O MINISTÉRIO PÚBLICO FRENTE À GARANTIA DO DIREITO À EDUCAÇÃO, NO MUNICÍPIO DE IRECÊ-BA
Resumo: Nos últimos anos o Ministério Público (MP) apresentou-se como um possível parceiro no processo de proteção do direito à educação. Assim, analisaremos, neste artigo, as possíveis ações Ministério Público da Bahia diante das prerrogativas jurídicas de garantia do direito à educação, tendo como campo de pesquisa a Comarca de Irecê-BA, nas presumíveis atuações do Promotor da Infância e da Juventude, neste intento. Trata-se de um Estudo de Caso. Nossas bases teóricas partem principalmente dos pressupostos de Norberto Bobbio. É possível afirmar que, o caminho para que o MP se torne um parceiro efetivo - realizando ações preventivas e não só punitivas - no auxílio diante da necessária efetivação do deito à educação, ainda é logo, apesar de alguns avanços conquistados.
Palavras-chave: Direito à Educação; Ministério Público; Sistema Judiciário.
INTRODUÇÃO
Neste artigo analisaremos, a partir da realidade de um município baiano, as possíveis ações do Sistema Judiciário, representado nesta pesquisa pelo Ministério Público da Bahia, diante das prerrogativas jurídicas de garantia do direito à educação. Tais ações foram analisadas a partir da Comarca de Irecê-BA nas presumíveis atuações do Promotor da Infância e da Juventude.
É importante fazer o recorte da análise, no que se refere ao que estamos chamando de garantia do direito educacional. Assim, nossas categorias são: acesso, permanência, tanto para as crianças e adolescentes de forma geral, quanto para os alunos com necessidades especiais de aprendizagem. Também circunscreve o que denominamos de garantia do direito à educação, como categorias complementares para este estudo, as efetivas condições de estudo, como: transporte escolar, alimentação escolar, livro didático e saúde na escola, previstas em leis já identificadas e analisadas anteriormente. Compõem ainda nossas categorias de análise a necessidade do acompanhamento e atenção ao recenseamento e zelo pela frequência dos alunos em idade escolar, no Ensino Fundamental. Vale ressaltar que tais categorias de análises foram retiradas da análise da Constituição Federal de 1988, do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996).
Assim, pautado nas leis e no recorte teórico e legal, nossa análise sobre a atuação do Sistema Judiciário (Ministério Público) será baseada no que diz a voz dos sujeitos da pesquisa. Relembramos aqui que a discussão buscará sempre esta triangulação necessária: a teoria e as leis versus a criatividade do pesquisador versus informações coletadas em campo por meio da fala dos sujeitos, conforme orientações dos especialistas em metodologia da pesquisa.
O SISTEMA JUDICIÁRIO (MINISTÉRIO PÚBLICO) E A GARANTIA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
Nas últimas décadas, o Sistema Judiciário, como é definido nesta pesquisa, por meio do Ministério Público (MP), tem ensejado interferir diretamente na exigência do cumprimento do direito à educação. Esta tendência reafirma a necessidade de defesa de um direito que constitucionalmente é de todos, dever do Estado, da sociedade e da família, amplamente difundido no artigo 205 da CF1988 e 2 da LDB (9.394/96). Além de ser abordado também pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90).
Em si, a criação do Ministério Público, nos níveis Federal e Estadual e com desdobramento municipal na Promotoria da Infância e da Juventude, é um claro avanço no que diz respeito às melhorias quando à necessária solidificação das ações do Estado diante da garantia do direito educacional, prevista pela primeira vez na lei que Oliveira (2001) denominou de “Constituição de 1969”, uma Emenda à Constituição de 1967. Em todas as outras Constituições – 1824, 1891, (exceção para a de 1932/34, com passos importantes, como visto anteriormente), 1937, 1946, 1967, não foram definidos e detalhados os direitos sociais e, em específico, o direito à educação, com tamanha robustez. Este dever estatal é afirmado pela Constituição de 1988, que além deste ganho, prevê a criação desse órgão – o MP – como suporte na atribuição de zelar pelos deveres do Estado perante os direitos do cidadão.
Ao MP, instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbir-se-á da defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (CF- 1988, Art. 127). E, além disso, vale lembrar que o MP, por definição jurídica, não deve subordinação a nenhum dos três Poderes, nem pode ser identificado simplesmente como o titular da ação penal pública. Trata-se de um preceito salutar para a reafirmação do que Bobbio (2004) chamava atenção: é necessário um Estado pautado em um regime democrático, para que os direitos sejam assegurados. Isto é, fortalecido quando a Constituição de 1988 prevê a democracia como um princípio da gestão da educação, mesmo sendo um recorte apenas para a escola pública (Art. 206). Assim, a defesa do direito à educação, como um direito fundamental, é atividade permanente do Ministério Público Estadual e suas ramificações através das Comarcas, espalhadas, no caso da Bahia, pelos 417 municípios, apoiando o Estado nesta função.
Para o Dr. Motauri Ciocchetti de Souza, em Conferência realizada, em 2010, pela Organização Não Governamental (ONG) “Ação Educativa”, o direito à educação começou a ser objeto de preocupação efetiva do Ministério Público em 1996, ano em que foi criada, em São Paulo, a Promotoria dos direitos difusos e coletivos da infância e da juventude, subdividida em três Promotorias: A que lida com os infratores, casos de violência, maus-tratos etc.; a dos casos que envolve questões de adoção, de tutela e; a dos interesses difusos, que envolve a educação. A partir daí, no Brasil, o Ministério Público passa a promover ações em prol da garantia do direito à educação e é definido pelo próprio Dr. Motauri C. de Souza como um grande negociador e advogado dos direitos sociais (SOUZA, 2010).
Esta tendência demonstra, ao menos no campo das intenções, uma reafirmação do Estado moderno, no qual o cidadão deve ter seus direitos protegidos por este mesmo Estado criador, a partir da CF de 1988, do Ministério Público. Isto fica observado quando a LDB atual detalha o que a CF de 1988 determina como direito educacional, em seu Art. 5º:
O acesso ao ensino fundamental é direito público subjetivo, podendo qualquer cidadão, grupo de cidadãos, associação comunitária, organização sindical, entidade de classe ou outra legalmente constituída, e, ainda, o Ministério Público, acionar o Poder Público para exigi-lo (LDB, 9.394/96)
Erigir o direito à educação a um direito público subjetivo imputou a este direito uma proteção diferenciada. Isto, pois confere ao indivíduo a possibilidade de transformar a norma geral e abstrata contida num determinado ordenamento jurídico em algo que possua como próprio. A maneira de fazê-lo é acionando as normas jurídicas (direito objetivo) e transformando-as em seu direito (direito subjetivo) (DUARTE, 2004, 2007). Assim, dar-se-á ao procurador do direito, ferramentas mais eficazes na busca da proteção do direito requerido. Além disso, coloca o Estado como réu em caso de descumprimento da lei.
Este debate foi trazido por Oliveira (2001) quando cita a luta dos Pioneiros da Educação de 1932, ao influenciarem diretamente, na Constituição de 1934, inserindo pela primeira vez o Estado como prioritariamente responsável por garantir o direito educacional. Lembrando que tal proposição, apoiada por estes educadores, ia de encontro com os desejos da Igreja Católica e proprietários de escolas particulares, os quais credenciavam a família como prioritárias nesta questão, colocando a responsabilidade do Estado em segundo plano em outros instrumentos legais anteriores. Sobre isto, afirma Oliveira, (2001),
Se nos ativermos apenas à análise interna dos textos, tendemos a considerar sem muita importância a ordem em que aparecem; entretanto, é inegável que este debate reveste-se, entre nós, de uma disputa de significados bastante definidos e, historicamente, muito diferentes entre si. Nestes termos, ao privilegiar a formulação católica sobre o tema parece evidente a contradição entre a LDB e a CF (de 1988) (p. 38).
Por esta constatação histórica não perderemos de vista que, muitas vezes, não se trata apenas de uma displicência por parte do legislador, mas de interesses pautados em disputas bastante específicas. Porém, se levarmos em consideração esta questão, apontaríamos a inconstitucionalidade da LDB, nº 9.394/96, na medida em que coloca a família em primeira ordem e o Estado como secundário, indo de encontro com a CF de 1988, a qual faz o inverso. Mesmo não se tratando de foco central deste estudo, não poderíamos deixar passar em branco tal situação, aqui emergida a partir da fala do entrevistado.
Destaca-se aqui, também, a mudança na ordem de prioridade na defesa e promoção da ação de proteção do direito à educação, colocando a sociedade, no texto jurídico do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), como precedente ao Estado nesta função. O ECA, no Artigo 98, afirma:
As medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados:
I - por ação ou omissão da sociedade ou do Estado; II - por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável; III - em razão de sua conduta (Art. 98).
Sendo a lógica do direito, no Brasil, piramidal, ou seja, seguindo uma hierarquia entre as leis, há no mínimo uma inconsistência quando a Carta Maior de 1988, no Artigo 205, determinar que a educação é
direito de todos e dever [primeiramente] do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (BRASIL, 1988).
Observamos que a intervenção do MP, quando ocorre, é exercida de forma repressiva, a partir do dano causado, e não preventiva, com realização de ações que antecedam estas perdas, como observado na fala do entrevistado, o qual define a atuação da Promotoria em um
corte específico. Qual o corte temático aí e circunstancial? [...] É a criança [e o adolescente] em situação de risco [...], que é o Artigo 98 do ECA (Entrevistado)
Retomando a fala do informante sobre a função do MP, fica explícita a ênfase no caráter de controle na ação do MP, já exposto na legislação que define as funções do Ministério Público, quando estabelece, em primeira ordem, a preservação do direito, por meio do controle na defesa da garantia do direito à educação. O provérbio “é melhor prevenir, que remediar”, não é aplicado, para este caso.
E, para agir, o MP precisaria de um diagnóstico da realidade que pautasse sua intervenção. Porém, a ausência de um diagnóstico educacional que levasse à ação da Promotoria, é uma realidade quando o entrevistado expõe que:
No que se refere ao direito à educação, o direito de acesso....Para ele [o MP] partir para uma ação judicial ele [o MP] tem que, primeiro conhecer a sua realidade [realidade do Município de Irecê-BA]. Então, interessante é que ele [o MP] faça uma coleta de dados (Entrevistado).
O Capítulo II do ECA, “Das Medidas Específicas de Proteção”, prevê como ação do Promotor da Infância e da Juventude, amparado no Art. 101, inciso III, em caso de um ato infracional por parte de uma criança ou adolescente condicionar como pena a “Matrícula e frequência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental”. Isto também é feito, segundo o entrevistado,
Inclusive nas nossas remissões , quando um adolescente comete um ato infracional simples, por exemplo, um furto, apropriação indevida... A gente diz, vou aplicar uma remissão, de caráter educativo, vai prestar um serviço para a comunidade, cumulada com a sua inclusão na frequência escolar, que é uma medida de proteção (Entrevistado).
Nesse sentido, o ECA, na fala do entrevistado, mesmo que de forma punitiva, abre a possibilidade para ações da justiça nas quais as crianças e adolescentes se tornariam obrigadas à frequentar a escola. Há a demonstração de preocupação e consciência sobre a importância da escola como um espaço educativo. Nesse sentido, o direito à educação ficaria assegurado como forma de punição, por cometer um ato infracional. Não estaríamos aqui diante de um caso tratado como se fosse uma patologia social cíclica: supomos que o aluno não tem oferta adequada de escola ou a tem, mas por diversas questões esta escola não é competente em mantê-lo, o que abre espaço para ocorrência de atos considerados infracionais diante da lei. E por isto, a criança e adolescente têm como punição a obrigatoriedade de retornar para esta mesma escola. Esta seria a interpretação mais adequada para a situação? O Estado falha, o “fiscal” do Estado – o MP – falha e o aluno paga? Consideramos estranha esta colocação.
O atendimento educacional individualizado para portadores de necessidades especiais de aprendizagem é um direito exposto em lei, quando o artigo 208 na CF de 1988 define em seu inciso III, como direito, o “atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino”. Exceto este caso, não houve outra demanda registrada a partir dos dados coletados, reafirmando o entrevistado que: “Até agora, fora este caso, podemos dizer que do ponto de vista do acesso não temos demanda nenhuma” (Entrevistado). De fato, o problema de acesso a este ensino é, hoje (2013), pontual e circunstancial, foi estruturalmente resolvido segundo SOUZA, (2010), mas ainda é um direito a ser conquistado.
Esta constatação de Souza (2010) tem harmonia com as afirmações de Romualdo Portela de Oliveira (2001) quando este autor fala do dispositivo que trata da igualdade de condições para o acesso e permanência à escola, demostrando que a primeira questão – o acesso – parece estar vencida, com as seguintes ponderações já apontadas acima. Mas o problema se deslocou para o interior da escola (com causas também extraescolares). Mesmo observando um avanço em termos de igualdade de todos perante a lei, Oliveira enfatiza:
um dos mecanismos mais conhecidos de exclusão já não se produz no caminho até a escola (falta de vagas por exemplo), mas na própria ação da escola, que reproduz e estigmatiza parcelas da população, levando-as ao abandono precoce da escola (p. 24-25).
Corroborando com o cenário municipal até aqui traçado, Chauí (1995) resume alguns dos principais traços de nosso autoritarismo social, que por sua vez dificulta a relação necessária de busca do cidadão pela garantia dos seus direitos sociais. A autora considera que a sociedade brasileira se caracteriza pelos seguintes aspectos:
... incapacidade para operar com o princípio liberal da igualdade jurídica e para lutar contra formas de opressão social e econômica; para os grandes, a lei é privilégio; para as camadas populares, repressão. A lei não consegue figurar o pólo público do poder e da regulação dos conflitos, nunca definindo direitos e deveres dos cidadãos. Por este motivo, as leis aparecem como inócuas, inúteis, ou incompreensíveis, feitas para serem transgredidas e não para serem transformadas [ou transformadoras]. O poder judiciário surge como distante, secreto, representante dos privilégios das oligarquias e não dos direitos da generalidade social (p. 75).
No cenário observado neste artigo, a demanda por este direito fica subdimensionada e só passaria a ser demanda positiva, dimensionada, quando as pessoas saírem de um mundo vazio de direitos, obscuro, para o mundo real. Prevalece a constatação de que há um histórico distanciamento entre a população e os Órgãos de Justiça. Isto foi pontuado por Santos (1989 apud HORTA, 1998, p.8), destacando que a distância dos cidadãos em relação à administração da justiça é tanto maior quanto mais baixo é o estado social a que pertence.
A segunda e terceira geração dos direitos, como a exemplo dos direitos sociais, como o direito à educação pressupõe o Estado como principal gestor destes direitos (SANTOS, 1997, p.12-13) e este mesmo Estado como principal violador de suas obrigações. No Município pesquisado, por mais que a tensão exista, pois sabemos que há problema na garantia dos direitos, esta tensão fica subdimensionada quando não são encontradas ações concretas de defesa deste direito por parte do Ministério Público, como já foi observado, órgão que nasce para exercer justamente a função de garantir a função do Estado na promoção dos direitos. E a sociedade também não vai à luta, demonstrado total apatia diante desta necessidade, como já observado.
Isto confirma o que Chauí e Nogueira (2007) observaram, ao afirmarem que
Quanto mais caminhamos para o século XXI, mais a sociedade despolitizou-se, entregou-se ao econômico, buscou refúgio no mercado e virou as costas para o Estado. Por essa via, os cidadãos passaram a desconfiar de seus políticos e de suas instituições, afastaram-se da política e viram a política ser reduzida a um amontoado de formas pragmáticas e incolores de gestão sistêmica (p. 219).
Porém, prevalece a quase que total ausência do Poder Judiciário na ação de promover, ou seja, de agir diretamente na prevenção em prol da garantia do direito educacional. Reproduz-se, no nível municipal analisado, uma lógica de Estado mínimo, como já afirmava Horta (2004). Trata-se de um estado Máximo para a economia e Mínimo para a garantia dos direitos sociais. Mesma lógica neoliberal de ordenação das leis e de ação do Estado, apontada por Oliveira (2001) e Horta (2004).
Sobre a questão da permanência ou evasão escolar, há o entendimento do informante da Promotoria de que são possíveis “medidas de repressão” e que elas também são pensadas:
Inclusive pode ser até uma hipótese de suspensão do poder familiar; o Promotor pode entrar com uma ação direcionada, mas voltando para a questão difusa... E ele pode instaurar um Inquérito Civil, promover uma ação civil pública e verificar se está havendo uma política pública, um programa específico de inclusão destes adolescentes para combater a evasão... (Entrevistado).
Veja que há uma intenção clara de intervenção nos casos de omissão. Contudo, prevê-se uma intervenção drástica. Mas, cabe o questionamento: um Estado que não promove sua função de prevenir, estaria apto a punir? Claro que tudo isto se encontra no campo das intenções, pois não há casos reais nesta promotoria, até onde vai a fala do entrevistado, de intervenção por meio da repressão. Porém, em sendo assim, tratar-se-ia de um Estado máximo para promover a repressão e mínimo para trabalhar com a prevenção.
Assim como no campo da lei escrita – avesso da lei “vivida” (COMPARATO, 2009) – as intenções, se aplicadas, parecem dar conta dos principais problemas relacionados à proteção do direito educacional. Prevendo, no campo do ideal, a ação conjunta para garantir direitos, o informante interpela:
Teremos ai o quê?...Teremos uma atuação cíclica, porque vem da comunidade, da família, da comunidade que comporta várias famílias que vai procurar o Ministério Público, que pode fazer uma ação preventiva, um diálogo com todos os diretores de todas as escolas e, se verificar esta irregularidade, promover o judiciário... E até fazer uma reunião com o Secretário de Educação e com o próprio Prefeito, para poder através de um diálogo, de um termo de ajuste, garantir este acesso à educação (Entrevistado).
O Ministério Público (MP), como o “grande negociador”, nas palavras de Souza (2010), entraria em campo, para fazer a ponte entre as demandas da sociedade e as funções do Poder Público, neste caso a Prefeitura Municipal, por meio de sua Secretaria de Educação, para buscar garantir os direitos. Se não esbarrasse na dificuldade histórica nacional de transformar lei em direito adquirido, conforme observa Comparato (2009), esta articulação seria uma solução em potencial para enfrentar os desafios educacionais do nosso País.
Mais uma vez, a compreensão de que todo o sistema não está cumprindo com o seu papel, fica clara, inclusive na afirmação do próprio entrevistado:
No momento, a educação está falhando, o sistema está falhando, a rede está falhando e está havendo assim esta evasão escolar. Aí é um raciocínio indireto que eu faço (Entrevistado).
Da mesma forma como os dados, coletados por meio da entrevista, demonstram a ausência de ações voltadas ao acesso à Escola, também os dados não demonstram que há um acompanhamento sobre o problema da evasão e reproduz-se a ciência, por parte do MP, da falta de dados da realidade educacional do município pesquisado:
Agora dados... Eu teria que estar acionando este Conselho... Estes diretores ...Para ver como é que está olhando estas fichas de frequência e os dados que eles têm à disposição para a gente estar analisando...(Entrevistado).
Sobre possíveis causas da evasão, ao assumir a possibilidade de existência, são pontuadas possíveis causas intrafamiliares, como hipótese para esta questão, pois para o entrevistado “geralmente esta questão da educação do adolescente, ela está associada a um problema familiar, a uma crise familiar” [...](Entrevistado).
Já como possível ação para buscar o fortalecimento do Ministério Público na proteção do direito à educação foi enfaticamente citado o Programa “O Ministério Público (MP) e os objetivos do Milênio: saúde e educação para todos”. Este Programa, inspirado na Convenção do Milênio , de 2000, estabeleceu os 8 (oito) macro-objetivos de desenvolvimento do Milênio, até 2015,Foi implantado, na Bahia, de forma embrionária, em Itabuna-BA, em 2008, e lançado em âmbito estadual na Semana do Ministério Público de 2009, em Salvador. Em 2011, foi inserido como meta estratégica do Ministério Público da Bahia e conta, desde este ano, com a Universidade Federal da Bahia (UFBA), dentre outros, como parceira na execução das ações. No site do Programa do MP baiano, esta descrito como objetivo geral:
Exercer o papel ministerial de fiscalização de dois setores vitais da sociedade, visando efetivar os direitos de cidadania de crianças, adolescentes e enfermos, contribuindo para a prestação de serviços públicos de qualidade nas áreas de educação e saúde (milenio.mpba.mp.br).
Porém, este Programa ainda não foi implantado no município pesquisado, segundo o entrevistado. Ao tratar do problema da defesa do direito à educação, por parte do Ministério Público Estadual, especificamente, na Comarca de Irecê-BA, ele afirma:
Agora, eu acredito que se o Ministério Público atuar, naquele programa Objetivos do Milênio, saúde e educação de qualidade para todos [...] Que trabalha com esta questão estrutural, podemos melhorar...A realidade da Bahia tem problemas semelhantes (Entrevistado).
Sobre outro quesito, que para esta pesquisa é categoria analítica, de forma complementar, para a definição de garantia do direito á educação, o entrevistado demonstra conhecer, em geral, a realidade da deficiência de material didático, transporte escolar, saúde na escola, merenda, ao afirmar:
Há problemas com transporte escolar, que muitas vezes é feito de forma adequada, não estão muitas vezes cumprindo as diretrizes, a cartilha que envolve o transporte escolar... Problemas com a merenda escolar, problemas com assistência á saúde, material didático...O que muito se tem nas escolas são os livros que ficam ali sem um espaço adequado para que aquele livro fique guardado para que o aluno tenha acesso (Entrevistado).
Estes quesitos, relacionados às efetivas condições para o acesso a este direito, são previstos em lei, quando a LDB em vigor detalha o direito à educação em seu título III, artigo 4º, dando mais especificação, sobre esta questão, aos termos dos incisos do artigo 208 da Constituição Federal de 1988, quando descreve: VIII - atendimento ao educando, no ensino fundamental público, por meio de programas suplementares de material didáticoescolar, transporte, alimentação e assistência à saúde;
Se levarmos em consideração as constatações até aqui expostas, não seria novidade tal ausência de busca pela garantia do direito a estes itens que são definidos como suporte para a efetivação do direito à educação. Em escala decrescente, poderíamos dizer que, se não há reclamação de falta de condições de acesso, tampouco de permanência, nem de questões relacionadas aos alunos com necessidades especiais de aprendizagem, seria difícil imaginar que a população possa chegar à Promotoria para fazer reclamações quanto à merenda, transporte, saúde e material didático, já que possivelmente são vistos como “luxo” pela sociedade.
Outra questão que nasce a partir da entrevista realizada diz respeito ao acúmulo de atribuições da Promotoria, o que apenas confirma o que diz o imaginário do senso comum. Que a justiça é lenta, no Brasil, todos sabemos. Sousa (2010) afirma que de cada 100 (cem) processos que chegam às Promotorias por mês, apenas 10 são julgados. Ou seja, há um histórico de acúmulo de processos que formam uma “bola de neve” para os profissionais do setor que só cresce nos últimos anos, por razão que não cabem ser aprofundadas neste estudo.
As informações de campo nos mostraram que há um déficit no atendimento dos processos, culminando com um acúmulo de atividades. Assim, há uma postura de promover ações que são prioritárias, na medida que,
O primeiro trabalho que estamos fazendo aqui é de reduzir a questão processual, dando vazão... O segundo momento, para que a gente fortaleça a ação do Ministério Público aqui, para que a Comunidade sinta que há um promotor e uma promotoria atuante na infância é, justamente fazer este diálogo entre redes. (Entrevistado)
A ação por prioridade, neste caso, coloca as ações preventivas em segunda ordem. Isto parece culminar com as conclusões que podem ser retiradas da análise feita até aqui. Não se pode ignorar que é necessário dar vazão aos processos que já existem, mas até que ponto um direito que já é lei desde 1988 deve esperar para ser consagrado na prática? Se há um efeito “bola de neve” como afirma Souza, quando é que as ações preventivas, ou mesmo punitivas, relacionadas à educação serão executadas? Se retornarmos à análise inicial, neste capítulo, notaremos que as ações desta promotoria, quando se trata da garantia de direitos, tende a tratar de litígios considerados os mais “graves”, como o uso de drogas, violência intrafamiliar e outros delitos mencionados pelo entrevistado.
Contudo, se analisados os níveis de obrigação do Estado, pautando-nos nas ideias de Abramovich (2005, p. 194-195), tendo o Sistema Judiciário como parâmetro, concluiríamos, até aqui, que a obrigação mais próxima de se efetivar é a de respeitar, que se define pelo dever do Estado de não interferir nem obstaculizar ou impedir o acesso ao desfrute dos bens que constituem o objeto do direito. Por outro lado, é observada negligência e quase que total ausência MP na obrigação de proteger, no sentido de evitar que terceiros interfiram, obstaculizem ou impeçam o acesso a esses bens; também na obrigação de garantir, assegurando que o titular do direito tenha acesso ao bem, pois são claras as carências de ações concretas, ficando o Poder Judiciário, apenas nas discussões teóricas, proposições e intensões, sem demonstração de ações reais em prol destas obrigações estatais. E, por último, esta realidade se repete na negligência quanto à obrigação de promover o direito que, para Silveira (2008) são as mais onerosas, por se caracterizarem pelo dever de criar condições para que os titulares do direito tenham acesso ao bem.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Quanto às ações do MP, algumas questões ficam evidentes: a) há clareza, por parte do entrevistado, sobre o recorte de ação, de objetivos e possibilidades de intervenção na garantia deste direito, e b) há uma ratificação na legislação quanto à função do Estado moderno, como protetor corresponsável junto à família, com apoio da sociedade.
Em sendo o direito à educação um direito fundamental circunscrito na CF de 1988, as crianças e adolescentes estão em situação de risco, quando o Poder Público, a sociedade ou a família deixam de promover a proteção de tal direito. Portanto, a criança e o adolescente que não têm o direito à educação assegurado se encontram em situação de risco e isto fica de alguma forma em segundo plano quando o entrevistado afirma que as principais ações desta Promotoria estão ligadas aos atos infracionais e pequenos crimes cometidos por este público.
E, ainda, tendo em vista os três, dentre os quatro níveis de obrigação governamentais com relação à educação, trazidos por Katarina Tomasevski (2001) e analisados por Silveira (2008), consideramos, a partir de dados colhidos nesta pesquisa que o Sistema Judiciário, no município foco desta investigação, não vem cumprindo com suas funções, pecando na garantia de: a) acessibilidade, na medida em que não encontramos medidas efetivas diante da obrigação de garantir educação para todas as crianças do ensino obrigatório, com a sua gratuidade e sem discriminação. b) aceitabilidade, pois não há ações de regulação e supervisão, para assegurar que a educação esteja disponível, acessível e de boa qualidade, garantindo normas mínimas, respeito à diversidade e aos direitos dos educandos. E, por fim, c) a adaptabilidade, pois não existem demandas do MP para que as escolas se adequem às necessidades dos alunos visto como “normais” ou com alguma necessidade especial.
São projetadas ações futuras, ações propostas, a partir da legislação em vigor desde 1988, conforme já observamos, há 25 anos. Estas reflexões, até aqui, reafirmam as ideias de Norberto Bobbio (2004) quando o autor diz que o problema não é justificar os direitos sociais, como o direito à educação, mas justamente na sua efetiva proteção. É notável o entendimento do titular do Órgão responsável pelas ações sobre a necessidade da garantia do direito, assim como as conjecturas sobre ações possíveis de proteção, mas no campo das intenções, com pouca presença de atividades práticas para a sua efetivação.
Assim, entendemos que cumprimos com nossa função de contribuir como os estudos, ainda parcos, sobre o direito à educação no Brasil. É importante destacar que, apesar de ser um tema relativamente novo, existem estudos profícuos no Brasil nesta área, mas, ao mesmo tempo, há uma latente necessidade de aprimorarmos este debate cada vez mais.
REFERÊNCIAS
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