GESTÃO DEMOCRÁTICA, ENSINO E APRENDIZAGEM: CONCEPÇÕES DE PROFESSORAS DOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL

Resumo: O objetivo é apresentar e discutir alguns resultados de uma pesquisa concluída, cujo tema referia-se às concepções de professoras de uma escola pública municipal de anos iniciais da educação básica, localizada no interior do estado de São Paulo, relativas à autonomia, participação, gestão democrática e suas visões sobre como esses princípios, vigentes ou não na escola, poderiam influenciar processos de ensino e aprendizagem. Na primeira seção será explicitada a metodologia de pesquisa, qualitativa e exploratória, assim como o contexto de sua realização e caracterização dos sujeitos. Na segunda serão problematizados alguns dos resultados alcançados com base nos referenciais teóricos que nortearam a investigação. Algumas ponderações sobre essa tematização constituem as considerações finais.

Palavras-chave: Concepções de professoras; Gestão democrática; Ensino e aprendizagem.


INTRODUÇÃO

Esta comunicação refere-se a uma pesquisa realizada durante os anos de 2004 e 2005 que teve como objetivo levantar, analisar e problematizar as concepções de um grupo de professoras dos anos iniciais da educação básica, de uma escola da rede pública municipal de ensino do interior do estado de São Paulo, sobre autonomia, participação e gestão democrática. Também foram averiguadas suas perspectivas sobre como esses princípios, vigentes ou não na escola, poderiam influenciar processos de ensino e aprendizagem. Assim, o objetivo deste trabalho é apresentar e problematizar alguns dos resultados dessa investigação.

Na primeira sessão será explicitada a metodologia e o contexto de realização da pesquisa, assim como a caracterização dos sujeitos. Na segunda serão apresentados alguns dos resultados, problematizados à luz dos referenciais teóricos que embasaram a referida pesquisa. Finalmente, serão apresentadas algumas considerações, que ainda que provisórias, representam algumas indicações sobre a tematização proposta.

CONTEXTO DE REALIZAÇÃO E PERCURSO METODOLÓGICO

A escola municipal onde a pesquisa foi realizada está localizada em um bairro periférico de uma cidade do interior do estado de São Paulo, que atende cerca de 700 alunos do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental e do 1º e 2º termos da Educação de Jovens e Adultos. As famílias dos estudantes têm renda familiar entre um e sete salários mínimos, sendo compostas majoritariamente por trabalhadores empregados em fábricas e em serviços domésticos. A maioria dispõe de casa própria, saneamento básico e energia elétrica. Os membros dessas famílias têm predominantemente o grau de escolaridade fundamental incompleto. No bairro no qual a escola se localiza faltam opções de lazer, cultura e vida social.

No que se refere aos sujeitos de pesquisa, tratou-se de um grupo de 10 professoras, de 25 a 50 anos de idade, todas licenciadas em pedagogia, a maioria tendo declarado que estiveram ou estavam engajadas em cursos de formação continuada, tanto em nível de especialização como de mestrado. Seus tempos de magistério variavam de cinco a 20 anos, todas tendo atuado em diferentes anos da primeira etapa do ensino fundamental nos últimos cinco anos.

A abordagem metodológica que norteou a investigação foi a qualitativa e exploratória em educação (BOGDAN; BIKLEN, 2010). A opção pela pesquisa qualitativa se deu pela própria natureza dos dados, qualitativos, constituídos de excertos levantados pelos dois instrumentos utilizados: um questionário aberto e uma entrevista semiestruturada.  Já o aspecto exploratório da pesquisa residiu no fato de que as categorias de análise emergiram a partir dos dados levantados, sem hipóteses pré-estabelecidas.

Primeiramente, foi aplicado um questionário aberto para delimitar quais seriam as concepções das professoras sobre a temática estudada. Posteriormente, foi realizada uma entrevista semiestruturada com três dessas professoras, objetivando a compreensão mais detalhada de alguns aspectos levantados por meio do questionário. Para que esses instrumentos pudessem ser utilizados, o projeto de pesquisa assim como esses instrumentos foram submetidos ao Comitê de Ética em Pesquisas em Seres Humanos – Plataforma Brasil, tendo sido aprovados sob o nº 32773614.4.0000.5504.

Os dados levantados por meio dos dois instrumentos foram então aglutinados, analisados e discutidos de acordo com os referenciais teóricos que embasaram a investigação. Parte dessa tematização será apresentada a próxima seção.

ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

A seguir serão apresentadas e discutidas as respostas dadas pelas professoras, doravante identificadas pela letra P maiúscula e um respectivo número, às perguntas do questionário.  É importante ressaltar que respostas com conteúdos significativamente semelhantes foram agrupadas, facilitando assim suas análises.  Já os excertos das entrevistas serão apresentados com o objetivo de detalhar e aprofundar as discussões realizadas.

Quadro 01 – Concepções de autonomia
O que é autonomia?

P1: É a capacidade da escola de ser autônoma para tomar suas decisões em relação ao PPP a que se propõe. Autonomia não significa independência do sistema, ao qual a escola está inserida.

P2, P5, P6, P7 e P10: Poder trabalhar da sua maneira, sem exigência de uma vertente a ser seguida, porém com orientações para melhor desenvolver o trabalho docente (planejamento) e sem afetar o coletivo.

P3: Realização de atividades sem ajuda de outras pessoas, por meio de habilidades adquiridas para alcançar seus objetivos.

P4, P8 e P9: Ser livre, agir por conta própria, capacidade de decisão individual.

A questão que deu origem ao quadro acima se baseou na premissa estabelecida por Barroso (1996) de que a autonomia das escolas não é oferecida e/ou promovida pelas autoridades educacionais, mas construída no cotidiano escolar por estudantes, professores, equipe gestora, funcionários, pais e comunidade.

Essa premissa parece ter permeado algumas das concepções expressas pelas professoras, que podem ser entendidas em duas dimensões. A primeira delas, expressada pelas P2, P5, P6, P7 e P10, identificou autonomia com a possibilidade de realizar seus trabalhos docentes sem um referencial teórico e/ou currículo a ser seguido estritamente, admitindo a necessidade de orientação, por meio de planejamento, para exercê-los. Tratou-se, portanto, de uma visão de autonomia ligada às práticas pedagógicas coletivamente construídas, já que o planejamento é normalmente uma atividade desenvolvida conjuntamente por professores e equipe gestora. 

A segunda dimensão é apresentada pela P1, que concebeu a autonomia de forma mais ampla, abrangendo a escola, instituída por meio das decisões coletivas explicitas no Projeto Político Pedagógico.  Ela expressou também que essa autonomia seria relativa, como explica Barroso (1996), dentro dos parâmetros de modelos organizacionais decretados pelos sistemas (LIMA, 2003), isto é, a escola tem uma margem de autonomia concedida pelo sistema de ensino. Divergem das professoras supracitadas P3, P4, P8 e P9, que abordam a autonomia como um bem individual, uma condição subjetiva para tomada de decisões, desvinculando, assim autonomia de participação.

Assim, ficou evidenciado que algumas das professoras conseguiram entender a autonomia das equipes escolares como um processo planejado coletivamente, instituído e instituído pelo PPP. Essa ideia de planejamento voltado à autonomia das professoras pode ser entendida como essencial ao desenvolvimento da escola, já que ela oferece, de acordo Oliveira, Souza e Bahia (2014, p. 41), “consistência, amplitude e sentido à prática que vai sendo construída na instituição escolar”.  Ela também pode ser um indício da formação na escola de uma colegialidade docente (COSTA; CASTANHEIRA, 2015), isto é, processos de colaboração entre docentes de modo a desenvolver aprendizagens coletivas orientadas por professores líderes, que se estabelecem endogenamente entre os próprios pares.

Por outro lado, o que parece ter faltado a todas elas é a concepção de que pais, estudantes e comunidade também são partícipes na construção da autonomia escolar (RICAL, 2009). Elas também não demonstraram entendimento de que participação dos pais e da comunidade é essencial inclusive para a preservação da autonomia profissional dos professores (NÓVOA, 1999).

Portanto, seria desejável que os sistemas educacionais auxiliem as escolas públicas na construção de suas próprias autonomias, em um real esforço de descentralização e não de desconcentração como tem ocorrido até o presente momento.  Também seria importante que as equipes escolares não caíssem no maniqueísmo de sempre entender as solicitações e cobranças dos sistemas de ensino como ações autoritárias e centralizadoras, preconizadoras da diminuição da autonomia da escola e dos seus sujeitos. Seria mais promissor do ponto de vista do aprimoramento da educação básica brasileira que escolas e sistemas trabalhassem juntos no sentido de incentivar a autonomia de estudantes, pais, professores e comunidades, reunindo esforços para a garantia de uma educação de qualidade social a todos os estudantes, garantia esta que é dever do estado, da sociedade e de todos os envolvidos na e com a escola.

Esse argumento contradiz a concepção expressa por algumas das professoras de que a autonomia seria a possibilidade de agir individualmente, pois não há como pensar em uma autonomia desarticulada dos conceitos de reflexão, coletividade e participação, os quais não podem existir quando remetidos a uma única pessoa, um único pensamento ou uma única ação. Em relação a isso, Imbernón (2011) explica que inovações educacionais produzidas individualmente são apenas experiências individuais, que não se refletem na coletividade, nem escolar, nem social. Portanto, a autonomia na escola não pode corresponder ao exercício de vontades e interesses particulares e não possibilita o direito de agir com liberdade irrestrita, mas se refere à assunção coletiva de responsabilidades sobre educação básica pública.

Assim, depreende-se que as concepções sobre autonomia expressadas pelas professoras se encontravam no meio do caminho entre uma visão subjetivista, ligada a um ideal de liberdade individual e uma visão mais ampla, coletiva do desenvolvimento da autonomia, passando pelo planejamento e pelo PPP.

Quadro 02 – Concepções de participação

O que é participação?

P1: É o movimento que se faz em prol “do fazer parte” de cada indivíduo no contexto escolar.

P2, P5 e P10: Só ocorre em momentos específicos, como na adequação do projeto pedagógico da escola, os Conselhos de Classe e Série, e o Conselho Escolar. Mas, atualmente não há a participação dos alunos.

P3, P4, P6 e P8: É a colaboração dos docentes para realização do que é proposto, se expressando, se envolvendo, se respeitando.

P7: Comunidade escolar atuando para desenvolver atividades conjuntas para a melhoria da aprendizagem.

P9: Deve ser ativa e consciente, buscando indagações e promoção de mudanças na sociedade em todos os contextos.

As concepções de participação das P1, P7 e P9 evidenciaram que ela seria propulsora de realizações conjuntas por meio do envolvimento de toda a comunidade escolar. Além disso, a P7 destacou que o objetivo dessa participação seria qualificar o ensino e a P9 relacionou-a com transformação social. Já um segundo grupo, composto pelas P3, P4, P6 e P8, expressou como as docentes devem participar para atingir os fins educacionais propostos. P2, P5 e P10 ressaltaram ainda que a participação só se realiza em momentos específicos como adequação do PPP e nos órgãos colegiados.

As respostas das professoras demonstram que elas não conseguiram estabelecer uma ligação entre autonomia e participação, pelo menos explicitamente. Isso evidencia que suas concepções de participação se encontravam ainda em um estado um tanto quanto rudimentar, pois a participação fundamenta-se na autonomia, isto é, participar significa tomar consciência e responsabilidade sobre posicionamentos e atos, o que demanda algum grau de autonomia. Portanto, a participação é um meio de concretizar a autonomia na escola, pois por meio dela que é possível a organização do trabalho coletivo, tanto das atividades fim – o ensino e a aprendizagem – como das atividades meio – a gestão.

Nesse sentido, é importante destacar as concepções das P2, P5 e P7 que apontaram a participação como uma forma de “adequar ao PPP”. Não é possível determinar se essa adequação seria de um PPP já existente na escola, ou se seria de algum gestado pelo sistema de ensino, mas somente a ideia de adequação já revela uma visão distorcida de participação, que serviria apenas para adaptar a escola a demandas externas, no campo da autonomia decretada (BARROSO, 1996; LIMA, 2003).  Na verdade, o PPP deveria ser a expressão da autonomia escolar viabilizada pela participação, “o resultado de um processo que exige a reflexão sobre o que se deseja, como se pode realizar este desejo e o planejamento das ações que viabilizarão sua concretude” (RISCAL, 2009, p. 43).

As P2, P5 e P10 demostraram entender que alguns dos possíveis espaços escolares para a participação seriam os Conselhos de Classe e Série e o Conselho Escolar. Essa compreensão encontra apoio em Luiz (2010, p. 06), para quem os Conselhos Escolares são instrumentos de participação, pois propiciam a atuação de todos os segmentos que compõem a equipe e a comunidade, com os objetivos de expor seus objetivos e dúvidas em relação ao ensino e buscar soluções para possíveis problemas. Ocorre que as mesmas professoras admitiram não se tratar de uma participação completa, de acordo com a autora, na medida em que um dos segmentos, o dos estudantes, não participa, estando excluído de decisões que dizem respeito ao seu desenvolvimento escolar. Isto é, os estudantes, que são a razão de existir da escola, estão alijados dos processos que envolvem decisões sobre suas aprendizagens, atividades fim da escola.

Outro aspecto apontado pelas P2, P5 e P10 é que a participação naquela escola era esporádica, episódica, o que se presume ser verdadeiro, mas não desejável. Isto é, a resposta dada parece expressar certo conformismo com essa participação eventual, o que pode indicar que essa forma de participação poderia ser entendida pelas professoras como aceitável.  Segundo Libâneo, Oliveira e Toschi (2012, p. 389) os estudantes, como participantes da escola devem estar constantemente engajados nos processos decisórios “vivenciando práticas de reflexão e de atuação, de debate e de confronto de opiniões, com respeito às diferenças individuais”. Portanto, não se pode conceber a participação na escola sem que os estudantes tomem parte dela.

Também deve ser considerado que as P3, P4, P6, P8 e P7 demonstraram conceber a participação de forma relativamente ampla, considerando o trabalho docente e a atuação da comunidade, para além dos órgãos colegiados.  P1 expressou essa possibilidade em sua entrevista:

[...] às vezes eu estou com alguma dificuldade, às vezes até para: “Olha eu queria fazer isso, mas não sei como fazer e não sei o que... Vamos pensar juntos? ”. Eu chamo muito os pais para isso viu. Igual a gente fez a Olimpíada da Gastronomia e foi muito gostoso, porque os pais ajudaram os filhos, tinha algumas atividades que eram para serem feitas em casa e desenvolvidas com a ajuda dos pais, e são essas atitudes, compartilhando os conteúdos, aquilo com a escola quer fazer com os filhos, tudo.

Ela também evidencia no excerto a seguir a crença na participação como uma potencializadora do trabalho docente dentro da escola:

[...] eu acredito que essa seja a saída da escola pública. Eu sempre gostei dessa participação, [...] eu acho assim que hoje em dia está tendo essa mudança de mentalidade, até pela LDB mesmo, que as pessoas estão entendendo que a comunidade tem que entrar, que não é mais aquele papel passivo, eu acredito que a gente está num período de mudanças e eu sempre contei mesmo com a participação das pessoas nas escolas em que eu trabalhei. Eu trabalhei em uma escola pública como diretora, a escola era de madeira e a única coisa que eu tinha de favorável ali era a comunidade, então eu acho que parte muito do que os profissionais acreditam.

Destaca-se ainda a visão de participação da P9, para quem ela deve ser ativa e consciente, possibilitando a promoção de mudanças na sociedade, perspectiva de participação que amplia seu escopo para além da escola, como base da democracia, que deve fomentar mudanças sociais objetivando a construção do bem comum.

O que estava além das concepções das professoras sobre participação é que para efetivá-la na escola como parte integrante da participação na sociedade se faz necessário que as equipes escolares criem, aproveitem e mantenham tempos e espaços para que os membros dos diferentes segmentos possam aprender a participar (NASCENTE; LUIZ; LIMA, 2015), tanto por meio do diálogo como de ações coletivamente decididas e postas em prática.

A análise das respostas dadas pelas professoras ao questionário e dos excertos das entrevistas revela que elas tinham concepções de participação que continham alguns dos seus elementos essenciais: a importância dos órgãos colegiados, do respeito, do envolvimento, da contribuição de cada indivíduo; a ideia de que a comunidade escolar deve atuar em conjunto na busca de soluções de problemas e aprimoramento dos processos de ensino e da aprendizagem e a amplitude da participação na sociedade da qual a escola faz parte e para qual a escola deve contribuir.

Entretanto, as concepções das professoras pareceram estar ainda em um plano discursivo, na medida em que os dados explicitaram que a participação naquela escola ainda estava longe de ser concretizada. Essa participação muito parcial ou quase inexistente poderia, por sua vez, influenciar as concepções das docentes, podendo levá-las a entender que aquele estágio de participação seria relativamente satisfatório, até porque não foram encontradas evidências que revelassem algum nível de insatisfação com os processos participativos lá vigentes.

Quadro 03 – Concepções de gestão democrática
O que é gestão democrática?

P1: É a gestão partilhada, em que todos/as fazem parte e opinam sobre as decisões da escola. É a atuação responsável de todos os segmentos, principalmente, via o Conselho de Escola.

P2, P5 e P10: Deliberações discutidas pelo Conselho Escolar.

P3: Quando se administra de modo justo, imparcial e ouvindo seus colaboradores.

P4: Porta principal de abertura.

P6, P7 e P9: O gestor precisa ter a visão do todo escolar, para que haja a descentralização nas tomadas de decisões entre todos os envolvidos que participam do contexto escolar.

P8: Liderança sem autoritarismo.

Na perspectiva das P3, P6, P7, P8 e P9 a gestão democrática relaciona-se ao papel do diretor e/ou da equipe gestora na administração da escola, que deveria ser justa e imparcial baseada na escuta dos argumentos de colaboradores, livre de autoritarismo, eminentemente descentralizada.  As P2, P5 e P10 pareceram conseguir associar a gestão democrática à participação, que estaria relacionada com as deliberações discutidas no Conselho Escolar. A P1 expressou uma concepção de gestão democrática baseada na participação responsável da comunidade escolar nas decisões da escola e a P4 usou uma metáfora "porta principal de abertura" para definir sua compreensão de gestão democrática. Assim como na discussão dos dados relativos às concepções de autonomia e de participação, percebeu-se que as concepções das professoras sobre gestão democrática eram parciais, isto é, relativas a alguns aspectos dessa gestão, aparentemente influenciadas pelas experiências com a gestão por elas vivenciadas na escola.

Com base no pressuposto de que a gestão democrática é um dos principais meios de garantir a educação como um processo de empoderamento de sujeitos, a escola deveria planejar e efetivar ações capazes de melhorar a qualidade de formação dos estudantes para que, posteriormente, eles pudessem atuar e possivelmente transformar a sociedade em que vivem (SCHLESENER, 2006). Portanto intrínseca à gestão democrática está à formação para a cidadania, cujo significado é explicitado por Riscal (2009, p. 49):

[...] podemos definir a cidadania moderna como um corpo de direitos civis, políticos, sociais e econômicos que todos os membros de um Estado possuem e que está estabelecido na Constituição deste país. Este é um dos mais importantes aspectos da concepção de cidadania contemporânea [...]. A concepção de cidadania vem passando gradualmente a significar, cada vez mais, a extensão de condições iguais de acesso aos direitos civis, políticos, sociais e econômicos a toda a população de uma nação.

A partir dessa definição, afirma-se que é fundamental a gestão democrática estar articulada com o conceito de cidadania, buscando, como coloca a P1, a participação responsável de toda a comunidade escolar. Essa participação pode ocorrer na construção coletiva do PPP, nos órgãos colegiados da escola, nas tomadas de decisões e nos processos educativos da instituição escolar para que eles eduquem para vida social e política. Quanto a isso, os/as P2, P5 e P10 reconheceram a relação da gestão democrática com o Conselho Escolar.

Dessa forma, a gestão democrática deve objetivar a posição da P1 e a metáfora da P4, o que é confirmado no seguinte excerto da entrevista com a P1:

[...] eu acredito muito nessa questão da gestão participativa, eu acredito que quando todo mundo se sentir responsabilizado pela escola vai ser diferente, não é simplesmente os pais depositarem os filhos na escola e acharem que está tudo certo, e também não são os professores julgarem que só eles vão dar conta, nem só o diretor. Eu acredito que tem que ser uma responsabilidade coletiva mesmo.

Portanto as concepções das professoras coincidem com a visão de Luiz (2010), para quem a escola deve propiciar uma mudança na mentalidade de todos os membros da comunidade escolar para que eles compreendam a necessidade de uma relação mais próxima entre todos, sentindo-se à vontade para levantarem, discutirem, pensarem, analisarem questões que vêm ao encontro da realidade da instituição, buscando um entendimento mútuo, um consenso sobre o que é desejável para a escola. 

A tomada de consciência por parte de toda a comunidade escolar da necessidade de fazer parte dos processos de decisão da escola propicia, de acordo com Ferreira (2006, p. 173), “a riqueza de ideias, o debate, o confronto de argumentos diferentes [...]”, desenvolvendo a participação, o diálogo e a consciência, os quais são essenciais na construção de uma gestão democrática.

As P3, P6, P7, P8 e P9 destacaram a essencialidade do papel da direção da escola na implementação da gestão democrática, visão corroborada por Costa e Castanheira (2015), para quem os líderes escolares estariam no centro estratégico do desenvolvimento organizacional com vistas à qualificação da educação básica e também por Libâneo, Oliveira e Toschi (2012, p. 447), quando afirmam que “a concepção de gestão democrática se baseia na relação orgânica entre a direção e a participação dos membros da equipe”, acentuando a importância da busca de objetivos assumidos por todos.

É preciso ter cuidado, entretanto, no que se refere ao papel da direção no processo de democratização escolar, pois ele significa a responsabilização da direção e de sua equipe na coordenação e administração das decisões tomadas pela comunidade escolar e na colocação das ações decididas coletivamente em prática. Essa responsabilidade, é importante que se enfatize, deve ser compartilhada com todos os segmentos: pais, funcionários, estudantes e membros da comunidade.

Portanto, quando expressaram suas concepções sobre a gestão democrática, as professoras pareceram ter começado a se aproximarem de práticas escolares democráticas, o que poderia indicar que teriam alguma possibilidade de estabelecer algumas ligações entre gestão democrática e processos de ensino e aprendizagem.

Quadro 04 - A relação entre a gestão democrática e o processo de ensino e aprendizagem
Qual a relação entre a gestão democrática e o processo de ensino e aprendizagem?

P1: Uma gestão boa é importante para conduzir as diretrizes da escola.

P2, P5, P7 e P10: Quando a gestão da escola funciona bem, reflete diretamente na prática pedagógica e na aprendizagem dos alunos.

P3: A gestão democrática contribui e facilita o trabalho do docente, apoiando e ajudando projetos e sequências didáticas.

P4: Gosto da relação da gestão da escola com os professores e alunos. Estar sempre aberta a diálogos e novas ideias.

P6: As decisões sobre assuntos relacionados diretamente à sala são compartilhadas entre os docentes. Todos os professores têm liberdade para opinarem e são ouvidos. As deliberações mais sérias são realizadas por todo o grupo como planejamento, retenção, projetos, organização de turmas, etc.

P8: A gestão da escola está sempre atenta às dificuldades dos alunos, conversa constantemente com os professores, dá sugestões para amenizar ou solucionar situações.

P9: Formando alunos críticos para que consigam defender suas ideias.

As respostas das professoras demonstram primordialmente que elas concebiam uma ligação intrínseca entre trabalho docente e gestão escolar, isto é, para elas estava clara a interdependência entre essas duas dimensões. Elas demonstraram crer que a gestão escolar contribui diretamente para a qualificação dos processos de ensino e aprendizagem. Particularmente as respostas de P3, P4, P6 corroboram a premissa de que o propósito fundamental da escola gerida democraticamente deveria ser a aprendizagem dos educandos, sendo necessária a articulação dessa gestão com as dimensões curriculares e pedagógicas (RAMOS; CONTI, 2013).

Oliveira, Souza e Bahia (2014) esclarecem que o exercício da gestão democrática deve concretizar-se nas salas de aula, intermediado pelos professores, que são os principais mediadores entre estudantes, conhecimentos e práticas sociais. Essa mediação passa pelo incentivo à participação ativa em todas as atividades pedagógicas propostas, manejando democraticamente os processos de aprendizagem. 

Para Schlesener (2006, p. 184), os estudantes devem vivenciar o regime democrático em diversos espaços escolares, desde a sala de aula, até o Grêmio Estudantil, por meio do diálogo constante e de atividades orientadas pelo trabalho coletivo, tais como debates, desenvolvendo com os estudantes, nas atividades de ensino “uma atitude crítica diante de uma realidade existencial, social e política determinada”.

A P4 evidencia o diálogo como um meio que facilita as relações e processos educativos dentro da sala de aula na perspectiva da gestão democrática. Segundo ela:

[...] focando dentro da sala de aula? Eu acho que sendo um professor aberto ao diálogo principalmente, pra mim eu acho que se resume mais nisso, uma relação mais dialógica com o aluno, com a gestão, com coordenação [...]. Eu não sei por que eu relaciono à dialógica, eu acho que a gente tem que estar sempre no diálogo e mediando, eu acho essa é uma das principais atividades que eu desenvolvo no dia-a-dia da escola, eu acredito que é um dos principais caminhos, porque não tem como você tentar uma gestão democrática, se não tiver diálogo. Eu acho que é bem isso mesmo, eu fico com essa fala.

A P1 considera também importante a participação dos pais, ainda que em situações muito precárias e fugazes:

[...] então, a gente pode fazer nas pequenas coisas né?! Trazer os pais, conversando na porta mesmo, na hora da saída e na hora da entrada, aquilo que a gente, os objetivos que a gente tem com as crianças.

Portanto, aparentemente, as concepções das professoras confirmaram a perspectiva de Oliveira, Souza e Bahia (2014) para quem gerir uma sala de aula democraticamente é criar condições de respeito mútuo, propiciando um processo de ensino-aprendizagem efetivo para todos, respeitando as diferenças e trabalhando em benefício dos estudantes e da sociedade. Essa forma de gerir a sala de aula, democraticamente, incentivando a participação dos estudantes, de acordo com Nascente, Luiz e Fonseca (2015) parece ser um encaminhamento promissor para a amenização de um dos problemas que mais tem afetado as aprendizagens e, mormente, as perspectivas de vida dos estudantes, a indisciplina. Sendo assim, é visível que a gestão democrática da escola e de cada sala de aula deve influir positivamente no desenvolvimento dos estudantes (BONAMINO; LIMA, 2013).

Nesse sentido, Imbernón (2011) aponta que a escola deixará de ser um lugar onde só se aprendem os conhecimentos básicos reproduzidos pela classe dominante, assumindo também o papel de educar cidadãos em todas as dimensões: democrática, social, solidária, igualitária, intercultural e ambiental. Para Oliveira, Souza e Bahia (2014, p. 94) essa educação demanda uma liderança democrática dos professores em sala de aula, que “implica a delegação de responsabilidades e atribuições de tarefas”, conjugando “interesse e esforço genuíno”.

Não se pode deixar de mencionar que para um trabalho de sala de aula realmente democrático o PPP deve se fazer presente nela, regendo as práticas pedagógicas decididas coletivamente pelos docentes. Desse modo, a gestão democrática poderá ser vivenciada e construída conjuntamente por professores e estudantes.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

A tematização sobre as concepções das professoras revelou que elas compreendiam alguns aspectos constituidores dos princípios da autonomia e da participação na perspectiva da gestão democrática. Elas também demonstraram entender a importância da relação entre gestão escolar e trabalho docente. Mais especificamente, algumas delas pareceram estar cientes da importância de práticas participativas e democráticas nas escolas e particularmente em suas relações com estudantes para a qualificação dos processos de ensino e aprendizagem.

As professoras, ao explicitar suas concepções, revelaram também como naquela escola estavam em curso algumas práticas que poderiam levar a uma gestão relativamente mais participativa.

Nessa perspectiva, há que se admitir que alguns conhecimentos e/ou discursos sobre autonomia, participação e gestão democrática ecoaram naquela escola, provavelmente por meio daquelas e/ou outras professoras e gestoras. Assim, por serem conceitualmente frágeis, as concepções explicitadas pelas professoras não seriam suficientes para sustentar práticas pedagógicas substancialmente autônomas e participativas.

Dessa forma, apesar de demonstrarem interesse e até inclinação ao desenvolvimento desse tipo de prática, ainda precisariam compreender de maneira muito mais ampla e aprofundada esses conceitos para que eles pudessem subsidiar suas práticas. Enfim, de acordo com a pesquisa realizada, ainda falta um longo caminho para a democratização das relações na escola, passando por todos os seus tempos e espaços e isso depende claramente de processos de formação docente e também de políticas públicas que possibilitem a prática da democracia nas escolas de educação básica.

Deve-se ter clareza ainda que a democratização da gestão escolar, por meio da autonomia e participação, é um processo inexorável, uma vez que as novas demandas dos estudantes na atual sociedade, marcada pelas novas tecnologias e por implacável complexidade, não poderão ser atendidas por uma escolarização centralizadora e autoritária, que ainda persiste. 

Agradecimentos à FAPESP - Fundação de Amparo à Pesquisa Científica do Estado de São Paulo pelo financiamento da pesquisa que deu origem a este trabalho.

REFERÊNCIAS

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