a ‘história’. Nesse novo cenário, foi criado o Centro Psicopedagógico – CEPS (2003-2005), um espaço construído pela Secretaria Municipal de Educação, que tinha como objetivo dar suporte à inclusão educacional dos alunos matriculados na rede. No CEPS, atuava uma equipe multidisciplinar, constituída por quatro psicólogas, duas psicopedagogas e uma professora alfabetizadora. Nesse centro, a dinâmica de trabalho privilegiava o atendimento aos alunos em turno oposto ao de estudos; havia, também, momentos de formação para os professores.
Conforme a psicopedagoga entrevistada:
Iniciamos no novo paradigma – atendimento complementar no CEPS –; funcionamos dois anos como CEPS. Sugerimos que o grupo se ampliasse com profissionais itinerantes para visitar as escolas. Ficavam neste local psicóloga, psicopedagoga e professora alfabetizadora; esta última promovia a oficina de alfabetização (Josefine - grifo meu).
Segundo Muller e Surel (2002, p. 47), a palavra paradigma associa-se a princípios abstratos. Vejamos:
Trata-se, no caso, de princípios abstratos que definem o campo dos possíveis e do dizível em uma sociedade dada, identificando e justificando a existência de diferenças entre indivíduos e/ou grupos, hierarquizando um certo número de dinâmicas sociais (MULLER E SUREL, 2002).
Nesse sentido, temos nos perguntado: a política de inclusão estaria sugerindo novas matrizes cognitivas? Segundo Brizolla (2009), a partir da percepção da simultaneidade de ações, baseada em diferentes paradigmas da área da Educação Especial sobre uma mesma política pública de inclusão escolar, sugere-se um tratamento dessa peculiaridade como manifestação da não linearidade do pensamento, com base em uma visão sistêmica, e não simplesmente como um vestígio problemático dessas relações.
Retornando à história: no ano de 2004, o município tornou-se polo do Programa Educação Inclusiva: direito à diversidade, já mencionado neste estudo. Considero importante destacar que os profissionais do Centro foram convidados a desenvolver o papel de multiplicadores da política de inclusão escolar, proposta pelo Ministério da Educação, para os gestores e professores da própria Rede Municipal de Educação e para gestores e professores dos municípios da área de abrangência. A formação do Programa Educação Inclusiva: direito à diversidade teve início no ano de 2004 e continuidade nos anos de 2005, 2006, 2007, 2008, 2009, 2010 e 2011. Atualmente, 57 municípios da área de abrangência participam desses encontros. Ancorada no estudo da obra de Muller e Surel (2002, p.51), percebo que esse programa procura valorizar o que é dito por esses estudiosos “[...] pouco a pouco, uma visão do mundo vai impor-se, vai ser aceita, depois reconhecida como verdadeira” pela maioria dos atores”.
A observação da dinâmica desse programa levou-nos a inferir que o governo federal vem utilizando, como estratégia de implementação de políticas, a formação inicial dos sujeitos, por meio de cursos de capacitação e grandes encontros temáticos, como é o caso dos seminários anuais promovidos pelo Programa Educação Inclusiva: direito à diversidade.
Ressaltados os aspectos do Programa Educação Inclusiva: direito à diversidade, destaco que, em meados de 2005, os profissionais do Centro Psicopedagógico (CEPS) foram chamados pela Secretária de Educação para uma reunião, na qual foram avisados de que o Centro seria fechado no final do ano letivo. Após a extinção do CEPS, seus profissionais passaram a constituir o Núcleo Pedagógico – especificidade inclusão escolar da SMED. Esse movimento foi justificado pelos integrantes desse núcleo como uma tentativa inicial, por parte da Secretaria de Educação, de assumir a política nacional de inclusão proposta pelo o MEC. Segundo relatos:
Passamos a compor o Núcleo pedagógico; passamos a atuar basicamente com a formação e fizemos acompanhamento dos alunos incluídos, dando suporte. Começamos como uma equipe itinerante, visitando as escolas e trabalhando com a formação. Dentro do núcleo, temos estas especificidades, ligadas ao pedagógico, porém, todo foco da inclusão é ligado a nossa especificidade. De 2006 até hoje, permanecem as ações de orientação, de formação dos professores e de adaptação. Esta última deu muito certo: adaptação para alunos com comprometimento mais acentuado, como o autismo, somado a outras dificuldades. Nosso núcleo é ligado ao pedagógico, mas temos nossa especificidade; temos contato com a coordenação, apontando algumas possibilidades de inclusão. (Josefine, grifo meu).
Nessa época, inicia-se também, no cenário da rede, a política de Atendimento Educacional Especializado, nas Salas de Recursos Multifuncionais, aos educandos com deficiência matrículados. Contudo, no ano de 2006, havia somente uma única Sala de Recurso Multifuncional para toda a rede. Esse aspecto acabou por dificultar o processo de atendimento aos alunos encaminhados.
Observamos que, com o fechamento do CEPS, houve uma diminuição considerável do atendimento direto aos educandos. É possível dizer que o CEPS, naquele espaço/tempo já antecipava a ideia de centros de apoio, apresentada pela Nota Técnica SEESP/GAB/nº09/04/2010, publicada em 09 de abril de 2010, que orientava para a Organização de Centros de Atendimento Educacional Especializado, já mostrados neste estudo.
No item abaixo, esboçamos as configurações da rede sobre a perspectiva inclusiva da política de Educação Especial. Segundo relato de uma coordenadora escolar: “há uma política pública, aí como vamos estar estrategicamente pensando sobre como vamos fazer”. (Marta – coordenadora escolar)
3. A PERSPECTIVA INCLUSIVA E O QUADRO GERAL DE AÇÕES NO CONTEXTO DA REDE
Se uma política não deve ser considerada como um conjunto de decisões, é porque sua análise permanece ligada ao estudo dos indivíduos e/ou grupos, que são os atores, homens políticos, funcionários de todos os níveis, grupos de interesse [...] Toda política assume, de fato, a forma de um espaço de relações intergovernamentais (MULLER E SUREL, 2002, p.20).
Nas palavras de Muller e Surel (2002), o conjunto dos elementos cognitivos e normativos determina também considerações práticas sobre os métodos e os meios mais apropriados para realizar os valores e os objetivos definidos. Assim, de acordo com os relatos dos entrevistados, houve, a partir do ano de 2006, uma intensificação das ações associadas à proposta da educação inclusiva, objetivando atender as diretrizes federais do Ministério da Educação. A partir desse momento, caberia aos profissionais deste núcleo – especificidade inclusão escolar – dar continuidade aos direcionamentos da política de Educação Especial/Inclusão na rede.
Com base nesse movimento, esses profissionais do núcleo pedagógico – especificidade inclusão escolar –, no contexto da rede, em 2007, sistematizaram o documento Diretrizes da Educação Inclusiva da Rede Municipal de Educação de Vitória da Conquista. Todavia, o processo de construção desse documento não contou com um movimento de debate, de discussão com os profissionais das escolas sobre o que deveria ser a política de Educação Inclusiva da rede.
[...] a ideia de diretrizes foi assim: as escolas começaram a cobrar como seria a inserção da criança na escola. Construímos as diretrizes, mas percebemos que as diretrizes ainda não atendiam/atendem essas necessidades; percebemos que necessitaríamos das diretrizes e de uma resolução. (Maria – coordenador no núcleo pedagógico da SMED – especificidade Inclusão Escolar)
O documento criado remonta, de forma sucinta, a trajetória da Educação Especial na rede, apresentando, como meta de ações, a aposta na política de formação continuada dos professores, a ação direta dos técnicos da SMED nas escolas por meio de visitas, bem como o processo de produção de material de adaptação escolar. Para Muller e Surel (2002), o conjunto da matriz implica a escolha de especificações instrumentais, que visa a animar os instrumentos escolhidos em uma direção precisa e coerente com as indicações deduzidas dos elementos.
Para esses estudiosos:
Portanto, numa palavra, é o conjunto dos elementos que faz o sistema, que levanta assim mapas mentais particulares. O interesse heurístico de distinguir estes diferentes componentes repousa, essencialmente, sobre o fato de que eles permitem isolar, analiticamente, os processos pelos quais são produzidas e legitimadas as representações, as crenças, os comportamentos [...] (MULLER, SUREL. 2002, p. 48).
Todavia, ao que parece, os novos referenciais, que sinalizavam, efetivamente, as possíveis configurações para a rede, começaram a ser confeccionados, de fato, com a publicação, em janeiro de 2008, do documento Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, já mencionada neste estudo. Nesse momento, a Rede Municipal de Educação começou a fortalecer seus movimentos, com o objetivo de atender as orientações presentes no texto do documento, as quais, convém lembrar, versavam sobre a elaboração de planos de educação em consonância com as diretrizes propostas pelo documento; a inclusão de crianças com deficiência e transtornos globais do desenvolvimento; a substituição das classes especiais pelas Salas de Recursos Multifuncionais; o desenvolvimento do trabalho colaborativo e reflexivo entre os professores e demais profissionais da educação; a socialização de experiências educacionais, dentre outras indicações. Reforçamos que parte dessas determinações já vinham sendo desenhadas/implementadas na rede, por isso, é possível dizer que houve um processo de intensificação das ações, como:
a) ênfase na presença de alunos com deficiências e transtornos na escola comum;
b) ênfase no processo de normatização da inclusão nas escolas da rede;
c) busca pela formação continuada dos profissionais da escola – professor, diretor, coordenador;
d) destaque ao Atendimento Educacional Especializado em turno oposto ao de estudos e constituição de serviços de apoio – ampliação do número das Salas de Recursos Multifuncionais, bem como da dinâmica de parcerias com as instituições filantrópicas – APAE, ACIDE – e inserção de profissional de apoio.
Sobre esses novos direcionamentos vividos pela rede, houve relatos que são indicadores de um tipo de avaliação sobre o que vem acontecendo na atualidade. Vejamos:
Hoje as escolas recebem verbas como a da acessibilidade. E hoje todas as escolas vão ter Salas de Recursos Multifuncionais e vão atender estes alunos em processos de inclusão. Eu vejo como crescimento. Acredito que vai dar certo, pois as pessoas estão cada vez mais se sensibilizando. A comunidade como um todo, a Secretaria de Educação, todos estão preocupados com a questão da inclusão. Há uma angústia, uma preocupação e estão se traçando metas e ações direcionadas ao processo de inclusão. (Laura)
É possível inferir que essas ações pareciam ter como meta a ‘construção’ da transversalidade da Educação Especial no ensino regular, ou seja, um alinhamento com a política nacional. Porém, tais ações são circundadas de movimentos de resistências, idas e vindas. Aspectos que são percebidos quando se visita as escolas e por meio do contato com os sujeitos. As falas dos sujeitos consultados manifestam também um tipo de insatisfação em relação ao ‘aligeiramento’ e aos poucos momentos de formação dos professores acerca da temática (inclusão escolar).
Segundo a avaliação de um dos sujeitos entrevistados:
O município vem proporcionando cursos para os professores, porém, os cursos não são para todos. Por exemplo, se eu estou na sala de aula e tenho um aluno com alguma deficiência, aí eu faço o curso. Eu sou contemplada naquele momento. Teria que preparar todo mundo; esperamos o curso vir para todos. Tem professor que busca se aperfeiçoar, mas, na maioria das vezes, espera por política de formação do município. Quando o professor vai fazer o curso, a direção fica na sala de aula. (Laura)
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Inseridos nesse contexto, centralizamos a discussão e a análise nos aspectos vinculados aos avanços e retrocessos da Política de Educação Especial no Brasil, dando ênfase a possiblidade de visualização dos processos vividos por uma Rede Municipal de Ensino . O movimento proposto foi permeado pela pesquisa qualitativa. Assim, afirmamos que o diálogo propositivo deveria ir além da simples descrição dos aspectos de uma Rede Municipal de Educação – no caso do meu contexto da pesquisa –, mas que poderia assumir a rede como uma ‘janela’, para compreender um pouco do que vem ocorrendo em várias outras redes municipais de educação no País, em maior ou menor intensidade, dependendo dos direcionamentos dados às políticas locais, já que, no caso de um país de dimensões continentais como o Brasil, é imperioso indagar em que medida as soluções globais oferecem alternativas aos problemas locais (MULLER E SUREL, 2010).
Tomando a rede como ‘janela’, descrevi os movimentos vinculados à aos direcionamentos, ao percurso histórico que caracteriza as interpretações locais aos direcionamentos globais no que se refere à política de Educação Especial no país. As informações sobre esses espaços, obtidas por meio de entrevistas, observações, questionários, sinalizaram as sutilezas do movimento, que foram destacadas nas falas, nos percursos de entendimento dos sujeitos, como assinalam Muller e Surel (2002) com base em suas lógicas cognitivas.
Por assim estar conduzindo o estudo, consideramos que uma etapa importante da análise do processo de implementação dessas políticas foi a do movimento de identificação dos atores sociais, os quais ainda estão mobilizando a ‘operação’ de construção ou as transformações de referenciais das políticas, inseridos no circuito que engloba o global e o local. Muller e Surel (2002, 2010) denominam esses atores de mobilizadores, agentes não passivos, os quais ocupam uma posição estratégica no sistema de decisões a serem examinadas. Uma política existe por meio da ação desses mobilizadores, que criam imagens cognitivas, que determinam a percepção do problema e de suas possíveis soluções.
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