PROGRAMA ETNOMATEMÁTICA E CURRÍCULO: QUALIDADE E GESTÃO DA EDUCAÇÃO

Resumo: Partindo da consideração de que o currículo é um conjunto de estratégias da Educação, este artigo busca contribuir para o debate teórico, ao trazer reflexões acerca da relação entre currículo, qualidade e gestão da Educação, fundamentadas, prioritariamente, no Programa Etnomatemática. Decorre de estudos de um Doutorado que, qualitativamente, investigou o corpus conceitual deste Programa, uma teoria geral do conhecimento que propõe uma visão integral do Ciclo do Conhecimento e um novo trivium curricular. Visa ao aprofundamento das reflexões, ao apresentar-se como um hiperdocumento com oferta de links de acesso às referências disponíveis na internet.

Palavras-chave: currículo; Programa Etnomatemática; qualidade da Educação.


INTRODUÇÃO

O currículo pode ser considerado um conjunto de estratégias para atingir as metas educacionais. De sua organização, depende a qualidade da Educação, e da concepção de qualidade de Educação, depende a sua organização. Nesse sentido e tomando como base alguns aspectos político-pedagógicos que justificavam os parâmetros curriculares do Brasil, neste artigo, trazemos reflexões acerca da relação entre currículo, qualidade e gestão da Educação, em vias de contribuírem para o debate teórico e seus reflexos na prática pedagógica.

A discussão estende estudos de um Doutorado em Educação Matemática, que investigou o corpus conceitual do Programa Etnomatemática e reconheceu a amplitude de seus conceitos-chave para fazer interfaces conceituais com diversas áreas de conhecimento. Nessa investigação, alimentávamos a expectativa de uma adequada difusão da sua concepção epistemológico-cognitiva e teórico-filosófica, na Educação em geral.

Etnomatemática é um programa de pesquisa, no sentido lakatosiano, que critica a epistemologia vigente e busca compreender, integralmente, a relação do Ser Humano e da sociedade com o conhecimento, desde a sua geração à sua difusão, configurando-se como uma teoria geral do conhecimento conceitualmente ampla, de caráter transdisciplinar e com grande flexibilidade ao diálogo com estudos relativos à Educação em geral, dentre eles, o currículo e a gestão. Apoia-se, criticamente, em múltiplos aspectos desta relação, dos quais destacamos os sociais, os históricos, os culturais e os políticos.

O Programa Etnomatemática foi organizado, intelectualmente, pelo pesquisador brasileiro Ubiratan D'Ambrosio. Preocupa-se com as grandes metas da Educação e entende o currículo como sua estratégia-chave para atingi-las. Além disso, tem respeito à diversidade, defendendo uma dinâmica dos encontros culturais, uma ética da diversidade e uma Educação para a Paz. Com base nessas considerações e na Transdisciplinaridade, propõe um novo trivium curricular, que pretende o uso crítico dos instrumentos comunicativos (literacia), analíticos (materacia) e materiais (tecnoracia) presentes nas diversas realidades socioculturais. Essas características lhe conferem, sob nosso ponto de vista, um potencial para estabelecer relações entre discursos mais amplos e práticas com referência à realidade e para orientar quaisquer intenções pedagógicas.

O texto desenvolve-se tendo em vista três percursos reflexivos: Programa Etnomatemática: aspectos epistemológico-cognitivos de uma teoria geral do conhecimento, no segundo subtítulo, a seguir, no qual fazemos uma apresentação do Programa Etnomatemática, a partir dos conceitos-chave que o caracterizam como uma teoria geral do conhecimento; no subtítulo 3, Programa Etnomatemática: concepção de Educação e currículo, discutimos sua proposta curricular e concepção de Educação; e no subtítulo seguinte, Programa Etnomatemática e currículo: qualidade e gestão da Educação, fazemos um elo reflexivo com pontos abordados para sinalizar aspectos que julgamos, teórico e praticamente, relevantes à qualidade e gestão da Educação.

Ao dar ao artigo um caráter de hiperdocumento, com a inserção de links para acesso aos seus textos de referência livres na internet, visamos à oferta ao leitor de oportunidades de aprofundamento conceitual dos pontos discutidos e à adequada difusão do Programa Etnomatemática como  uma teoria geral do conhecimento.

PROGRAMA ETNOMATEMÁTICA: ASPECTOS EPISTEMOLÓGICO-COGNITIVOS DE UMA TEORIA GERAL DO CONHECIMENTO

O Programa Etnomatemática é uma teoria geral do conhecimento porque seu objeto de estudo é todo o processo epistemológico-cognitivo da relação entre o Ser Humano, individual e social, e o conhecimento, considerando a sua geração, organização intelectual e social e difusão, bem como os seus aspectos sociais, históricos, filosóficos, culturais, políticos e educacionais. Seu corpus conceitual é, portanto, muito amplo, mas nossos estudos de Doutorado apontam que alguns conceitos são essenciais à sua caracterização como teoria do conhecimento e muito relevantes à inibição da inferência de 'Matemática das etnias', geralmente decorrente de uma leitura precipitada e equivocada do seu nome. Nesse subtítulo, priorizaremos esses três conceitos essenciais: Etno+Matema+Tica, o Ciclo Vital e o Ciclo do Conhecimento.

Na concepção etnomatemática, o conhecimento é o saber-fazer que alimenta o comportamento para dar respostas a problemas e situações de um contexto natural, social e cultural, garantindo ao Ser Humano a sobrevivência e transcendência, conforme D'Ambrosio (2012, p. 24, grifos do autor), “por meio de maneiras, de modos, de técnicas ou mesmo de artes (techné ou tica) de explicar, de conhecer, de entender, de lidar com, de conviver (matema) com a realidade natural e sociocultural (etno) na qual […] está inserido”, isto é, por meio da Etno+Matema+Tica.

O entendimento adequado de Etnomatemática, uma palavra conceitual, é condição básica para que o Programa Etnomatemática possa servir de orientação político-pedagógica para a Educação em geral. Reiteramos que é necessária uma desassociação de Etnomatemática da disciplina Matemática, cuja hegemonia nos currículos é criticada pelo Programa, pois este, como explica D'Ambrosio (2011a), objetiva eliminar a dicotomia entre conhecimento e habilidades, herdada do período colonial da História da humanidade, quando o modelo de Matemática consequente da concepção dicotômica da Ciência Moderna, e ainda vigente na escola, foi imposto pelos colonizadores aos colonizados. Embora aqui não caiba um aprofundamento, julgamos relevante esclarecer que essa concepção etnomatemática transgressora atraiu diversas contestações ao Programa de Pesquisa Etnomatemática, conforme consideramos em Sousa (2014), que abalaram “valores da cultura matemática hegemônica a partir de reflexões acerca da sua reconstrução histórica” (p. 16), mas que acabaram fortalecendo o seu núcleo firme, do qual fazem partes os conceitos que aqui trazemos como essenciais, e podem fortalecer também as “políticas educacionais e curriculares, especialmente em relação ao alargamento dos gargalos que se formam, persistentemente, impedindo a construção de concepções que venham inovar e impactar a educação com melhores resultados.” (p. 20).

Para o Programa Etnomatemática, o conhecimento é vital a todo indivíduo, e pode ser descrito por meio de um ciclo permanente, no qual ocorre a sua interação com os fatos e fenômenos naturais e artificiais de uma realidade complexa, o que dá ao Programa um caráter transdisciplinar. Mas, como diz D'Ambrosio (2009, grifos do autor), “o indivíduo não é só. Há bilhões de outros indivíduos da mesma espécie com o mesmo ciclo vital… → Realidade que informa o Indivíduo que a processa e executa uma Ação que modifica a Realidade que informa o Indivíduo → ...”. (p. 30). No caso do Ser Humano, que é dotado de vontade e potencial para a Comunicação Social, a interação comum gera um conhecimento comum, a Cultura, que “é o que vai permitir a vida em sociedade.”. (p. 32).

D'Ambrosio elabora, então, uma proposta epistemológica para o entendimento integral do Ciclo do Conhecimento, ao qual é inerente o Ciclo Vital, que não só destaca os conhecimentos gerados pelos grupos de indivíduos para a sua sobrevivência e transcendência, escolhidos por responderem a interesses comuns do grupo, mas também as estruturas de poder nele presentes.  D'Ambrosio (2009, p. 141) afirma que “a escolha é orientada pela ética. Em contraposição, a imposição de uma forma de ação sobre as demais é o ponto de partida para as estruturas de poder”, que expropriam o conhecimento comum e, conforme explica em D'Ambrosio (2011a), “através de mecanismos institucionais impregnados de controle, de mistificação e de filtros, é devolvido ao povo, que em primeira instância é o responsável pela origem desse conhecimento […] para a sobrevivência dos indivíduos e sua servidão ao poder” (p. 54), fazendo com que o conhecimento gerado fique inacessível a quem o gerou e que o sistema escolar e outros “funcionem de acordo com regras de códigos que, em si, constituem novos corpos de conhecimento.” (55). Nesse sentido, concordamos com o autor que o papel da Educação não é servir ao poder e que “o trabalho do educador não é servir a esse sistema de filtros, mas sim estimular cada indivíduo a atingir sua potencialidade criativa e também estimular e facilitar a ação comum (55).

Em sua obra, D'Ambrosio tem enfatizado essas questões que envolvem a relação do Ser Humano com o conhecimento e apresentado um esquema, o Ciclo do Ciclo, ilustrado na Figura 1, extraída de recente obra de Machado e D'Ambrosio (2014, p. 104):

Figura 1 –  Ciclo do conhecimento.

Em nossos estudos de Doutorado, tínhamos a expectativa de difundir adequadamente a concepção epistemológico-cognitiva e teórico-filosófica do Programa Etnomatemática. Enquanto expectativa, consideramos como produto da pesquisa alguns instrumentos que supostamente teriam o potencial para contribuir para essa difusão, bem como sua popularização na Educação em geral. O esquema Ciclo do Conhecimento foi um  dos quatro instrumentos-produto escolhidos, pela simplicidade e criticidade com que contempla a complexidade e dinâmica do ciclo do conhecimento e considera os seus múltiplos e diversos aspectos, dentre os quais os epistemológicos, cognitivos, teóricos, filosóficos, sociais, históricos, culturais e políticos. A figura 1, portanto, busca atender essa expectativa e, em especial, neste artigo, provocar reflexões acerca da qualidade da Educação e do papel de sua gestão no desenvolvimento das estratégias-chave educacionais, que, na concepção etnomatemática, é o próprio currículo.

PROGRAMA ETNOMATEMÁTICA: CONCEPÇÃO DE EDUCAÇÃO E CURRÍCULO

“Transdisciplinaridade é um característica do Programa Etnomatemática”, explica D'Ambrosio (2006, p. 79). O Ciclo do Conhecimento, apresentado na Figura 1, sinaliza uma contestação ao modelo disciplinar que persiste nos sistemas escolares, ao expor a relação complexa e integral do Ser Humano com a realidade e ao destacar a influência do poder na expropriação e institucionalização de conhecimentos comuns, úteis à sociedade, para serem prescritos nos sistemas escolares como conteúdos conceituais obrigatórios e inquestionáveis, nas diversas disciplinas.

Se o conceito já está completamente abstraído, dentro de um procedimento cuja lógica se refere a quem os abstraiu, parece-nos que cabe ao professor, por mais inovador que queira ser, a transmissão desses conceitos e procedimentos, mesmo que eles se mostrem pouco ou nada significativos e úteis aos estudantes, em suas atitudes na sua realidade próxima e no exercício plena de suas cidadanias. D'Ambrosio (2011b, p. 12) entende que o princípio da concepção transdisciplinar é “reconhecer as dimensões sensorial + mística + emocional + intuitiva + racional do conhecimento e a integridade mente + corpo + cosmos, dando suporte a um comportamento subordinado à ética maior de respeito, solidariedade e cooperação”, haja vista, em D'Ambrosio (2005, p. 103), sua defesa à Transdisciplinaridade como recurso de apoio “na recuperação das várias dimensões do Ser Humano” e sua explicação que

A ciência moderna, ao propor “teorias finais”, isto é, explicações que se pretendem definitivas sobre a origem e a evolução das coisas naturais, esbarra numa postura de arrogância, que tem como conseqüência inevitável comportamentos incontestáveis. Como questionar o comportamento de quem está convencido de saber? Ao contrário desta postura, a transdisciplinaridade é um enfoque holístico ao conhecimento, baseado no reconhecimento da impossibilidade de se chegar ao conhecimento total e final e, portanto, permanentemente buscando novas explicações e novo conhecimento e, conseqüentemente, modificando comportamentos. Ela substitui a arrogância mencionada acima, pela humildade da busca incessante, cujas conseqüências são respeito, solidariedade e cooperação. Portanto, deve se apoiar, necessariamente, na recuperação das várias dimensões do ser humano. (p. 103).

Na introdução aos parâmetros curriculares nacionais, não encontramos nenhuma defesa à Transdisciplinaridade, mas o livro coautoral de D'Ambrosio com Weil e Crema, Rumo à nova transdisciplinaridade, lhes serve de referência. Em Brasil (1997a, p. 51), a preocupação que inspira esse enfoque para a Educação parece-nos diluída nas três  categorias que propõe aos conteúdos: “conteúdos conceituais, que envolvem fatos e princípios; conteúdos procedimentais e conteúdos atitudinais, que envolvem a abordagem de valores, normas e atitudes.”. Uma breve garimpagem dessa abordagem, adiante destacada, pode sinalizar a sua intenção transdisciplinar e uma comunhão de ideias com o Programa Etnomatemática.

Brasil (1997a) esclarece que os conteúdos conceituais se referem “à construção ativa das capacidades intelectuais para operar com símbolos, idéias, imagens e representações que permitem organizar a realidade.” (p. 51). Para o autor, há um equívoco na abordagem dos conteúdos procedimentais, pois se ensinam “procedimentos acreditando estar-se ensinando conceitos”, o que o leva a concluir que “a realização de um procedimento adequado passa, então, a ser interpretada como o aprendizado do conceito.”. (p. 52). Para ele, ao serem considerados espontâneos, os conteúdos procedimentais não são tratados como objeto de ensino e o exemplo que traz como mais evidente da abordagem é da área da Educação Matemática:

o fato de uma criança saber resolver contas de adição não necessariamente corresponde à compreensão do conceito de adição. É preciso analisar os conteúdos referentes a procedimentos não do ponto de vista de uma aprendizagem mecânica, mas a partir do propósito fundamental da educação, que é fazer com que os alunos construam instrumentos para analisar, por si mesmos, os resultados que obtêm e os processos que colocam em ação para atingir as metas a que se propõem. (p. 52).

Ainda segundo mesma obra, é necessária uma clara deliberação sobre os ensinamentos dos conteúdos atitudinais, a partir da consideração das atitudes, valores e normas como conteúdos escolares, uma vez que permeiam todo o conhecimento escolar e é a escola um contexto socializador e gerador de atitudes.

Por isso, é imprescindível adotar uma posição crítica em relação aos valores que a escola transmite explícita e implicitamente mediante atitudes cotidianas. A consideração positiva de certos fatos ou personagens históricos em detrimento de outros é um posicionamento de valor, o que contradiz a pretensa neutralidade que caracteriza a apresentação escolar do saber científico. Ensinar e aprender atitudes requer um posicionamento claro e consciente sobre o que e como se ensina na escola. Esse posicionamento só pode ocorrer a partir do estabelecimento das intenções do projeto educativo da escola, para que se possam adequar e selecionar conteúdos básicos, necessários e recorrentes. (BRASIL, 1997a, p. 53).

Sob nosso ponto de vista, essas considerações acerca das abordagens dos conteúdos no currículo da escola brasileira pelos seus parâmetros oficiais apontam um despertar para a Transdisciplinaridade, há quase duas décadas, que ainda não se consegue efetivar, na prática, até os dias atuais. Suspeitamos que, embora o documento-referência tente apresentar uma visão integral dos conteúdos eleitos para serem trabalhados pedagogicamente e contemplar até o aspecto crítico que envolve sua seleção e metodologia, os parâmetros se traem pela especificidade e ênfase que dão às disciplinas, e a gestão da Educação, pressionada também pelos exames nacionais externos com base em medidas de conceitos, não consegue pôr em prática a criticidade para questionar a “pretensa neutralidade que caracteriza a apresentação escolar do saber científico”, sequer ter clareza e consciência sobre o quê e como ensinar, mencionados por Brasil (1997a).

Entendemos que as ideias do Programa Etnomatemática, que só é sugerido no livro específico para a disciplina Matemática (BRASIL, 1997b), se mostram convergentes às dos parâmetros curriculares brasileiros, em Brasil (1997a), no que se refere: às capacidades intelectuais para operar com as ticas (citadas como símbolos, ideias, imagens e representações) que permitem intervir nos diversos etnos; à contestação à aprendizagem mecânica; à construção discente de instrumentos para a autonomia e análise de resultados; à consideração de atitudes no processo pedagógico; à criticidade que é inerente à própria Transdisciplinaridade e que traz como consequência o olhar atento aos objetivos educacionais, conteúdos e métodos. No entanto, considera D'Ambrosio (1993, s.p.) que

Para se levar então o Programa Etnomatemática às suas amplas possibilidades de pesquisa e de ação pedagógica um passo essencial é liberar-se do padrão eurocêntrico e procurar entender, dentro do próprio contexto cultural do indivíduo, seus processos de pensamento e seus modos de explicar, de entender e de se desempenhar na sua realidade.

Na concepção etnomatemática, D'Ambrosio (2012, p. 63) conceitua “educação como uma estratégia da sociedade para facilitar que cada indivíduo atinja o seu potencial e para estimular cada indivíduo a colaborar com outros em ações comuns na busca do bem comum”  e define currículo como “a estratégia chave para a ação educativa”. O Programa Etnomatemática questiona o currículo com base no 'ler, escrever e contar', que ainda é praticado, pois, segundo D'Ambrosio (2005, p. 99), “é, em sua concepção e detalhamento, obsoleto, desinteressante e pouco útil”. Propõe, então, uma organização das estratégias de ensino, como já mencionamos, a partir do trivium Literacia-Materacia-Tecnoracia, com base no entendimento de D'Ambrosio (2011a, p. 50) de que conhecer é saber-fazer e que “as práticas ad hoc para lidar com situações problemáticas surgidas da realidade são o resultado da ação de conhecer.”. Com base nas obras de D'Ambrosio (2005, 2011a, 2013), elaboramos uma síntese da proposta curricular etnomatemática, ilustrada na figura 2, na qual destacamos os instrumentos de currículo, suas principais características, finalidades e funções:

Figura 2 –  Currículo etnomatemático: características, finalidades e funções.

Para compreendermos a figura 2, devemos estar cientes de que, para o Programa Etnomatemática, a Educação deve ter metas maiores, nas quais se destacam o desenvolvimento de potencial e o favorecimento da ação comum, em vias do bem comum e do pleno exercício da cidadania e de que é por não conceber um currículo fragmentado em disciplinas, com base na hegemonia dos saberes acadêmicos sobre os demais, que defende como alternativa funcional a Transdisciplinaridade. Além disso, o seu entendimento de que o conhecimento é vital e decorrente de informações colhidas de uma realidade, que é inevitavelmente modificada a partir de ações de quem as colhe, impõe foco na relação indissociável do indivíduo com sua realidade, tendo em vista as tica de matema nos distintos etnos.

Desse modo, o Programa propõe que as estratégias educacionais – o próprio currículo – reflitam e acompanhem a dinâmica sociocultural, fazendo uso, crítica e inteligentemente, dos seus instrumentos disponíveis e úteis para ser funcional na sociedade e para entender situações novas e ser criativo. De fato, segundo D'Ambrosio (2011a), “embora tendo o indivíduo como ponto de partida, o conhecimento se organiza e toma corpo como um fato social, resultado de interação entre indivíduos.” (p. 76).

Nesse sentido, julgamos que os projetos de trabalho são bem-vindos à proposta etnomatemática, pois, como afirma Hernández (1998, p. 61), tanto podem considerar a intensa produção da sociedade atual, quanto possibilitam “dialogar de uma maneira crítica com todos esses fenômenos”, contribuindo, sob nosso ponto de vista, para tornar o currículo interessante, atual e útil aos que devem dele se beneficiar, como também, conforme afirma Brasil (1997a), para a ocorrência do devido posicionamento sobre o quê e como proceder a Educação escolar.

Sinteticamente, o Programa Etnomatemática sustenta-se em propósitos de uma Educação para a Paz, e os sustenta. Nesses ideais, os objetivos se ampliam e as metas se engrandecem, para além das estratégias de viabilização do acesso a conhecimentos básicos para o seu uso funcional em situações planejadas previamente, prescindindo de uma visão humana integral de Ser Humano - sensível, criativo, emocional, racional, individual, social… - que está em permanente interação com outro Ser Humano, num determinado contexto – diverso e complexo -  no qual suas ações se concretizam como um fato social criativo, útil e significativo ao seu grupo. À gestão da Educação cabe, então, o debruçar sobre esses elementos, fatos, situações e o planejamento de estratégias para ações que, por sua vez, otimizem a concretização de fatos sociais, em vias do bem comum.

PROGRAMA ETNOMATEMÁTICA E CURRÍCULO: QUALIDADE E GESTÃO DA EDUCAÇÃO

Ao longo do texto, apresentamos alguns aspectos epistemológicos, cognitivos, teóricos, filosóficos, sociais, históricos, culturais, políticos e educacionais do corpus conceitual do Programa Etnomatemática. Visávamos à sua caracterização como uma teoria geral do conhecimento, transdisciplinar, ampla, flexível e, como dissemos, com potencial para orientar quaisquer intenções pedagógicas. Em relação a este artigo, especificamente, visávamos também discutir a relação entre currículo, qualidade e gestão da Educação, no sentido de contribuir para o debate teórico e, com Hernández (1998), consideramos a possibilidade dos projetos de trabalho como recurso viável à transgressão e mudança na Educação.

No entanto, havemos de concordar com D'Ambrosio ( 2012) de que “não há teoria e prática desvinculadas” (p. 74), uma vez que pesquisa “é o elo entre teoria e prática.” (p. 84). Nesse sentido, nossa experiência docente na Educação Básica e de formação de seus professores nos impõe a responsabilidade de apontar alguns elementos da prática que, sob nosso entendimento, podem mostrar-se contributivos à finalidade de levar o assunto em pauta ao debate teórico.

Com base no Programa Etnomatemática, podemos considerar como 'boa qualidade da Educação' aquela que é coerente com o conceito de Educação de D'Ambrosio (2012), já apresentado. Em consequência, a gestão dessa Educação deve teoricamente concebê-la para atuar na prática pedagógica. Nessa perspectiva, entendemos por gestão da Educação toda ação político-pedagógica que inspira, motiva, avalia, fundamenta, orienta, investiga e viabiliza as estratégias para as ações educativas que relacionam, interativa e participativamente, todos os segmentos escolares, seja ela no exercício da função de professor, coordenador ou gestor escolar. Desse modo, sob nosso ponto de vista, é necessário que todos os segmentos façam um esforço de sinergia para que as ações educativas representem interesses comuns e, de fato, se concretizem como fatos sociais relevantes a toda a comunidade escolar. Esse entendimento não é novo, pois a base da gestão democrática, preconizada oficialmente para a nossa Educação escolar, é a participação que, como explica Veiga (2010, p. 5),

implica criação e ampliação de canais e espaços públicos para o diálogo, a discussão e o debate a serviço de um projeto político-pedagógico de qualidade que, assentado no pilar da educação emancipatória, considere os determinantes sociais e as possibilidades concretas da escola. A participação é o princípio básico da democracia.

Assim, elaboramos, na figura 3, um esquema que visa à apresentação dos projetos de trabalho como uma estratégia factível às ações educativas etnomatematicamente orientadas.

Figura 3 –  Uma perspectiva etnomatemática de gestão da Educação.

Na figura 3, vemos uma perspectiva etnomatemática de gestão da Educação em bases democráticas. A participação, como princípio democrático, revela-se na amplitude da proposta, que contempla a realidade e suas questões socioculturais relevantes à comunidade escolar. Na concepção etnomatemática, a realidade é o etno, no qual estão disponíveis as informações relativas às formas de construir conhecimentos, isto é, as ticas de matema desse etno específico. Essas ticas de matema representam instrumentos comunicativos, analíticos e materiais – Literacia-Materacia-Tecnoracia – valiosos ao exercício pleno da cidadania e à vida em sociedade, que se renovam continuamente nas inevitáveis ações de todos em seus viveres e conviveres, nesse etno.

A escola, como instituição sociopolítica responsável por promover a Educação, deve lançar mão desses instrumentos, fazendo com que os mesmos se manifestem no contexto escolar, referenciando a práxis pedagógica. A própria dinâmica de renovação constante inviabiliza o conforto da prática da transmissão das ticas de matema, bem como a hegemonia do conhecimento científico em relação aos demais conhecimentos que com ele contracenam naquele etno, como cultura de poder que ainda persiste na escolarização, pois que, como diz D'Ambrosio (2013, p. 19), as “culturas estão em incessante transformação, obedecendo ao que podemos chamar uma dinâmica cultural.”. Por conta disso, o Programa Etnomatemática defende, enfaticamente, uma dinâmica do encontro cultural.

Uma vez consideradas as ticas de matema do amplo etno escolar, a práxis pedagógica passa a refletir a dinâmica sociocultural e as suas questões mais relevantes começam a ser evidenciadas no currículo, norteando-o e trazendo como principal implicação planejamentos que, em consequência, têm foco de intervenção na própria realidade. Esse ciclo pedagógico, similarmente ao Ciclo Vital, sob o nosso ponto de vista, dá ao currículo um sentido e uma utilidade à prática pedagógica, pois, além de partir de uma situação real julgada relevante por uma comunidade participativa, supostamente tem maior potencial para munir educandos e sua comunidade dos instrumentos que lhe garantem a sobrevivência e transcendência, com a consciência dos reflexões que as suas ações, individuais e de grupo, têm na modificação da realidade. Nesse sentido, a criatividade e criticidade tornam-se elementos fundamentais da ação educativa, nas quais entram em jogo, respectivamente, a consciência do ato de criação e  a criticidade na construção de um modelo social que melhor satisfaça a convivência de todos e o bem comum da comunidade em geral.

Os projetos de trabalho, ao partirem de um fato, fenômeno ou situação real, passam a objetivar também uma intervenção real, ampliando os objetivos da Educação e imbuindo-se da diversidade e da complexidade da realidade, tornando-as elementos-chave do currículo. Nessa perspectiva, o currículo ganha uma nova concepção, uma vez que não pode mais ser ditado por conceitos e procedimentos disciplinares, mas pelo desejo de resolver uma situação que, por sua vez, demanda a utilização de conceitos, procedimentos e atitudes em relação a um problema específico. Os conhecimentos escolares, então, perdem o sentido em si mesmos, promovendo reflexões intradisciplinares e diálogos de caráter interdisciplinar, e vão além das especificidades de quaisquer áreas de conhecimento, dando às ações educativas uma função social relevante e caracterizando o currículo em ação como transdisciplinar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No decorrer de nossas reflexões, reunimos argumentos à consideração do Programa Etnomatemática nos debates teóricos sobre qualidade e gestão da Educação em geral, a partir de quatro aspectos: nos aspectos epistemológico-cognitivos do Programa, buscamos os conceitos essenciais ao seu caráter de teoria geral do conhecimento; no seu Ciclo do Conhecimento, evidenciamos os aspectos político-pedagógicos que envolvem a relação entre o(s) indivíduo(s) e sua(s) realidade(s); nos aspectos teórico-filosóficos, encontramos aportes à sua concepção de Educação; nos aspectos sócio-histórico-culturais, destacamos a sua concepção de currículo; e, tendo em vista todos os aspectos mencionados, elaboramos uma análise a partir de um esquema elaborado para mostrar a exequibilidade prática de um projeto pedagógico etnomatematicamente orientado.

Tomando por base nossa experiência acadêmica e de gestão na Educação, em um país como Brasil, rico em diversidade e pobre no que se refere aos resultados oficiais de aprendizagem, estamos certos de que novas teorias de orientação devem ser investigadas e levadas ao debate teórico, como modo de complementarem ideias de Educação preconizadas por grandes pensadores brasileiros, a exemplo dos ideais democráticos de Anísio Teixeira e do sentido de qualidade da Educação defendida por Paulo Freire. O Programa Etnomatemática mostra-se como uma possibilidade a novas reflexões e ações e esse breve texto não passa de uma provocação  nesse sentido.

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