RESULTADOS PARCIAIS DE ESTUDO DE CASOS DE CENTROS PÚBLICOS EXCLUSIVOS DE EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS (EJA)
Resumo: O presente artigo apresenta resultados parciais da pesquisa de doutorado (em andamento) sobre centros públicos que ofertam exclusivamente EJA e que têm atraído numeroso contingente de matrículas, contrastando com a tendência dominante de queda no país. O trabalho contextualiza o cenário das políticas públicas para a modalidade, apresenta breve levantamento da literatura acerca do tema e discute resultados preliminares da pesquisa, os quais indicam que as escolas que ofertam exclusivamente EJA apresentam fatores pedagógicos e de gestão que respondem melhor às necessidades de aprendizagem e condições para conciliar estudo e intermitências da vida adulta, acolhendo melhor a diversidade dos sujeitos inseridos na modalidade, pois estão focadas nas questões que circundam este grupo etário.
Palavras-chave: Educação de Jovens e Adultos (EJA); Centros Públicos de EJA; Políticas Públicas de EJA
INTRODUÇÃO
A pesquisa de doutorado, ainda em curso, intitulada Estudo de casos de centros públicos exclusivos de EJA, está inserida em estudos que analisa políticas públicas que contribuem para a mobilização, a permanência e o aprendizado de jovens e adultos em processos de escolarização, coordenado pela Profa. Dra. Maria Clara Di Pierro.
A pesquisa se insere na modalidade de pesquisa proposta por Stake (1983) e Mazzotti (2006) conhecida como estudo coletivo ou estudo de casos múltiplos. Neste tipo de pesquisa há o entendimento de que dada a complexidade do mundo social e a natureza do conhecimento, o pesquisador estuda alguns casos conjuntamente para investigar um dado fenômeno em profundidade.
O interesse pelo estudo surgiu da constatação de que apesar da conquista de marcos legais importantes que asseguram o direito de todos a educação e da maior institucionalização da modalidade observada nas últimas décadas, houve um decréscimo de 20% no número de matrículas na Educação de Jovens e Adultos (EJA) caindo de 3.906.877, em 2012, para 3.102.816, em 2013, no país. Em 2015, 3,5% de adultos frequentavam a escola, número 4,5% menor que em 2014.
O decréscimo está longe de significar a redução da demanda pela modalidade. Em 2013, após 15 anos de constantes diminuições, a taxa de analfabetismo aumentou no Brasil sendo estimada em 8,7%, o que corresponde ao contingente de 13,2 milhões de analfabetos. Além disso, segundo dados do Censo 2010, o Brasil tem uma população de 65 milhões de pessoas com 15 anos ou mais que não concluíram o Ensino Fundamental e 22 milhões com 18 anos ou mais, que apesar de terem concluído o Ensino Fundamental, não concluíram o Ensino Médio.
Diante do contexto atual, a pesquisa busca analisar fatores intra e extraescolares que explicam a ineficácia das políticas públicas de EJA e apontem para novas perspectivas de organização da modalidade. Para tanto, estão sendo analisados centros públicos que ofertam exclusivamente a modalidade Educação de Jovens e Adultos (EJA) e que, contrastando com a tendência dominante no país, têm atraído numeroso contingente de matrículas.
Os centros públicos mapeados para o presente estudo seguem o critério de oferta exclusiva da modalidade EJA em suas instituições, quais sejam, o Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos (Cieja) Marlúcia Gonçalves de Abreu, localizado no Bairro São Mateus, na cidade de São Paulo, mantido pela municipalidade; o Centro Municipal de Ensino Fundamental de Educação de Jovens e Adultos (Cemefeja) Pierre Bonhomme, em Campinas (SP), também mantido pelo governo local; e o curso de Educação de Jovens e Adultos da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz, localizada na cidade do Rio de Janeiro. Inicialmente, foi estabelecido um primeiro contato com os gestores destes centros públicos, a fim de averiguarmos as principais características e a pertinência para o presente estudo.
A coleta de dados está sendo realizada por meio de pesquisa de campo com uso dos seguintes instrumentos: análise documental, entrevistas, levantamento de dados quantitativos, observação in loco. A pesquisa segue os seguintes passos: caracterização dos três centros públicos; levantamento do perfil socioeconômico e cultural dos alunos; análise da legislação e do Projeto Político Pedagógico; entrevistas semiestruturadas com gestores, professores, funcionários, alunos; observação in loco, a partir de registros em caderno de campo, imagens.
O estudo de cada um dos casos se orienta por um protocolo comum de pesquisa, que caracteriza os estabelecimentos de ensino mediante a consideração de sete aspectos: a) o perfil e diversidade sociocultural dos educandos; b) o perfil dos educadores, suas condições de trabalho e oportunidades de formação continuada; c) as instalações físicas; d) os programas de assistência estudantil (transporte, alimentação, saúde e provisão de materiais didáticos); d) as propostas curricular e pedagógica, e a flexibilidade da organização dos tempos e espaços de aprendizagem; e) a gestão escolar (incluindo os mecanismos de participação e as relações com a comunidade); f) o comportamento das matrículas, o fluxo e rendimento escolar, bem como os índices de certificação; g) o custo-aluno.
SITUANDO A EJA NAS POLÍTICAS PÚBLICAS
Para Di Pierro e Haddad (2015) no Brasil, a Constituição de 1988 foi um marco importante, um avanço na garantia de direitos sociais, impulsionada pela mobilização da sociedade civil, reforçado na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) de 1996, que reconhecem o direito público subjetivo dos jovens, adultos e idosos ao estudo. Contudo, a redefinição do papel do Estado pelo chamado neoliberalismo limitou a realização dos direitos conquistados. No plano internacional foram realizados vários eventos a partir dos anos 1990, encabeçadas pela Organização das Nações Unidas (ONU), cuja agenda vem ganhando espaço no Brasil, consequência do processo de globalização e pelo papel desempenhado pelo país nos cenários regional e global. Contudo, destacam os autores que internamente avançamos pouco na definição de políticas para a EJA.
Haddad (2007) ressalta que as conquistas da sociedade civil ensejadas na década de 1980, no período de redemocratização, não tiveram desdobramentos nos períodos seguintes, uma vez que as reformas neoliberais iniciadas no governo Fernando Collor e, posteriormente, no governo Fernando Henrique Cardoso, impediram a universalização e a oferta com qualidade do direito dos jovens e adultos à educação.
Segundo Haddad (2007) dois instrumentos principais revelam as limitações impostas no período. Um foi a aprovação da Emenda Constitucional nº 14/96, com o estabelecimento do Fundo de Valorização do Ensino Fundamental (Fundef), que suprimiu o compromisso da sociedade e dos governos de acabar com o analfabetismo até 1998, desobrigando o governo federal de aplicar a metade dos recursos para esse fim. E o outro instrumento foi a aprovação da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1996, que apesar de reconhecer o direito à EJA, não levou em conta uma série de iniciativas importantes que constavam nos projetos anteriores dos deputados Octávio Elísio e Jorge Hage, os quais retomavam o termo Educação de Jovens e Adultos, um esforço de superação da ideia de reposição presente na concepção de Ensino Supletivo.
Com a substituição do Fundef pelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), em 2007, a EJA passou a compor as políticas de financiamento e assistência estudantil da Educação Básica. Contudo, o Fundeb contempla a EJA de modo parcial, pois lhe atribui um fator de ponderação inferior aos valores de referência das demais modalidades, e impõe um teto de gasto na modalidade de 15% do Fundo.
Apesar do financiamento da EJA ainda ser menor em relação aos demais segmentos da Educação Básica, com a inserção da modalidade no Fundeb, houve um maior investimento, mas que não tem surtido efeito para garantir a mobilização da demanda existente, a permanência e a qualidade da oferta aos jovens e adultos não escolarizados ou com pouca escolarização.
A União tem participado mais ativamente em relação a períodos anteriores, com estratégias suplementares de financiamento pelo FNDE, como o Programa Brasil Alfabetizado (PBA), o Programa Nacional de Inclusão de Jovens (Projovem Urbano), o Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos (Proeja), o Programa Nacional do Livro Didático da EJA (PNLDEJA), dentre outros (MACHADO, 2011).
Dessa forma, podemos dizer que, ao lado da questão do financiamento, é preciso analisar outros fatores que influenciam o atual cenário da EJA no Brasil e as causas da dificuldade para efetivarmos esse direito. A literatura sobre o tema do analfabetismo e baixa escolaridade dos jovens e adultos brasileiros articula várias explicações socioeconômicas, histórico-culturais e político-educacionais.
Os baixos níveis de escolarização entre a população jovem e adulta têm suas raízes na histórica desigualdade socioeconômica que marca o Brasil, processo que limitou uma parcela significativa da população de acessar o direito à educação. De acordo com Besiegel:
[...] no Brasil, na colônia e mesmo depois, nas primeiras fases do Império [...] é a posse da propriedade que determina as limitações de aplicação das doutrinas liberais: e são os interesses radicados na propriedade dos meios de produção colonial [...] que estabelecem os conteúdos específicos dessas doutrinas no país. O que há realmente de peculiar no liberalismo no Brasil, durante este período, e nestas circunstâncias, é mesmo a estreiteza das faixas de população abrangidas nos benefícios consubstanciados nas formulações universais em que os interesses dominantes se exprimem. (BEISIEGEL, 1974, p. 43)
Autores como Pinto (1989), Di Pierro e Galvão (2012), Soares (1990), Carreira (2014), Rivero (2000), Rosemberg e Piza (1996) e Sposito (2003) apontam a estreita relação entre os fenômenos do analfabetismo e da baixa escolarização e outros processos de exclusão relacionados às condições de classe, território, raça, gênero e geração.
Autores como Beisiegel (2003), Freitas e Biccas (2009), Haddad e Di Pierro (2000) vem demonstrando a relação entre o analfabetismo e a baixa escolaridade com a lenta expansão da escola aos setores populares e o desenvolvimento tardio das políticas de educação de jovens e adultos. São ilustrativos de tal relação, os resultados de uma pesquisa realizada por diversos pesquisadores e organizada por Haddad (2007) com 66 municípios brasileiros de seis regiões metropolitanas no campo da EJA, os quais indicam que apenas uma parcela pequena da demanda potencial da EJA é atendida pelos municípios. O atendimento da EJA acaba realizando-se caso a caso em função da dinâmica entre o compromisso político do poder público, a disponibilidade de recursos financeiros e a pressão social.
A pesquisa de Haddad (2007) mostrou ainda que, apesar da crescente institucionalização da EJA nas redes de ensino nos últimos anos, não há um sistema de atendimento que garanta a continuidade de estudos para os jovens e adultos, nem um padrão nacional desse atendimento. A crescente institucionalização da EJA nas redes municipais é acompanhada por forte tensão entre uma concepção mais flexível de currículo, que a aproxima da tradição da educação popular, e a tradição escolar dos sistemas regulares de ensino.
Fatores como carga horária exaustiva frente às reais condições que os jovens e adultos possuem para frequentar a escola, metodologia e infraestrutura inadequadas, falta de formação dos professores e gestores para lidar com as especificidades da modalidade, entre outros elementos, dificultam o acesso e permanência dos jovens e adultos na escola. Isso se deve em boa parte pela visão supletiva equivocada de educação de jovens e adultos, cujo modelo pedagógico que a acompanha não contempla as especificidades do mundo adulto.
O QUE DIZ A LITERATURA SOBRE CENTROS EXCLUSIVOS DE EJA
Ao fazermos o levantamento das teses e dissertações sobre centros exclusivos de EJA no banco de teses e dissertações da CAPES, utilizando “educação e jovens e adultos”, “EJA”, “centros exclusivos de EJA”, “Centro de Referência de EJA” e “escola de EJA”, identificamos dezoito estudos (uma tese e dezessete dissertações) pertinentes à temática, que tratam de escolas distribuídas em nove unidades da Federação (Distrito Federal, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Piauí, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, São Paulo e Sergipe).
Estes estudos abordam temáticas como formação de professores, relação professor-aluno, currículo, práticas de ensino e inclusão de estudantes com deficiência. Dentre os dezoito estudos, cinco chamaram especialmente a nossa atenção pela aderência a temática do nosso trabalho. Borges (2014) abordou o custo-aluno de um centro do Distrito Federal, concluindo que as especificidades dos centros públicos precisam ser observadas ao definir-se o custo-aluno da EJA; Araújo (2013) analisa um centro exclusivo localizado em Cuiabá, situando-o na política que levou à criação dos Centros de EJA no Mato Grosso; Faria (2014) analisou a trajetória em diferentes gestões da Prefeitura de São Paulo, dos Centros Integrados de Educação de Jovens e Adultos (CIEJAs) desde sua construção aos dias atuais; Guedes (2009) analisou um Centro exclusivamente dedicado à EJA em Campinas, cuja organização é modular; e Morete (2010) estudou um Centro da rede estadual de São Paulo, localizado em Presidente Prudente (SP).
Dos estudos analisados podemos inferir que os centros que atendem exclusivamente os jovens e adultos possuem maior flexibilização na organização dos seus tempos, espaços e currículos o que lhes permite acomodar melhor a diversidade presente na EJA. São destacados como aspectos positivos o trabalho coletivo da equipe pedagógica, a boa relação entre professor e estudantes, currículo que permite articular atividades extraclasses com atividades em classe, espaços para compartilhamento das produções dos estudantes, formação continuada dos professores (em serviço e fora da instituição). Princípios da educação popular como diálogo, educação libertadora, aprendizagens significativas, respeito aos saberes dos estudantes, valorização dos professores são fatores que se destacam nas práticas melhor sucedidas.
Os desafios a serem superados pelos centros exclusivos são os apontados pela literatura geral sobre o tema de que uma política para garantia efetiva do direito dos jovens, adultos e idosos à educação pública de qualidade precisa de mais investimento na formação inicial e continuada dos professores; garantir infraestrutura adequada; rever o currículo da EJA; compreender as especificidades das propostas diferenciadas de EJA; rever o custo-aluno no Fundeb; adequar os materiais didáticos às necessidades das faixas etárias atendidas pela EJA; a constatação de o aprofundamento da aprendizagem da leitura e da escrita nem sempre são garantidos em processos acelerados.
CONTEXTUALIZAÇÃO DO CIEJA MARLÚCIA GONÇALVES DE ABREU
O Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos (Cieja) Marlúcia Gonçalves de Abreu faz parte de um conjunto de 14 Ciejas, distribuídos em 11 das 14 diretorias Regionais da Educação localizados na Cidade de São Paulo. Idealizados no Governo da Prefeita Luisa Erundina (PT), 1989 a 2003, o projeto surgiu do diálogo entre Secretaria Municipal de Educação e movimentos populares, precursores da educação de jovens e adultos nos períodos anteriores, dos quais fazia parte o educador Paulo Freire, então Secretário Municipal de Educação. Como resultado desse processo surge a proposta de implantação de um Centro de Ensino Supletivo que flexibilizasse os tempos e espaços para oferta de estudo adequada ao aluno trabalhador (FARIA, 2014).
Somente na gestão de Marta Suplicy (2001 – 2004) os Ciejas serão implantados, como projeto experimental, tendo em vista a democratização do acesso e permanência dos jovens e adultos na escola, qualidade social da educação e democratização da gestão, conforme o Decreto Municipal nº 43.052, de 4 de abril de 2003. Participaram da construção do projeto organizações sociais como Ação Educativa, Veredas, Instituto Paulo Freire e Senac, resultando na criação de treze centros (mais um centro seria criado posteriormente) exclusivos de EJA na cidade de São Paulo, resguardando a autonomia de cada um para organizar suas propostas político-pedagógicas, mantendo em comum uma identidade organizacional e pedagógica com o objetivo de articular o mundo do trabalho e da cultura (FARIA, 2014).
Segundo Faria (2014) nesta trajetória de quatorze anos, um dos momentos mais críticos foi a ameaça de encerramento dos Ciejas pelo prefeito Gilberto Kassab (2006 – 2008), que substitui José Serra, em 2006, para concorrer a Governador do Estado de São Paulo. Diante do cenário, os educadores, alunos, gestores do centro Campo Limpo mobilizados articularam outros Centros e saíram às ruas para protestar contra o encerramento. O então Secretário Alexandre Schneider foi convidado a visitar o Cieja Campo Limpo, uma referência entre os Ciejas, e solicitou à Coordenadora Geral Êda Luiz que redigisse o projeto dos Ciejas. Diante do desafio, a educadora visitou todos os Ciejas o que resultou no Projeto aprovado em 2009 pelo Conselho Municipal de Educação.
ANÁLISE PRELIMINAR DE ELEMENTOS PEDAGÓGICOS E DE GESTÃO DO CIEJA MARLÚCIA GONÇALVES DE ABREU
A coleta de dados no referido Cieja se deu entre os meses de setembro de 2015 e abril de 2016, com visitas frequentes à Unidade, para observações in loco em salas de aulas e demais espaços do Centro, acompanhamento de reuniões pedagógicas, entrevistas com a diretora, três coordenadores pedagógicos, cinco professores e cinco estudantes.
A escolha dos professores para as entrevistas seguiu os critérios de mais e menos tempo de experiência na EJA, idades e sexos diferentes. Quanto aos estudantes, a escolha foi entre matriculados em módulos variados, diferentes idades e sexos.
ORGANIZAÇÃO DOS TEMPOS E ESPAÇOS
A organização da oferta de horários de aulas é um dos grandes diferenciais do Cieja. Ao contrário das escolas regulares que ofertam EJA geralmente no período noturno, os Ciejas têm autonomia para organizar o cronograma de oferta de acordo com a procura dos estudantes, podendo, portanto, variar a cada semestre. No momento da pesquisa, os horários estavam assim organizados: Manhã: das 07h30 às 09h45; das 10h às 12h15. Tarde e noite: das 15h25 às 17h40; das 17h45 às 20h e das 20h15 às 22h30.
Além de mais opções de horários, o estudante tem a possibilidade de organizar-se cotidianamente para melhor atender as suas possibilidades de frequentar a escola, pois caso não possa comparecer à aula no horário matriculado por algum motivo (consulta médica, filhos, trabalho), o estudante poderá frequentá-la em outro período no mesmo dia, pois o trabalho coletivo garante que todos os professores abordem os mesmos temas em sincronia.
A matrícula também é flexível, realizada através de apresentação do histórico escolar ou de prova classificatória aplicada pelo Cieja, podendo ser realizada ao longo de todo o ano. Em fevereiro de cada ano é realizada uma sondagem para averiguar se o aluno atende aos critérios para passar para o próximo módulo, uma vez que não é realizada avaliação com aferição de notas por provas. A avaliação é realizada através de diálogo do estudante com os professores de cada área e com a gestão. Até 30 de abril de cada ano os alunos que não alcançaram resultado satisfatório podem realizar prova de reclassificação, se assim o desejarem.
Quanto a organização curricular, o Cieja segue as diretrizes para o funcionamento dos Ciejas da Rede de Ensino do Município de São Paulo, estabelecidas pelo Decreto nº 53.676, de 28 de dezembro de 2012, que prevê a organização por ciclos de aprendizagem. De acordo com o Art. 3º o curso de ensino fundamental será estruturado em 2 (dois) ciclos e organizado em módulos, sendo o Ciclo I: a) Módulo I - Alfabetização; b) Módulo II - Básico; Ciclo II: a) Módulo III – Complementar; b) Módulo IV – Final
A carga horária diária em sala de aula de 02h15min é complementada com horas-atividade extraclasse, que podem ser: visitas a museus, teatros, cinema, parques, exposições entre outras. Tais atividades podem ser as inseridas em projetos pedagógicos, ou realizadas por iniciativa pessoal dos estudantes.
CONTRATAÇÃO DE PROFESSORES, TRABALHO COLETIVO E FORMAÇÃO CONTINUADA
Para que o projeto se desenvolva na sua totalidade, é preciso muito trabalho coletivo e formação continuada. Estes dois elementos aparecem nas entrevistas de gestores, professores e estudantes como sendo um dos grandes diferenciais do Cieja. Para que os professores possam planejar as aulas de modo a atender melhor a diversidade dos sujeitos da EJA, o processo inicia na contratação e tem continuidade no trabalho coletivo. Os professores que desejam trabalhar no Cieja devem ser concursados da Rede Municipal de Ensino de São Paulo, realizar prova de conhecimentos específicos sobre EJA e passar por entrevista da Secretaria Municipal de Educação. Além disso, apresentar uma proposta/projeto de trabalho na EJA.
O processo seletivo e o incentivo à formação continuada garantem um quadro de professores com nível elevado de formação acadêmica, o que é constatado pelo fato da maioria possuir mais de uma graduação ou pós-graduação (especialização ou mestrado). Chama a atenção também o acúmulo de experiência de trabalho na área da EJA dos seus profissionais, o que contribui para a qualidade do trabalho realizado.
Outro grande diferencial é o fato de que todos os professores são contratos em regime que garanta dois horários semanais de planejamento do planejamento pedagógico coletivo, os quais ocorrem às segundas e quartas-feiras.
O trabalho com projetos interdisciplinares é abordado a partir da definição de um tema “guarda-chuva” no início do ano, que mobiliza professores e alunos durante os semestres a partir das seguintes áreas do conhecimento: Ciências da Natureza e Matemática; Linguagem e Códigos (Artes, Inglês, Português, Educação Física); Ciências Humanas (História e Geografia). O Centro oferece ainda oficinas de Espanhol; Sexualidade; Alfabetização; Matemática. As mesmas acontecem antes ou depois do horário de aula.
Um dos professores ao ser entrevistados, que leciona no Cieja há dois anos, relatou que em escolas regulares nas quais trabalhou anteriormente não encontrou “a possibilidade real de vivenciar a interdisciplinaridade na prática como no Cieja”. Segundo ele, isso se deve ao planejamento coletivo dos projetos por área do conhecimento e não por disciplina. Citou como exemplo, uma ocasião em que a professora de Língua Portuguesa trabalhou um vídeo do antropólogo Darcy Riberio para abordar a formação linguística brasileira, permitindo a relação entre conhecimentos históricos e linguísticos.
O professor, que é formado em história e possui mestrado na área de serviço social, relatou ainda, que permanecer 02h15 com os alunos, sem interrupção (como ocorre no ensino regular com aulas de 50min), permite iniciar e concluir a abordagem de determinado tema no mesmo dia. “Eu posso passar um filme inteiro e ainda debater com os alunos. Isso é maravilhoso”. Para ele, o Cieja deveria servir de referência para a organização da educação regular.
Além dos espaços coletivos de planejamento coletivo, os quais se configuram espaços de formação continuada em serviço, a Diretoria de Orientação Técnica (DOT EJA) oferece oportunidades de formação em temas específicos sobre EJA.
O conjunto dos elementos abordados garantem um trabalho pedagógico com foco específico nas questões que circundam o universo da EJA, contribuindo para que a diversidade dos sujeitos seja melhor acolhida no Centro. Isso aparece em todas as falas dos estudantes e é possível observar durante as aulas.
GESTÃO DEMOCRÁTICA
O foco da atual gestão é o trabalho coletivo. Assim, busca organizar espaços de participação coletiva, embora com muitas dificuldades para construir a cultura da participação dos estudantes nas tomadas de decisões coletivas.
Todos os gestores têm mais de dez anos de experiência na EJA, com destaque para a diretora que atua há 30 anos na EJA, desde o início do projeto Cieja, quando ainda se chamava CEMES. Este acúmulo de experiência se traduz na condução do trabalho pedagógico pautado pelo diálogo e construção coletiva, foco da gestão atual.
A participação dos estudantes no Conselho de Escola ainda é um desafio, o momento atual é de construção da cultura do significado da participação política nas instâncias de tomada de decisões na escola. Para a efetivação da participação a equipe pedagógica vem construindo algumas estratégias para contornar a falta de tempo disponível dos estudantes, conforme relato de um dos coordenadores, 47 anos, formado em História, que atua no Cieja há 10 anos, “(...) a gente procura fazer essas reuniões em horários diversificados, sempre convocando para que o aluno tenha a clareza de que a reunião vai ocorrer, e pedindo a ele que ouça primeiro os seus pares e traga para a Reunião de Conselho. Pedimos para eles passarem nas salas para que, no momento do Conselho, eles sejam os verdadeiros representantes e não meros participantes dessa instância”.
Outro foco da gestão é garantir uma identidade ao centro, conforme relato do coordenador “(...) a gente procura sentar e estabelecer um fio condutor para que a escola tenha uma mesma forma de pensar e agir, mesmo com as diferenças de períodos, e até mesmo de público, como um todo; para não ficar, como acontece em muitos lugares, uma escola de manhã, uma escola a tarde, outra escola a noite; então, a gente tem bastante esse cuidado de fazer essas trocas, até mesmo no horário a gente faz isso, tem dia da semana que ela (se refere à colega de coordenação) vem pela manhã e eu acabo indo à noite, para ter essa troca e conhecer o público todo que a gente trabalha”.
INFRAESTRUTURA
A arquitetura do prédio onde funciona atualmente o Cieja não responde satisfatoriamente aos anseios pedagógicos da gestão, dos professores e dos alunos. O prédio, alugado pela Secretaria de Educação, possui três andares, sendo que a cantina, a biblioteca e o palco para apresentações culturais estão localizados no piso inferior e uma parte das salas de aula, no piso superior, ambos com acesso através de escadas, dificultando o acesso dos cadeirantes e das pessoas idosas. Além disso, falta quadra de esportes, espaço para o cultivo de horta, cozinha adequada para o preparo da merenda, reivindicações da comunidade escolar.
Compõe o prédio: 08 salas de aula, sendo 03 com TV; 01 biblioteca, em fase de organização do acervo; 01 sala de informática ; 01 pátio coberto, com tablado para apresentações; 01 banheiro para agentes escolares; 04 banheiros para uso dos alunos, sendo 02 femininos e 02 masculinos; 01 sala de SAAE – apoio a inclusão.
O desafio é encontrar um espaço para locação mais adequado para o funcionamento do Centro. A municipalidade disponibilizou uma verba para este fim, mas o bairro não oferece muitas opções de prédios adequados e as opções possíveis apresentam problemas legais.
INTERSETORIALIDADE
Outra questão a ser observada pelo Centro é a articulação intersetorial apontada por Arroyo (2005) como importante elemento para garantir que a EJA seja construída a partir da sua particularidade, mas sem perder de vista sua inserção no conjunto das políticas públicas a fim de equacionar melhor as múltiplas demandas dos jovens e adultos das camadas populares.
Dentro dos limites da intersotrialidade, no Cieja Marlúcia Gonçalves de Abreu, os estudantes contam com bilhete único do estudante, que dá um desconto no valor da passagem e aqueles com necessidades especiais, com o Programa Vai e Volta da Prefeitura Municipal, que garante transporte acessível gratuito.
Há também uma parceria com o Posto de Saúde local para distribuição de camisinhas aos/as jovens do Centro e com o Centro com a APAE do bairro para inclusão de alunos com deficiência no mercado de trabalho e cursos para os pais. Em 2015, foram incluídos 05 estudantes no mercado de trabalho.
Além disso, o Cieja recebe um Kit de material didático e os livros didáticos do PNLDEJA. A escolha do livro é feita pela escola, mas a definição é da SME, o que é um problema em municípios com a extensão e a diversidade de realidades como o de São Paulo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Arroyo (2005) ao fazer uma retomada histórica da educação de jovens e adultos, tenta desmistificar uma leitura linear da EJA como campo aberto, sujeito a experimentações e desprofissionalizado. Para ele, é preciso enxergar o outro lado do fato da EJA ter corrido em grande parte “por fora” do sistema escolar formal. Faz-se necessário produzir pesquisas que reconstruam a história da EJA, com uma visão menos preconceituosa e mais equilibrada para que possa contribuir para a construção de propostas adequadas às especificidades do público jovem e adulto.
Nesse sentido, a análise preliminar indica que a organização flexível do currículo, dos tempos e espaços da escola, a gestão democrática, a adequação das práticas pedagógicas às diferentes faixas etárias, a abertura e o acolhimento da diversidade do público da EJA, são fatores que contribuem para a capacidade do centro exclusivo responder melhor às demandas por escolarização da população jovem, adulta e idosa.
As questões de tempo e espaço são melhor equacionadas pelo centro exclusivo de EJA, pois o espaço escolar pensado majoritariamente para atender as crianças e adolescentes, e EJA no contraturno, não acolhe a enorme diversidade de públicos potenciais para a EJA e suas diferentes disponibilidades de tempo para o estudo.
Além da rigidez em relação à organização do tempo, os espaços precisam atender as necessidades específicas de aprendizagem dos jovens e adultos. O entendimento das políticas públicas e dos gestores é de que a escola existe prioritariamente para atender as crianças e que os adultos estão autorizados a fazer uso do espaço desde que isso não interfira nas atividades do ensino da faixa etária à qual se destina prioritariamente.
Escolano e Frago (2001) ao abordarem a relação entre currículo e espaço afirmam que o espaço está sempre disponível para converter-se em lugar, mas que, para tanto, depende a ocupação e a utilização que dele se faz. A partir da pesquisa o que podemos perceber é que o fato de ser exclusivo garante maior apropriação do espaço pelos sujeitos jovens, adultos e idosos, mas que precisa avançar. Percebe-se a pouca participação nas decisões que envolvem currículo, por exemplo, o que poderia contribuir para equacionar o atendimento das necessidades de aprendizagens das diferentes faixas etárias (jovens, adultos e idosos), um dos principais desafios do Centro.
Contudo, o fato de ser exclusivo para EJA abre possibilidades para uma maior apropriação do espaço pelos estudantes e educadores, por estar focado nas questões que circundam o público atendido, além de propiciar acúmulo de experiências para uma organização mais adequada da modalidade.
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