TEORIA DO DISCURSO E A RELAÇÃO ENTRE PODER COMUNICATIVO E PODER ADMINISTRATIVO: DECORRÊNCIAS PARA A EDUCAÇÃO

Resumo: Habermas apresenta a teoria do discurso, defendendo uma concepção procedimental de política deliberativa que converge para a não separação entre jurídico e político. Apresenta a viabilidade da política deliberativa, desde que estejam institucionalizadas as correspondentes formas de comunicação e procedimentos que confiram força legitimadora à formação da vontade política, o que faz do direito um medium por meio do qual poder comunicativo é transformado em poder administrativo. No que diz respeito à educação, a dominação da racionalidade sistêmica vem se efetivando pela crescente influência da tecnocracia, distanciando teoria e práxis. Apontamos a necessidade de compreender as decorrências da teoria do discurso para a gestão de sistemas públicos, assim como sua influência sobre a educação.

Palavras-chave: Teoria do discurso; Democracia deliberativa; Poder comunicativo.

Habermas busca reparar as debilidades por ele vislumbradas na teoria weberiana da ação, almejando a superação da racionalidade voltada ao êxito, que tem foco na ação teleológica de um sujeito de ação solitário e como critério a verdade absoluta e o êxito operacional, e propõe para isso a teoria da ação comunicativa, que tem como pretensão de verdade o entendimento intersubjetivo. Desloca, assim, o fundamento da razão subjetivista para o da intersubjetividade: o foco deixa de estar apenas no mundo objetivo e volta-se ao entendimento possível. A relação de um sujeito solitário com o mundo objetivo, que possa ser representado e manipulado, dá lugar à relação intersubjetiva realizada por sujeitos capazes de linguagem e ação ao se entenderem sobre algo no mundo.

Em Theoría de la acción comunicativa (2001), Habermas esclarece que a teoria do agir comunicativo não consiste em uma metateoria, mas sim no princípio de uma teoria da sociedade que busca pela razão dos padrões críticos que utiliza. Para compreendê-la, faz-se relevante entender a que o autor se refere por “racionalidade”. Segundo Habermas, ao fazermos uso da expressão “racional” estabelecemos uma estreita relação entre racionalidade e saber, partindo da ideia de que o saber possui uma estrutura proposicional, que permite que as opiniões possam ser expostas explicitamente na forma de enunciados. O autor expõe a presente necessidade de uma teoria do agir comunicativo para que a problemática da racionalização social seja abordada de forma adequada.

Para que os sujeitos que atuam comunicativamente possam se entender sobre algo que acontece no mundo ou sobre algo que deve ser produzido neste, faz-se necessário um conceito abstrato de mundo que possa cobrar objetividade ao ser reconhecido como o mesmo mundo por uma comunidade em comunicação. Habermas faz menção a três mundos: o mundo objetivo, mundo social e mundo subjetivo. Os três mundos constituem, em conjunto, o sistema de referências com o qual contam os sujeitos que participam dos processos de comunicação. O mundo objetivo é entendido como correlato da totalidade de enunciados verdadeiros. O mundo social é pressuposto em comum por todos, como conjunto das relações interpessoais reconhecidas como legítimas por seus integrantes. Já o mundo subjetivo, ao contrário, é composto pelo conjunto de vivências a que somente um indivíduo tem acesso privilegiado. Por meio deste sistema de referências é determinado pelos participantes o que é passível de entendimento.

Habermas alerta, contudo, que os três mundos não devem ser confundidos com o mundo da vida. Este é constituído pela tradição cultural comum à comunidade, e consiste no saber de fundo compartilhado pelos participantes na comunicação, pressuposto pela totalidade de interpretações por eles realizadas. As condições de validade das expressões remetem a este saber de fundo intersubjetivamente compartilhado.

Ao versar sobre a utilização comunicativa do saber proposicional em atos de fala, Habermas faz opção por um conceito de racionalidade que traz a velha ideia de logos, remetendo à capacidade que uma fala argumentativa possui de reunir sem coações, de gerar consensos, a partir da superação pelos participantes da subjetividade inicial de seus respectivos pontos de vista em decorrência de convicções racionalmente motivadas, de modo a assegurar a unidade do mundo objetivo e da intersubjetividade do contexto em que desenvolvem suas vidas.

Para que uma manifestação seja considerada racional, é essencial que o falante estabeleça em seu enunciado uma pretensão de validade criticável, que possa ser aceita ou rechaçada pelo outro participante na comunicação. A postura de afirmação ou negação do ouvinte perante uma pretensão de validade significa que ele consente (ou não consente) com as razões apresentadas. Uma afirmação somente pode ser chamada de racional se o falante desempenha as condições para o alcance do fim ilocucionário de se entender sobre algo no mundo com, pelo menos, um ouvinte.

Habermas (2001) esclarece que o conceito de racionalidade comunicativa deve ser desenvolvido de forma adequada por meio de uma teoria da argumentação, que se refere “al tipo de habla en que los participantes tematizan las prentensiones de validez que se han vuelto dudosas y tratan de desempeñarlas o de recusarlas por medio de argumentos” (HABERMAS, 2001, p.37). Em uma argumentação, as razões estão conectadas com a pretensão de validade da emissão problematizada e sua força é medida pela pertinência das razões, que pode ser verificada por sua capacidade de convencer os participantes do discurso, motivando-os à aceitação da pretensão de validade em litígio.

Esta racionalidade imanente à prática comunicativa cotidiana faz referência à prática da argumentação como instância em que a ação comunicativa pode prosseguir quando é identificado um desacordo que não pode ser absorvido pelas rotinas cotidianas.

Habermas chama de racional o sujeito capaz de justificar suas ações fazendo uso das ordenações normativas vigentes, sobretudo aquele que busca um julgamento imparcial da questão de um ponto de vista moral, visando à resolução consensual e não o alcance de seus interesses imediatos. Para isso, o autor destaca o importante papel da argumentação, que torna possível os processos de aprendizagem por meio dos quais são adquiridos conhecimentos teóricos e morais, e também são superadas dificuldades de compreensão e autoenganos. Os participantes no processo de argumentação, no entanto, devem pressupor que a estrutura da comunicação exclui necessariamente todo tipo de coação que não seja gerada pelo melhor argumento na busca cooperativa pela verdade.

Ao fazer menção às pretensões de validade, Habermas se refere ao cumprimento das condições de validade de uma emissão. Como sabemos, os valores culturais não são universalmente válidos, mas se restringem ao horizonte de um determinado mundo da vida. Por esta razão, somente a verdade das proposições, a correção das normas morais e a correta formação das expressões simbólicas consistem em pretensões de validade universais, que podem ser submetidas à avaliação em discursos. Os atores, na busca pelo consenso, submetem seus atos de fala aos critérios de verdade, correção normativa e veracidade, assim como aos de ajuste com o mundo objetivo, mundo social e mundo subjetivo, com os quais contraem relações com sua manifestação.

O ato de entendimento, portanto, pode ser percebido como elemento de um processo de interpretação cooperativa, com o objetivo de alcançar definições da situação que sejam reconhecidas intersubjetivamente. Os membros de uma comunidade de comunicação, em suas ações interpretativas, desvendam o mundo objetivo e o mundo social que compartilham.

No agir comunicativo a linguagem ocupa um posto fundamental, visto que os participantes almejam alcançar o entendimento no que diz respeito a uma situação de ação, para que possam coordenar seus planos de ação em comum acordo. Destarte, somente o conceito de ação comunicativa percebe a linguagem como meio de entendimento por meio do qual falantes e ouvintes se referem a algo em um processo com vistas à negociação de definições e coordenação de planos de ação que possam ser compartilhados por todos.

O mecanismo de coordenação da ação é representado pelos processos cooperativos de interpretação. Logo, a ação comunicativa não se esgota no ato de entendimento no que diz respeito à interpretação. Os atores implicados perseguem na prática cotidiana suas intenções de ação próprias e, por esta razão, o processo cooperativo de comunicação deve estar a serviço do alcance de um consenso que permita a coordenação dos planos de ação ao mesmo tempo em que possibilita a cada um dos atores realizar suas próprias intenções.

O agir comunicativo depende de contextos situacionais que são compostos por fragmentos do mundo da vida dos sujeitos que participam da interação e tem como característica que os planos de ação dos sujeitos implicados se coordenem perante atos de entendimento, e não da busca egocêntrica de resultados. A prioridade, na ação comunicativa, não é o próprio êxito, mas sim a busca de interesses individuais sob a condição de que os planos individuais dos atores possam alcançar a harmonia com os demais planos diante de uma definição compartilhada da situação.

Segundo Habermas (2001), o acordo obtido na ação comunicativa é proposicionalmente diferenciado, e não pode ser induzido por uma força exercida de fora, assim como não pode ser imposto por nenhuma das partes, mas deve ser aceito como válido por seus participantes. Entende, assim, que o que é produzido por uma força externa ou é produto do uso da violência não pode constar subjetivamente como um acordo.

Habermas (2001) relata que as imagens de mundo desempenham o papel de assegurar a unidade dos grupos sociais, fornecendo aos indivíduos um núcleo de conceitos e suposições que não podem ser revisados sem que a identidade dos grupos sociais e dos indivíduos seja afetada. Nas sociedades arcaicas, os mitos cumpriam a função de fundar a unidade. No mundo moderno, nas culturas superiores, o que ocorre é a desvalorização de potenciais de explicação e justificação de tradições inteiras a partir da rescisão com figuras mítico-narrativas de pensamento. O mesmo ocorre no rompimento com as figuras metafísicas ou religiosas. Este processo de desvalorização parece, para Habermas, estar ligado a transições a novos níveis de aprendizagem.

A partir do processo de desencantamento do mundo, com a desvalorização da magia e do sagrado, os aspectos estruturais do direito e da moral tornam possível a organização das relações de direito entre sujeitos que agem de forma estratégica, e também a organização da dominação legal. Para que uma ordem possua validade e legitimidade, deve ser reconhecida intersubjetivamente como obrigatória ou vinculante. Este reconhecimento ocorre quando se apoia em ideias que trazem um potencial de justificação e fundamentação.

O fato de a estabilidade de um sistema de ação depender de sua legitimidade faz com que ele descanse sobre uma “validade consensual”, o que equivale a dizer que os membros de um grupo reconhecem as normas de ação e seu caráter vinculante, e entendem mutuamente que devem observar estas normas, conferindo um caráter de ordem legítima.

A ação comunicativa, portanto, consiste na classe de interações em que todos os atores que participam do ato de entendimento harmonizam seus planos individuais de ação e buscam seus fins ilocucionários sem reserva alguma, se diferenciando das interações de tipo estratégico justamente pela busca de todos os participantes por chegar a um acordo que atue como base para a coordenação dos planos de ação individuais.

Para Habermas (2001), de forma ideal, considerar uma norma válida significa que esta merece a anuência de todos os afetados por ela, pois regula os problemas de ação em benefício de todos. Uma norma pode ser entendida como dotada de validade social quando é reconhecida como válida por seus destinatários; ou seja, a pretensão de validade por ela apresentada é reconhecida pelos afetados, e este reconhecimento intersubjetivo funda sua validade social. Seus enunciados, verdadeiros, representam os estados de coisas existentes, e suas orações universais de dever são consideradas justificadas no círculo de seus destinatários.

A razão comunicativa, desta forma, se refere a um mundo da vida estruturado simbolicamente, que se reproduz por meio da ação comunicativa e é estruturado pelas contribuições interpretativas de seus membros. A razão comunicativa não somente oferece consistência a um sujeito ou sistema, mas participa de sua estruturação.

Como registra Lubenow (2010), no que diz respeito à concepção de democracia, Habermas confere, após Theoría de la acción comunicativa (2001), maior detalhamento no que se refere ao papel da esfera pública, que passa a ser mais ativa, penetrando mais no âmbito do político. Habermas apresenta, assim,  uma investigação mais apurada sobre o potencial político do discurso, reformulando a relação entre sistema e mundo da vida; trata de um novo modelo de circulação do poder político, centrado na concepção procedimental de democracia deliberativa.

Em Direito e Democracia (2012a), Habermas destaca que, a partir da modernidade, o homem, como sujeito privado, passa a ser visto como alguém que pode assumir papéis enquanto membro da sociedade civil, do Estado e do mundo. A filosofia prática da modernidade entende que os indivíduos pertencem à sociedade como as partes pertencem a um todo, que é constituído pela ligação de suas partes. O autor ressalta que tanto Hegel quanto Aristóteles creem que a unidade da sociedade se encontra na vida política e na organização do Estado.

Em seus estudos, Habermas (2012a) opta por substituir a razão prática pela razão comunicativa, fazendo uso da teoria do agir comunicativo. Para isso, ressalta que a razão comunicativa se diferencia da razão prática por não estar ligada a um macrossujeito sociopolítico ou a um ator singular. A razão comunicativa é possível pelo médium linguístico, que permite que interações se interliguem e que as formas de vida sejam estruturadas. Neste tipo de racionalidade, toma-se como ponto de partida que os participantes perseguem fins ilocucionários, e que estabelecem o consenso partindo do reconhecimento intersubjetivo de pretensões de validade criticáveis, apresentando disposição para acatar consequências e obrigatoriedades que resultam do consenso alcançado.

se transportarmos o conceito de razão para o médium linguístico e o aliviarmos da ligação exclusiva com o elemento moral, ele adquirirá outros contornos teóricos, podendo servir aos objetivos descritivos da reconstrução de estruturas da competência e da consciência, além de possibilitar a conexão com modos de ver funcionais e com explicações empíricas (HABERMAS, 2012a, p.19)

Para Habermas (2012a), a razão comunicativa envolve o conjunto de pretensões de validade, para além dos âmbitos moral e prático, exclusivamente. Incorpora as asserções criticáveis e abertas à argumentação. Neste sentido, diferencia-se da razão prática, que almeja a motivação e condução da vontade.

O autor menciona, também, a tensão existente entre facticidade e validade, tensão esta que a teoria do agir comunicativo busca assimilar, preservando a interpretação clássica da existência de um nexo entre sociedade e razão “que pode ser mediado de diferentes maneiras, portanto um nexo entre circunscrições e coerções pelas quais transcorre a reprodução da vida social”. (HABERMAS, 2012a, p.25)

A tensão existente entre facticidade e validade traz fortes exigências para a manutenção das ordens sociais. O mundo da vida, as instituições existentes e o direito são responsáveis por reduzir as instabilidades produzidas em um tipo de socialização baseada em tomadas de posição com um “sim” ou com um “não” frente a pretensões de validade criticáveis.

Retomando questionamentos do direito racional, Habermas procura mostrar uma nova compreensão da promessa de uma auto-organização jurídica de cidadãos livres e iguais. Entende que toda integração social não violenta pode ser compreendida como resposta à seguinte questão: “como é possível coordenar entre si os planos de ação de vários atores, de tal modo que as ações de um partido possam ser ‘engatadas’ nas do outro?” (HABERMAS, 2012a, p.36). Sugere que o engate contínuo permite o entrelaçamento das intenções de modo menos conflituoso, o que possibilita o surgimento de padrões de comportamento e da ordem social.

Seguindo Durkheim e Parsons, Habermas entende que não se constitui a estabilidade de complexos de interações apenas por meio da influência realizada reciprocamente por atores orientados pelo sucesso. O agir comunicativo, portanto, cumpre o papel de integrar a sociedade.

Para atores orientados pelo sucesso todos os componentes da situação transformam-se em fatos, que eles valorizam à luz de suas próprias preferências, ao passo que os que agem orientados pelo entendimento dependem de uma compreensão da situação, negociada em comum, passando a interpretar fatos relevantes à luz de pretensões de validade reconhecidas intersubjetivamente (HABERMAS, 2012a, p.47)

O autor registra que, historicamente, o núcleo do direito moderno é constituído pelos direitos subjetivos privados configurados na busca estratégica de interesses privados, que formam espaços legítimos para as liberdades de ação individuais. Com a sucessão do direito natural pelo direito positivo, os meios legítimos para uso da força passaram a ser monopólio do Estado, configurando-se em autorizações para dar início às ações judiciais. Os direitos privados objetivos, simultaneamente, foram complementados pelos direitos de defesa contra o próprio poder do Estado.

Habermas lembra que a facticidade da validade social é medida pela obediência geral às normas, mas entende que a legitimidade da pretensão está vinculada ao reconhecimento normativo. A norma jurídica, deste modo, pode compor a situação de diferentes formas: para os atores que se orientam pelo sucesso próprio e agem estrategicamente, as normas atuam como limitador do seu espaço de opções. Já para os atores que agem comunicativamente, a norma compõe “expectativas obrigatórias de comportamento, em relação às quais se supõe um acordo racionalmente motivado entre parceiros jurídicos”. (HABERMAS, 2012a, p.52)

Esta associação do arbítrio de cada ator com o arbítrio de todos os demais, que promove a integração social, só se torna viável tendo como referência regras normativamente válidas, sob o ponto de vista moral, contando com o consentimento racionalmente motivado de seus destinatários, ou seja, um reconhecimento não coagido. Portanto, as normas devem ser formadas por uma pretensão de validade normativa que tem como base o reconhecimento racionalmente motivado, demandando uma obediência ao direito por parte do destinatário pelo motivo não-coercitivo do dever, integrando, assim, uma ordem jurídica legítima em seu todo. “Esta análise do modo de validade do direito obrigatório traz consequências para a normatização jurídica, pois revela que o direito positivo tem que legitimar-se”. (HABERMAS, 2012, p.52)

Habermas enfatiza que o reconhecimento recíproco por parte de todos os atores dos direitos de cada um precisa ser apoiado em leis legítimas, que garantam liberdades iguais a cada um deles; isso permite que a liberdade de arbítrio de todos possa ser mantida juntamente com a liberdade de cada um. No que diz respeito às regras do direito positivo, o sistema jurídico deve garantir que o processo de legislação constitua lugar da integração social, no qual os participantes não ocupem o papel de sujeitos privados do direito, mas se assumam como membros de uma comunidade jurídica livremente associada, por meio de seu papel de cidadãos. Apresenta-se aí a necessidade de um processo de legislação no qual os cidadãos ajam enquanto sujeitos do direito, e não orientados exclusivamente pelo sucesso. As normas para a regulamentação da convivência podem ser obtidas em um acordo reconhecido normativamente.

Tendo em consideração que a legitimação de um processo de legislação está vinculada aos direitos de participação política e de comunicação, os direitos subjetivos devem ser alcançados por participantes orientados pelo entendimento em uma prática intersubjetiva.

Habermas chama a atenção para o fato de que as leis coercitivas somente podem comprovar sua legitimidade enquanto leis da liberdade por conta do tipo de processo de legislação. A positividade do direito se manifesta sob a vontade legítima de cidadãos politicamente autônomos, como resultado de uma autolegislação racional.

Os direitos dos cidadãos que visam, além da liberdade, à autonomia, complementam as liberdades subjetivas de ação. O autor entende que o direito coercitivo, ao não contar mais com o respaldo religioso ou metafísico, só pode “garantir sua força integradora se a totalidade dos destinatários singulares das normas jurídicas puder considerar-se autora racional dessas normas” (HABERMAS, 2012a, p.54). Portanto, o direito moderno é sustentado pelo papel do cidadão que tem origem no agir comunicativo. Na prática da autodeterminação organizada, a liberdade comunicativa dos cidadãos poder ser mediada por instituições e processos jurídicos.

Para que o processo de integração social, por meio das normas, ocorra, é preciso que estas sejam expostas ao jogo de argumentos mobilizadores por aqueles que agem comunicativamente. A força do direito é extraída, portanto, da aliança estabelecida pela positividade do direito com a pretensão à legitimidade.

Embora a força integradora do direito, para Habermas, provenha de fontes da solidariedade social, por meio de uma prática de autodeterminação na qual os cidadãos devem exercitar em comum suas liberdades comunicativas, o autor nos lembra que as sociedades modernas não são integradas apenas pelos valores, processos de entendimento e normas, mas também pelo sistema, que engloba mercados e o poder administrativo. Dinheiro e poder, consequentemente, configuram-se em mecanismos de integração social, coordenando as ações de forma objetiva com independência dos participantes da interação, não levando em conta, necessariamente, sua consciência intencional. Portanto, as instituições do direito privado e público permitem, também, a fundação e organização de mercados e do poder do Estado.

As realizações sistêmicas da economia e do aparelho do Estado, que se realizam através do dinheiro e do poder administrativo, também devem permanecer ligadas, segundo a autocompreensão constitucional da comunidade jurídica, ao processo integrador da prática social de autodeterminação dos cidadãos (HABERMAS, 2012a, p.63)

Habermas ressalta que o embate entre interesses não é capaz de causar uma ordem social. Tendo isto em consideração, destaca a importância de um consenso preliminar sobre valores, como postulado por Durkheim, já que a orientação por valores reconhecidos intersubjetivamente pelos participantes pode explicar a estabilidade de padrões de comportamento.

O autor utiliza Parsons para lembrar que os sujeitos aos quais a norma se destina estarão motivados o bastante à obediência somente quando internalizarem os valores nela incorporados. Segundo Habermas, Parsons se interessa acertadamente pela esfera pública política, pois é nela que os processos de legitimação se darão sob a forma de processos de comunicação públicos não organizados, a partir da igualdade concreta dos cidadãos, processo esse necessário para que se resgate a pretensão de legitimidade dos modernos sistemas de direito.

Por direito eu entendo o moderno direito normatizado, que se apresenta com a pretensão à fundamentação sistemática, à interpretação obrigatória e a imposição. O direito não representa apenas uma forma do saber cultural, como a moral, pois forma, simultaneamente, um componente importante do sistema de instituições sociais. O direito é um sistema de saber e, ao mesmo tempo, um sistema de ação. Ele tanto pode ser entendido como um texto de proposições e de interpretações normativas, ou como uma instituição, ou seja, como um complexo de reguladores da ação. (HABERMAS, 2012, p.111)

Diferentemente dos juízos morais, para Habermas, as proposições do direito contraem eficácia direta para a ação. O grau de racionalidade constitui-se na principal diferença das instituições jurídicas para as ordens institucionais naturais. Como ponto de partida, o autor toma os direitos que os cidadãos têm que atribuir uns aos outros, para que possam regular de forma legítima sua convivência, fazendo uso do direito positivo.

O processo legislativo democrático deve retirar sua força legitimadora do processo de entendimento sobre regras de convivência posto em prática pelos cidadãos. Assim, os participantes são confrontados com as expectativas normativas das orientações para o bem da comunidade. “Os direitos do homem, fundamentados na autonomia moral dos indivíduos, só podem adquirir uma figura positiva através da autonomia política dos cidadãos” (HABERMAS, 2012, p.127). Habermas ressalta que o princípio do direito aparenta fazer a mediação entre o princípio da democracia e o princípio da moral.

A legitimidade do direito apoia-se, então, em uma disposição comunicativa, enquanto os discursos se constituem em meio para a formação da vontade racional. Por meio de discursos racionais, os parceiros do direito devem examinar se uma norma dispõe do assentimento de todos os possivelmente atingidos por ela. O nexo interno entre soberania popular e direitos humanos somente será constituído, segundo Habermas, se o sistema de direitos oferecer as condições para o estabelecimento da comunicação necessária para uma legislação política autônoma.

Habermas se dedica, também, a definir o princípio da democracia, que deve ser posto em prática para que haja um procedimento de normatização legítima do direito. O princípio da democracia significa “que somente podem pretender validade legítima as leis jurídicas capazes de encontrar o assentimento de todos os parceiros do direito, num processo jurídico de normatização discursiva” (HABERMAS, 2012, p.145). Este princípio justifica a orientação performativa de membros do direito que participam de uma associação estabelecida livremente e se reconhecem como membros livres e iguais na prática da autodeterminação.

O princípio segundo o qual todo o poder do Estado emana do povo tem que ser especificado, conforme as circunstâncias, na forma de liberdades de opinião e de informação, de reunião e associação, de liberdades de fé, de consciência e de confissão, de autorizações para a participação em eleições e votações políticas, para a participação em partidos políticos ou movimentos civis etc. (HABERMAS, 2012a, p.165)

À medida que a socialização migra de socialização horizontal dos civis para formas verticais de organização, há a institucionalização da prática de autodeterminação dos civis. Isso ocorre por meio da formação da opinião na esfera pública política, da participação política - seja no interior de partidos ou não, por meio da participação em consultas e processos de tomada de decisão de corporações parlamentares e outros.

Mencionando Hannah Arendt, Habermas esclarece que o fenômeno básico do poder não consiste na chance de impor uma vontade contra vontades opostas em uma relação social, mas sim no potencial de uma vontade comum a todos, constituída em um processo de comunicação sem coações. Este poder comunicativo somente pode ser formado em esferas públicas, em um processo intersubjetivo de comunicação não deformada. O direito, neste contexto, atua como medium por meio do qual o poder comunicativo é transformado em poder administrativo. “No sistema da administração pública concentra-se um poder que precisa regenerar-se a cada passo a partir do poder comunicativo” (HABERMAS, 2012a, p.212). Assim, segundo o autor, a opinião pública, que forma o poder comunicativo por meio de processos democráticos, “não pode ‘dominar’ por si mesma o uso do poder administrativo; mas pode, de certa forma, direcioná-lo”. (HABERMAS, 2012b, p.23)

Agir comunicativo, racionalidade e educação

Habermas reconhece que a política democrática deve ser analisada não somente com instrumentos da teoria da ação, mas também da teoria dos sistemas. Critica a ideia de uma democracia radical que desconsidere o caráter sistêmico e a dinâmica das relações de poder em uma sociedade democrática. Desta forma, o uso público da razão como procedimento e a política deliberativa devem ser verificados tanto por meio da formação da vontade baseada no debate crítico racional quanto pelo viés dos sistemas político-administrativos, sabidamente governados pela economia de mercado e pelo poder. A esfera pública, portanto, consolida-se como campo de mediação conflitante entre as demandas do mundo da vida e os imperativos sistêmicos do Estado e da Economia.

O aumento da complexidade do sistema tem levado a uma mudança na influência entre este e o mundo da vida. Enquanto inicialmente o mundo da vida determinava a estrutura do sistema, à medida que o sistema se tornou mais complexo, passou também a reger o mundo da vida, perante a dominação exercida pelos meios dinheiro e poder. De instância central, o mundo da vida torna-se periférico e a educação, atrelada ao mundo da vida, sofre também consequências deste condicionamento. Os mecanismos de regência e controle do mundo sistêmico – o meio dinheiro, regente da economia, e o meio poder, responsável pela regulação do sistema político – favorecem sua autorreprodução. São estes meios os instrumentos que substituem a comunicação interpessoal de intersubjetividades orientadas ao entendimento pelos mecanismos burocráticos do sistema. Desta maneira se consolidam as tentativas de manter a manipulação do mundo da vida e o controle social. (MUHL, 2011)

Com a presença da racionalidade cognitivo-intrumental estruturada de forma hegemônica no mundo, como produto da racionalidade sistêmica, é reduzida a possibilidade de formação de consensos fundados em uma racionalidade comunicativa, que contemplem as dimensões do mundo da vida.  Os processos de violência estrutural minoram os processos de comunicação por meio de sua restrição sistemática, consolidando o processo de colonização do mundo da vida.

A dominação da racionalidade sistêmica sobre a educação vem se efetivando pela crescente influência da tecnocracia, que elimina a práxis por meio da primazia da técnica.  A interferência do sistema na esfera cultural da escola, dada por meio do planejamento administrativo escolar, faz com que passe a depender da legitimação sistêmica, ao invés de se orientar por critérios autolegitimadores.

O diagnóstico do autor [Habermas] é que o planejamento administrativo passa a afetar crescentemente o sistema cultural, levando a escola a perder sua vinculação com o mundo da vida, deixando de ser um contexto de construção comunicativa dos conhecimentos e dos valores próprios da vivência dos alunos e professores. (MUHL, 2011, p.1040)

Este movimento acaba por fazer da escola um local de aquisição de habilidades, como foco na obtenção de técnicas necessárias para que o indivíduo se insira no sistema. O conhecimento racional é reduzido a orientações e procedimentos técnicos, e teoria e práxis são distanciadas. Diante disso, mostra-se necessária a implementação da crítica ao reducionismo proporcionado pela racionalidade positivista, visando à reconstrução de uma visão ampliada de racionalidade:

Consciente de que a educação passa por um momento de crise, causada, em grande parte, pela incapacidade do sistema econômico de atender às expectativas e necessidades que ele mesmo cria, e ciente, também, do papel manipulador que o poder político exerce na dissimulação das causas desses conflitos, Habermas insiste em considerar que a humanidade pode retomar o projeto da modernidade e fazer da educação um processo de conscientização, auxiliando na instauração de uma sociedade mais justa, equilibrada e racional. (MUHL, 2011, p.1042-1043)

Habermas busca resgatar um núcleo racional da humanidade, capaz de resistir à colonização do mundo da vida, mantendo a possibilidade de emancipação. Tal resistência tem como objetivo a constituição da realidade social fundamentada na interação comunicativa livre de dominações, presente do mundo da vida. No que diz respeito à escola, entendemos que embora ela jamais deixe de sofrer interferências da racionalidade sistêmica, esta interferência pode ser mediada pela racionalidade comunicativa.

Tendo em vista que Habermas mantem a crença na emancipação da humanidade, que se dará quando estiver ligada à constituição da vontade democrática por meio da esfera pública - com a participação de todos os indivíduos envolvidos, faz-se relevante compreender as decorrências da teoria do discurso na gestão de sistemas públicos, no que diz respeito à implementação da democracia deliberativa, e de que forma seus desdobramentos podem influenciar a educação.

REFERÊNCIAS

HABERMAS, J. Três modelos normativos de democracia. Lua Nova [online]. 1995, n.36, pp. 39-53. ISSN 0102-6445.

________. Teoria de la Acción Comunicativa. Vol. I. Racionalidad de la acción y racionalización social. Madrid: Taurus, 1987a

________. Teoría de la acción comunicativa II: crítica de la razón funcionalista. Madrid: Taurus, 1987b.

________.Direito e Democracia. Entre Facticidade e Validade. (v. I) Trad. Flávio Sibeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012a.

________. Direito e Democracia. Entre Facticidade e Validade. (v. II) Trad. Flávio Sibeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012b.

LUBENOW, Jorge A. Esfera pública e democracia deliberativa em Habermas: Modelo teórico e discursos críticos. Kriterion, Belo Horizonte, nº 121, Jun./2010, p. 227-258, 2010.

MUHL, E. H. Habermas e a Educação: Racionalidade Comunicativa, Diagnóstico Crítico e Emancipação. Educ. Soc., Campinas, v. 32, n. 117, p. 1035-1050, out.-dez. 2011.