FORMAÇÃO DE PROFESSORES/AS E VIOLÊNCIA INTRAFAMILIAR CONTRA CRIANÇAS: QUESTÕES TEÓRICAS

Resumo: O objetivo deste trabalho é discutir teoricamente relações entre formação de professores/as e violência intrafamiliar contra crianças. Os/as docentes são pessoas importantes no enfrentamento da violência intrafamiliar: no seu desvelamento, sua mudança e na desnaturalização da infância e do conceito de família. Essa participação é possível pela reflexão fundamentada, elaboração de síntese e revelação das contradições de fenômenos sociais que devem constar nos cursos de formação inicial e continuada de professores. Alerta-se para o risco de localizar exclusivamente na escola e na família as determinações da violência nas relações entre os sujeitos. A violência intrafamiliar pode ser inserida na formação de professores/as como questão relevante na discussão da identidade e função docente.

Palavras-chave: Violência intrafamiliar; Formação de professores; Identidade e função docente.

A violência contra crianças tem sido considerada temática relevante nos diferentes contextos onde ela se expressa, com destaque para o contexto intrafamiliar. No Brasil, a violência contra crianças cometida por pessoas que lhe são familiares permeia a nossa cultura e por esse motivo, todas as instituições que atendem crianças, inclusive as escolares, devem se comprometer com o enfrentamento das diversas formas de violência.   

Na instituição escolar, de maneira peculiar, se estabelecem relações de proximidade que geram aprendizagem e desenvolvimento e permitem o conhecimento da vida particular dos educandos e, dessa forma, os educadores tornam-se sensíveis à presença ou ausência da violência intrafamiliar. Nesse sentido, a escola como uma instituição social essencial no desenvolvimento de crianças e adolescentes deve se colocar como uma das instituições responsáveis pela efetivação da proteção integral dessas pessoas, conforme previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, Lei N. 8069/90). No entanto, nem sempre os educadores sentem-se preparados para enfrentar as situações de violência contra crianças que surgem no seu cotidiano.

Diante da realidade apresentada, o objetivo deste trabalho é discutir algumas relações possíveis entre formação de professores/as, particularmente o que diz respeito à temática da identidade e função docente, e violência intrafamiliar contra crianças.

A VIOLÊNCIA INTRAFAMILIAR ENTRA PELO PORTÃO DA FRENTE DA ESCOLA

A temática da formação de educadores para a proteção integral de crianças remete inicialmente à compreensão do fenômeno da violência, mais especificamente a violência intrafamiliar contra crianças nas suas diferentes expressões. Além disso, faz-se necessário entender o papel da escola como uma das instituições promovedoras da proteção integral no contexto da violência intrafamiliar contra crianças. No entanto, antes é preciso desnaturalizar a violência e desvelar alguns de seus determinantes.

É importante pensar a violência como relacional e expressa nos diferentes contextos sociais, inclusive no ambiente familiar. Sudbrack e Conceição (2005), afirmam que a violência utiliza como o instrumento o poder sobre o outro. No caso da violência praticada contra crianças e adolescentes, a dimensão relacional está também implicada no abuso de poder e na transgressão no dever/poder de proteção, numa coisificação da infância (MINAYO, 2002). Ou seja, nega-se o direito que crianças e adolescentes têm de serem tratados como sujeitos e pessoas em condições especiais de crescimento e desenvolvimento.

Ao discutir do tema da violência doméstica, Ristum (2010), com base em pesquisas realizadas em 2006 e em 2007, afirma que os profissionais da escola (diretores, coordenadores, professores/as e funcionários) relatam efeitos da violência doméstica sobre comportamentos disciplinares e acadêmicos dos alunos. Em relação ao aspecto disciplinar, as pesquisas da autora exemplificam comportamentos agressivos ou violentos, desobediência, dificuldade de relacionamento, tendência a se isolar ou a ser muito agitado. Já no que diz respeito ao aspecto acadêmico, a maioria das vítimas possui baixo rendimento, dificuldade de aprendizagem, são desinteressados e dispersos e/ou desatentos.  O que se coloca como questão diante dessas afirmações é a interação entre diversos elementos na emissão dos comportamentos descritos, que não são apresentados pela autora, que podem não estar sendo considerados, tais como a relação professor-aluno, a possibilidade da construção de necessidades, a falta de atribuição de sentidos por parte do aluno a partir da intervenção do professor, entre outros. No entanto, é preciso considerar que a violência é apenas dos determinantes possíveis na construção dos comportamentos apontados. 

A violência contra crianças e adolescentes praticada no contexto familiar é expressa de várias maneiras. As diversas formas são discutidas por Azevedo e Guerra (2007), Minayo (2002), Faleiros e Faleiros (2007), que, ressaltadas as diferenças entre os autores, definem basicamente seis tipos: violência estrutural; violência física; violência psicológica; negligência e abandono; violência sexual; trabalho infantil; e presenciar atos violentos contra outras pessoas.

A violência intrafamiliar contra crianças, nas suas diferentes formas, é denunciada principalmente em famílias de camadas populares, uma vez que parece haver um encobrimento dos casos ocorridos em outras classes sociais. Sobre isso, Penso, Ramos e Gusmão (2004) afirmam que determinadas propostas assistencialistas colaboram para a desqualificação das famílias pobres nos cuidados de seus filhos. Essa ideia encontra-se reproduzida na fala de muitos educadores a respeito do que eles chamam de “família desestruturada”, que na verdade corresponde à família cuja estrutura foge do padrão idealizado da família nuclear burguesa.

Na contramão dessa desqualificação, defende-se aqui a necessidade de se criar propostas que levem ao fortalecimento das relações nas famílias, em um trabalho junto às redes sociais disponíveis, conforme descrito por Ude (2002), e entre elas, a escola. Como apresenta Faleiros (2008), a proteção integral prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) só pode ser constituída nos relacionamentos cotidianos entre crianças e adultos. Assim, a instituição escolar precisa reconhecer a família como lugar legítimo para a educação de crianças e colaborar para o seu fortalecimento e assim, abrir a possibilidade de assumir o seu papel. Dessa forma, é possível viabilizar o início da garantia do direito à convivência familiar e comunitária prevista no ECA. Tanto a escola como a família são espaços primordiais para o estabelecimento de ações preventivas e protetivas em relação à violência contra crianças e adolescentes.

Miranda (2003) também reconhece a escola como espaço fecundo tanto para a identificação quanto para o enfrentamento da violência intrafamiliar contra crianças. Para tanto, é necessário superar o entendimento da denúncia como única possibilidade de enfrentamento da violência intrafamiliar por parte dos docentes. De igual modo, Sanderson (2005) afirma que a escola pode proteger as crianças implementando programas de proteção, além de buscar garantir um ambiente seguro no qual as crianças sejam valorizadas e possam falar sobre suas experiências sem serem estigmatizadas.

É na escola, este espaço fecundo, que, de acordo com Silva (2008), alunos e professores/as desenvolvem vínculos de confiança que permitem aos professores/as entrar em contato com situações da vida privada de seus alunos, devem se posicionar e encarar as situações de violência, mesmo sem se sentirem preparados para isso. Por outro lado, é fundamental, de acordo com a autora, que a formação de professores/as viabilize a aquisição de instrumentos teóricos e práticos para que eles possam lidar melhor com essa realidade, sem naturalizá-la ou banalizá-la.

Diante da necessidade da formação docente para o enfrentamento da violência contra crianças e adolescentes, têm surgido algumas propostas. Uma delas foi a criação em 2003 do Guia Escolar, constituído em ação conjunta entre a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD) e Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH) nas suas primeira e segunda edição, que desde 2003 visa servir como instrumento aos educadores para identificar sinais de abuso e exploração sexual em crianças e adolescentes.

Outra proposta é o Projeto Escola que Protege. O referido trabalho foi desenvolvido em 2004 pelo Ministério da Educação por meio da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD) com a finalidade de viabilizar ações de cunho educativo e preventivo para enfrentar a violência contra crianças e adolescentes. Em 2006, foi estabelecida como prioridade básica a formação de professores/as e demais profissionais envolvidos com a educação para atuarem como atores importantes na garantia dos direitos de crianças e adolescentes. A formação se concretizou por meio de um curso de educação a distância, desenvolvido pela Universidade Federal de Santa Catarina, seguido de uma etapa presencial, realizada em todas as regiões do Brasil por Universidades Federais e Estaduais. O curso foi denominado “Curso Formação de Educadores: subsídios para atuar no enfrentamento à violência contra crianças e adolescentes”. Percebe-se que a preocupação com a construção de propostas está presente principalmente em projetos de formação continuada. No entanto, não se encontram com facilidade projetos de formação sobre a violência contra crianças na formação inicial de professores/as, muito menos propostas que não possuam o viés imediatista da solução dessa problemática.

Como apresentam Moraes e Torriglia (2003), não há a possibilidade de separar o processo educativo daquilo que se passa na escola e no mundo. Assim, é necessário pensar em propostas de formação docente, inicial ou continuada que superem esse tipo de dicotomia. E nesse sentido, é importante desnaturalizar o olhar do docente para as questões que envolvem violência e considerar que as instituições educativas são parte da sociedade. Silva (2008) também aponta a necessidade de o professor, ao discutir sobre a violência vivida por seus alunos, promover com eles uma reflexão crítica a respeito do tema. No entanto, para a autora, essa reflexão deve ser contextualizada para que não haja a responsabilização da criança e dos seus comportamentos. No entanto, ela reconhece que enfrentar uma situação de violência intrafamiliar contra criança não é simples para nenhum profissional, uma vez que desperta muitas dúvidas e temores, uma vez que estão envolvidas crenças e valores arraigados na cultura.

A prática docente sozinha não tem permitido aos professores/as conhecer as contradições existentes entre suas concepções de educação, de autoridade e de criança e particularmente a prática educacional que tem como método a punição e o disciplinamento de crianças usando a violência física. Assim, Silva (2008) defende que, somado ao suporte teórico, os professores/as precisam de apoio institucional para lidar com as situações de violência física sofrida por seus alunos. As instâncias governamentais, tais como Conselho Tutelar, Delegacia ou Ministério Público, têm que melhor acolher as denúncias realizadas e dar resolutividade aos casos encaminhados. Nos casos de riscos à integridade física da escola ou do professor, a Secretaria de Educação deveria oferecer proteção e suporte (SILVA, 2008). Para a autora, é importante considerar que o acompanhamento do andamento dos casos denunciados pelas regionais e demais setores da secretaria de educação podem viabilizar aos professores/as uma maior garantia de que os casos não serão esquecidos.  A autora aponta como alternativa, que o estudo de casos, a troca de experiências entre os professores/as e a supervisão continuada podem contribuir com a formação do professor, permitindo, assim, minimizar dúvidas e inseguranças sobre a forma de lidar com tais situações de violência.

As questões relacionadas à violência intrafamilar contra crianças, entram na escola junto com as crianças e demais profissionais da educação, constituindo seus corpos, comportamentos e identidades. A escola não é uma ilha. Assim, ainda que se queira excluir a temática da violência intrafamiliar e deixa-la do lado de fora da escola, diante da dificuldade do enfrentamento de situações que a envolvem, a falta de respaldo institucional e de elementos de proteção para a própria escola, por mais que se tente negar essa temática, ela está na instituição e gera incômodo no cotidiano, particularmente da sala de aula, nas diferentes relações que são constituídas. Os incômodos por ela gerados podem colocar em dúvida a função do professor nesse contexto. Por isso, de maneira não meramente imediata e pragmática, é passível de observação a demanda por formação a respeito da violência intrafamiliar contra crianças, tanto na formação inicial, como na formação continuada. Para isso, é preciso localizar de que formação estamos falando.

IDENTIDADE E FORMAÇÃO DE PROFESSORES/AS

A identidade é temática relevante na formação de professores/as. E como apresenta Nóvoa (1995), a área da formação de professores/as talvez seja a mais influenciada pelas mudanças histórico-cultuais no setor educativo, por se tratar não somente da formação de profissionais, mas de maneira mutuamente constitutiva, a construção de uma profissão. Diante dessas mudanças, Moraes e Torriglia (2003) afirmam que há na atualidade um processo que aligeira a formação docente, com fortes impactos na produção do conhecimento e consequentemente para a construção da profissão. Para os autores, esse aligeiramento é contaminado por elementos que impossibilitam a crítica e o debate e compromete assim, a dinâmica do processo educativo, ameaçando-o em sua própria identidade.

Ao propor nova estrutura para a formação de professores/as nas dimensões da formação inicial e da formação continuada, Nóvoa (1995) afirma que tanto as universidades como as escolas sozinhas não dão conta das demandas da formação, e por isso devem trabalhar de maneira conjunta.

Em estudo sobre a historicidade do trabalho do professor, Hypolito (1997) constrói as seguintes categorias:

a) Esse trabalhador não realiza um trabalho qualquer. Realiza um trabalho que, mesmo não podendo ser considerado tipicamente capitalista, vem sendo submetido a uma lógica capitalista de racionalização e organização;
b) Este trabalho é realizado por um trabalhador assalariado que possui uma posição ainda contraditória de classe, mas com uma tendência de passar a constituir-se membro das classes trabalhadoras; e
c) Este trabalhador não é qualquer trabalhador. É um trabalhador sexuado: é mulher e trabalhadora. As relações de classe e de gênero devem fazer parte das análises interpretativas do trabalho docente (Hypolito, 1997, pp.110-111).

Neste estudo, a ênfase, entre as categorias apresentadas, por se considerar como a diretamente relacionada à questão da violência intrafamiliar, está na que localiza o trabalho docente como trabalho feminino. De maneira semelhante a Nóvoa (1995), Hypolito (1997) afirma que o trabalho de ensinar, como ficou evidenciado, foi profundamente marcado pelo sacerdócio e pela vocação. Essas características, de certa forma, ainda estão presentes no trabalho do professor, seja por meio da “ideologia da domesticidade” do ideário do magistério como profissão adequadamente feminina – seja pela resignação e pelo conformismo – incentivados, principalmente, quando os/as professores/as estão reivindicando melhores condições de salário e de trabalho. Somado a isso, a “ideologia da domesticidade” gera a falsa identidade entre o trabalho de ensinar e as habilidades femininas e com o ideário do sacerdócio e da vocação, dentre outros (Hypolito, 1997). Dessa forma, o papel de mãe e professora se confundem e se caracterizam como algo vocacionado e feminino. Diante dessas fusões, torna-se relevante a discussão acerca da identidade docente e assim, da função do professor.

Especificamente sobre a identidade profissional do docente, Brzezinski (2002) discute que a história da educação brasileira denuncia a manutenção por parte do Estado de políticas educacionais que são opostas ao reconhecimento social e econômico do professor. Para a autora, na atualidade, tais políticas se revestem de um caráter de perversividade, e se constituem em obstáculo considerável para que os/as professores/as, como categoria profissional e como identidade coletiva, desenvolvam um processo de profissionalização. Pelo contrário, essas políticas aproximam a profissão do professor da assistência ingênua e caritativa, tirando-lhes a possibilidade de trabalharem com o conhecimento e sim, meramente com os cuidados básicos e socialização dos educandos, particularmente em relação às crianças.

Um dos determinantes possíveis para esse estado de diluição da profissão docente é o fato da profissão se constituir como uma profissão de mulher, por se tratar de docência para crianças (HYPOLITO, 1997). Assim, se desenvolve uma dificuldade de separação entre a escola e a casa, o espaço público, e o privado. Dessa forma, o que com frequência se espera das professoras de crianças (principalmente de crianças pequenas) é mais cuidado do que educação. E nesse sentido, como afirma o autor, se constitui a ideologia da domesticidade, com a falsa identidade entre a atividade docente e as ditas habilidades femininas. Essa ideologia é repleta do ideário do sacerdócio, missionário e da vocação. E no âmbito da violência, como uma questão imediata do cotidiano, a professora, a partir dessa ideia, pode ser considerada a salvadora ou até mesmo domesticadora das crianças em situação de risco, sem, no entanto, a reflexão mais profunda a partir de referenciais teóricos a respeito. 

Sacristan (1995) faz um alerta afirmando que o que existe no discurso pedagógico dos/as professores/as no que diz respeito à prática pedagógica e à qualidade do ensino é uma hiperresponsabilização dos/as professores/as, que influencia na sua prática educativa. De maneira semelhante, Moraes e Torriglia (2003) fazem crítica ao acúmulo de funções que exige do docente ser um “superprofessor”, que deve dar conta de todas as demandas que chegam e/ou são originadas no contexto escolar.

No entanto, percebe-se que essa falta de controle do seu trabalho diante das múltiplas necessidades, múltiplas diversidades, a falta de identificação com o trabalho, a falta do reconhecimento social, entre outros determinantes, podem fazer com que o trabalho, no lugar de promover saúde, promova adoecimento, como discutido por Codo (2006). Facci (2004) aponta que a superação de um trabalho alienado não depende apenas de condições subjetivas, depende também das condições efetivas de trabalho que podem ou não auxiliar o professor na busca de relações mais conscientes com a atividade social que desenvolve. Assim, quando as condições objetivas de trabalho – recursos físicos das escolas, materiais didáticos, estudo coletivo, possibilidade de trocas de experiências, organização da escola em termos de planejamento, salários etc. – não permitem que o professor se realize como integrante do gênero humano, o seu trabalho traz desgaste psicológico e físico, e dificulta o exercício do seu papel humanizador.

Facci (2004), fundamentada em uma visão de educação baseada nos aportes teóricos da psicologia histórico-cultural e da pedagogia histórico-crítica, enfatiza que cabe ao professor, no processo educativo, contribuir para o processo de humanização. A partir da consideração de que humanizar é viabilizar aos alunos a apropriação do conhecimento objetivo. Segundo Facci (2004), o/a professor/a deve encaminhar o ensino objetivando forçar o aluno ao desenvolvimento máximo das suas capacidades. Nessa perspectiva, para realizar tal tarefa o professor deve dominar determinados conhecimentos que o aluno não tem e deve transmiti-los aos estudantes. Além disso, ele deve ter autoridade profissional e produzir, de forma deliberada, a aprendizagem como resultado do ensino. Facci (2004) acredita que assim é possível valorizar o trabalho do professor no processo ensino-aprendizagem, superando o esvaziamento do seu trabalho e o esvaziamento dos conteúdos tão necessários na educação escolar.

Ainda sobre identidade e função dos/as professores/as, Roldão (2007) caracteriza como traço essencial, expertise, específico da profissão docente, o ensinar algo a alguém, de forma que esse ensinar, a partir de uma visão ampla, é fazer com que o outro aprenda. Assim, a autora prefere a expressão “ação de ensinar” e não “prática docente”, uma vez que a primeira é uma ação inteligente, baseada em um domínio seguro do saber. Nesse sentido, o docente é aquele que ensina não meramente porque sabe, mas porque sabe ensinar.

Assim, a identidade como temática relevante na formação de professores/as deve ser foco de discussão em uma proposta de formação de professores/as no que diz respeito à violência intrafamiliar. Isso ocorre porque as ações do docente diante desse fenômeno devem partir do que lhe cabe enquanto função e não como responsabilidade exclusiva. Da mesma forma ocorre com outros fenômenos que estão presentes na instituição educativa e influenciam na prática educativa, mas não podem ocupar seu lugar nem diluí-la.

E QUAL É A FORMAÇÃO DOCENTE POSSÍVEL NA DISCUSSÃO SOBRE A VIOLÊNCIA INTRAFAMILIAR?

Vigotski (2000) afirma que nos constituímos através dos outros. Nesse sentido, ao contrário de propostas radicais que excluem da instituição educativa os fenômenos inicialmente constituídos for dela, omitindo-se diante deles, a formação aqui proposta considera o docente como sujeito capaz de se comprometer com a proteção de crianças, ao mesmo que não pode ser o único responsável por essa proteção. Para tanto, a formação de professores/as deve buscar a reflexão sobre a prática sem o esvaziamento da teoria, na busca constante pelo exercício da práxis (SACRISTAN, 1995), desde a formação inicial, como enfatiza Dias-da-Silva (2005, p.400): 

Não tenho dúvidas em afirmar que o melhor mecanismo para desarmar essas ciladas é a defesa da profissionalização dos professores, mediante a construção de cursos de licenciatura que igualmente valorizem o domínio de conhecimento e a formação educacional dos professores, sob pena de perpetuarmos demandas de formação continuada para preencher lacunas de uma formação inicial insuficiente e precária (DIAS-DA-SILVA, 2005, p. 400).

Sobre a relevância da relação entre a teoria e a prática, mesmo em perspectiva diferente, Charlot (2005) afirma que formar professores/as é trabalhar os saberes situando neles os pontos em que podem se articular lógicas que são e permanecerão heterogêneas, o que, aliás, é fundamental, porque a pretensão de integrar o saber e a prática em um discurso ou em uma prática totalizante imediatista é fonte de dogmatismo e de totalitarismo.

Silva (2011), por sua vez, a partir de uma perspectiva crítica-emancipatória de formação de professores/as, discute a necessidade da superação da reflexão esvaziada que comumente se faz no âmbito da prática educativa em si mesma. Esta, portanto, de acordo com a autora, não é capaz de gerar um conhecimento acadêmico e pedagógico novo e transformador. Assim, a concepção de formação de professores/as na perspectiva crítica-emancipatória visa a construir a indissociabilidade entre teoria e prática na práxis. Nessa concepção, a formação é compreendida como uma atividade humana que transforma o mundo natural e social, para fazer dele um mundo humano e constituir o próprio humano, sem ter intencionalidade estritamente utilitária (SILVA, 2011). Em perspectiva semelhante, Shiroma (2003) alerta para o processo de “Desintelectualização do professor”, com a pouca ênfase nos aspectos teóricos e na dimensão política da formação inicial e continuada de docentes e da atuação dos/as professores/as. Sacristan (1995) também considera a teoria como relevante na formação docente e chama a atenção para a necessidade de romper com a ideia de uma linearidade (unívoca) possível entre o conhecimento teórico e a ação prática, por meio da análise da educação como práxis.

Dessa forma, em uma proposta de formação de professores/as, faz-se necessária a inclusão não meramente da identificação dos casos de violência intrafamiliar contra crianças como algo localizado e culpabilizador das famílias e sim, a discussão sobre a temática da violência de maneira ampla, inclusive imbricada na Educação. Além disso, é urgente a demanda por formação que desnaturalize a infância e a família, para assim, superar propostas pautadas em manuais de orientação e na obrigatoriedade da denúncia, que viabilizam práticas sem atribuição de sentido por parte dos educadores. Essas práticas, ao invés de proteger crianças e adolescentes, podem intensificar a vitimização, a situação de risco e constituição de relações violentas também no âmbito educacional, expressas, por exemplo, na exclusão e na desqualificação das famílias. 

O professor não deve ser alguém meramente escalado para apagar incêndios, por meio da busca da solução imediata e superficial dos problemas. E como chama a atenção Silva (2008), o educador não sai de seu papel, tampouco ocupa o lugar de terapeuta ou assistente social, quando reconhece o sofrimento e a inquietação de seus alunos. Os/as professores/as fazem escolhas todos os dias, escolhas que afetam a vida e as oportunidades de muitas crianças. Hypolito (1997), em concordância com a ideia de que a escola não é uma instituição totalmente determinada e que há espaços para práticas sociais conscientizadoras, defende que nessa perspectiva, ainda que a escola cumpra um papel na reprodução social e cultural, os agentes sociais que a constroem desenvolvem práticas que, paralelamente, reforçam e contestam as formas de dominação e controle. Por isso, enfatizando esse papel ativo dos/as professores/as, deve-se destacar o caráter intelectual do trabalho exercido por docentes (Hypolito, 1997).

Em suma, a escola, bem como os/as professores/as, sozinhos não dão conta e não podem ser responsabilizados pelas soluções necessárias (não só às soluções práticas imediatas, mas aquelas responsáveis por mudanças estruturantes) em relação à violência intrafamiliar. E como apresentam Lüdke e Boing (2007), os/as professores/as são alvo ou estão no fogo cruzado de muitas esperanças sociais e políticas em crise nos dias atuais. De acordo com os autores, as críticas externas ao sistema educacional cobram dos/as professores/as cada vez mais trabalho, como se a educação sozinha tivesse que resolver todos os problemas sociais. No entanto, como discute Silva (2008), a escola e a educação jamais solucionarão isoladamente qualquer demanda social.

Oliveria e Marinho (2010), por sua vez, pontuam que a relação família-escola está permeada por um movimento de culpabilização.Entretanto, é necessária a construção de ideias vinculadas à responsabilização compartilhada, a fim de superar a ideia restritiva da relação família-escola dirigida somente à instrumentalização dos pais para a ação educacional, por se acreditar exclusivamente que somente a participação da família é condição necessária para o sucesso escolar.

Por esse motivo, é preciso que cada esfera social (familiar, assistência social, assistência à saúde, educação) conheça suas funções, assuma suas responsabilidades nos cuidados e proteção de crianças, sem fragmentar as ações, mas também sem diluir as atribuições de cada um. E para que a escola assuma e participe da constituição das suas atribuições é necessário que a questão da violência intrafamiliar esteja inserida nos cursos de formação inicial e continuada e que seja assim, elemento de discussão sobre como as relações são constituídas na nossa sociedade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A violência intrafamiliar é questão importante e presente no cotidiano das escolas. Nesse contexto os/as docentes são pessoas muito importantes para a humanização das crianças. Além disso, eles possuem, enquanto função, ensinar algo a alguém, fazendo com que ele aprenda a partir do conhecimento sobre o que, como e porque fazê-lo. Por isso, os/as docentes são também fundamentais na discussão, no desvelamento e na mudança da realidade da violência intrafamiliar contra crianças. Tal mudança pode ocorrer por meio de ações que considerem a criança e a responsabilidade dos adultos em relação a ela e com isso, empreender a efetivação dos direitos das crianças de serem protegidas de maneira integral. Daí a importância da luta pelo respaldo necessário institucional para que essa se concretize.

No entanto, alerta-se para o risco de localizar na escola e na família e não na sociedade de maneira geral, os determinantes da violência nas diversas relações entre os diferentes sujeitos. Assim, o aparente insucesso da escola em relação a diferentes fenômenos sociais corresponde muito mais ao insucesso da sociedade como um todo.

Por considerar a escola como instituição social privilegiada, ela é sem dúvida um dos espaços possíveis de desvelamento, desnaturalização da família, da infância e da violência contra crianças e fazer germinar mudanças necessárias. Para isso, é preciso superar a ideia reducionista de que a mera reflexão sobre a prática dará conta dos fenômenos que surgem no contexto escolar. Pelo contrário, a mudança é somente viabilizada pela reflexão fundamentada e fundamentadora, na busca pela elaboração de síntese e pelo processo de revelação das contradições que constituem os fenômenos sociais, e que devem constar nos cursos de formação inicial e continuada de professores. Dessa maneira, concluímos que a violência intrafamiliar pode ser inserida na formação de professores/as como questão relevante na discussão sobre a identidade e função docente.

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