PROFESSORES, ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO DOCENTE E PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO: IMPLICAÇÕES PARA O PLANEJAMENTO ESCOLAR

Resumo: Este estudo analisa as relações entre a organização do trabalho nas escolas e a participação dos professores na elaboração do Projeto Político Pedagógico, compreendido como planejamento escolar. A pesquisa foi realizada em quatro escolas públicas de Educação Básica do município do Rio de Janeiro através de entrevistas a trinta professores. A análise considera as mudanças introduzidas pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação 9394/96 com princípios da gestão democrática e as estratégias de descentralização dos sistemas públicos de ensino. Os resultados da pesquisa indicam que, de modo geral, os professores estão ausentes dos processos de decisão do planejamento das propostas político pedagógica das escolas em que atuam, desarticulando elaboração e execução do planejamento institucional.

Palavras-chave: Professores; Planejamento; Projeto Político Pedagógico;

Este trabalho pretende analisar as relações entre a organização do trabalho docente e as condições para a participação dos professores na elaboração e execução do Projeto Político Pedagógico (PPP), compreendido como o planejamento da escola, a partir das mudanças observadas na educação brasileira especialmente com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação 9394/96.

Os dados aqui apresentados são parte constituinte de uma pesquisa mais ampla realizada nos anos de 2012 e 2013, em escolas do município do Rio de Janeiro, acerca das representações dos professores sobre as dimensões políticas de seu trabalho. A coleta de dados foi realizada com professores de duas unidades de uma escola federal e duas escolas públicas municipais de Educação Básica, de anos iniciais e finais do ensino fundamental. A primeira fase da coleta de dados consistiu na aplicação de questionários aos professores das unidades escolares num total de 117, sendo 83 deles devolvidos e analisados. Foram selecionados para as entrevistas 30 professores, considerando: origem social, escolarização, faixas etárias, trabalho com diferentes disciplinas, diversidade das instituições de formação, carreira no magistério, jornada de trabalho, remuneração, sindicalização ou não sindicalização.

Neste sentido, a maior ou menor participação dos professores nos processos de planejamento da escola – participação no PPP -, é percebida como definidora da maior ou menor democratização dos processos da gestão escolar em suas dimensões político-administrativas e, como elementos fundamentais da gestão pedagógica e da construção de uma educação de qualidade.

A autonomia da escola foi ampliada em relação aos princípios da gestão em função das políticas educacionais implementadas a partir da reforma do Estado brasileiro nos anos 1990. A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 205, inciso VI, determina a “gestão democrática do ensino público, na forma da lei”, e a LDB 9394/96, em seu artigo 14, determina aos sistemas públicos de ensino a definição de suas normas da gestão democrática de acordo com os princípios: “I. participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola; II. participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes”.

A adoção do princípio da gestão democrática é compreendida no contexto brasileiro dos anos 1990 como uma demanda dos movimentos em defesa da escola pública articulados no processo de redemocratização brasileiro, mas também no contexto das reformas educacionais que viam na estratégia da descentralização dos sistemas públicos de ensino e das novas formas de organização e gestão da escola a transferência de responsabilidades e obrigações dos órgãos centrais para os locais e para a própria unidade escolar. Desta maneira, democratizar a educação nesse contexto era também imprimir maior racionalidade à gestão da escola, a partir da descentralização administrativa, financeira e pedagógica. “São proposições que convergem para novos modelos de gestão do ensino público, calcados em formas mais flexíveis, participativas e descentralizadas de administração dos recursos e das responsabilidades” (OLIVEIRA, 2002, p. 129). Essas mudanças afetaram não só a gestão da escola, mas também o próprio trabalho docente. Assim sendo,

Importa que nos debrucemos sobre a educação e sua gestão para conhecê-las como elas são. Isso implica, em primeiro lugar, ultrapassar as aparências para encontrar suas raízes, isto é, detectar ou desvelar as múltiplas determinações (...) que acabam por determinar sua aparência, o jeito como as percebemos (...) somente o conhecimento da gestão como de fato ela é (...) fundamenta decisões que podem alterá-la (WITTMANN, 2000, p.68).

Desta forma compreendemos ser o Projeto Político Pedagógico o instrumento que pode desvelar raízes, crenças e percepções, quando construído de acordo com os princípios que embasam e justificam sua existência.

Projeto Político Pedagógico: O instrumento que possibilita a mudança, a partir do coletivo

Em conversas com os professores sobre a temática do planejamento, percebe-se que este, muitas vezes, é visto com desconfiança, sendo compreendido como uma possibilidade de controle e não como uma atividade de organização da prática. Essa concepção teve seu auge na época da ditadura militar quando se utilizou o planejamento como exercício de controle e fiscalização. Por outro lado, muitas vezes os professores vivem a experiência de assistirem seus planos, suas reflexões e projetos serem engavetados pela equipe gestora, saindo apenas por ocasião de uma visita de supervisão dos órgãos intermediários.

Desta forma, mesmo em tempos hodiernos, esse instrumento muitas vezes é feito de forma burocrática, apenas para o cumprimento de uma exigência legal, ficando completamente descolado das atividades práticas. Quando ele deveria ser o produto de uma reflexão que norteasse o processo pedagógico, contemplando sonhos e utopias.

Em contraposição à ideia tecnicista de planejamento, que burocratiza e fragmenta o trabalho pedagógico, discutiremos aqui uma outra perspectiva de fortalecimento do processo educativo e da organização da escola, o Projeto Político Pedagógico.

Essa ideia surge em nosso país no fim da década de 80 em contraposição à ideia de obrigação burocrática a ser cumprida pelas escolas e pelos professores esvaziada de sentido pedagógico.

Com a Constituição de 1988, vemos fortalecida a ideia de gestão democrática, de pluralismo de ideias e de inclusões, em contraposição à centralização. Assim, segundo muitos estudiosos da área, o PPP surge como um poderoso instrumento de valorização da participação coletiva e da autonomia da escola. Para Eyng o Projeto Político Pedagógico é:

[...] o instrumento que define, mediante planejamento coletivo, os processos da gestão da escola. O projeto pedagógico é, portanto, o veículo do planejamento e a principal ferramenta da gestão. Nesse são definidos, organizados, normatizados e acompanhados os processos de aprendizagem e participação, individual e coletiva, no espaço escolar. (2002, p.26)

Para Gadotti e Romão:

é preciso entender o Projeto Político Pedagógico da escola como um situar‐se no horizonte de possibilidades na caminhada, no cotidiano, imprimindo uma direção que se deriva de respostas a um feixe de indagações tais como: que educação se quer e que tipo de cidadão se deseja, para qual projeto de sociedade? A direção se fará ao se entender e propor uma organização que se funda no entendimento compartilhado dos professores, dos alunos e demais interessados em educação (apud PADILHA, 2007, p.44).

Veiga (1995) destaca a discussão da relativa autonomia da escola e a capacidade de a escola construir uma identidade a partir da construção do Projeto Político Pedagógico.

Isso significa resgatar a escola como espaço público, lugar de debate, do diálogo, fundado na reflexão coletiva. Portanto, é preciso entender que o Projeto Político Pedagógico da escola dará indicações necessárias à organização do trabalho pedagógico, que inclui o trabalho do professor na dinâmica interna da sala de aula. (1995, p.14)

Assim percebemos que para que seja possível a construção do Projeto Político Pedagógico alguns elementos são indispensáveis, destacando-se aqui a participação coletiva e a autonomia como princípios fundamentais para sua consolidação. Para Martins:

O conceito de autonomia tem sido construído, historicamente, no contexto de diferentes características culturais, econômicas e políticas que configuram as sociedades ao longo de seu percurso(...) Autonomia vem do grego e significa autogoverno, governar-se a si próprio. Nesse sentido, uma escola autônoma é aquela que governa a si própria. (2002, p.208)

A autonomia pressupõe, pois, a alteridade, a participação, a liberdade de expressão, o trabalho coletivo na sala de aula, na sala dos professores, na escola e fora dela. A educação enquanto processo de conscientização (desalienação) tem tudo a ver com a própria autonomia e, como esta, se fundamenta no pluralismo político pedagógico, garante a mudança possível no próprio sistema educacional e nos próprios elementos que o integram. (PADILHA, 2007, p. 65‐ 66).

Isto posto, importa pensar em como a participação tem sido vista e viabilizada no momento da construção e execução do PPP. Entendemos que é preciso sim romper com os mecanismos burocráticos e centralizadores presentes na ideia convencional de planejamento, mas além disso, a proposta coletiva que se deseja deve   levar os sujeitos a romperem com o eu em oposição ao nós. Para tanto os projetos das escolas deveriam estar coerentes com as lutas políticas que visam superar a centralização do poder, a fragmentação do trabalho pedagógico e falta de articulação entre o que se planeja e o que se ensina.

[...] é bom enfatizar que, quando falamos em participação da comunidade, estamos preocupados com a participação na tomada de decisões. Isto não elimina, obviamente, a participação na execução; mas também não tem esta como fim, mas sim como meio, quando necessário, para a participação propriamente dita, entendida esta como partilha do poder. Esta distinção é necessária para que não se incorra no erro comum de tomar a participação na execução como um fim em si, quer como sucedâneo da participação nas decisões, quer como maneira de escamotear a ausência desta última no processo (PARO, 1992, p.40).

Já não temos mais álibi para cultuarmos atitudes ingênuas em relação a todo o processo político que envolve a escola e sua intencionalidade. Ou rompemos com a alienação e o descompromisso ou teremos sérias dificuldades para consolidar uma escola democrática.

Nesse sentido, cabe indagar como esses atores têm sido convidados a participar dessa festa, como afirma Padilha, que é a construção do PPP. Que reflexões têm sido oportunizadas para que esses sujeitos percebam a importância de seu trabalho e da sua participação? Entendendo que esse tipo de experiência demanda a sensibilização de suas consciências sobre um novo pensar sobre a realidade e a construção histórica do qual fazem parte.

Em “A Ideologia Alemã”, Marx e Engels, ao examinarem as condições para a produção de uma concepção materialista da história, destacam o que eles denominam os “atos históricos”: produção dos meios para a satisfação das necessidades, a produção de novas necessidades a partir da satisfação das primeiras e dos instrumentos produzidos para isso, e a própria reprodução humana. A produção da vida é considerada uma relação dupla, pois é natural e social, em que os indivíduos estão em cooperação, independente das condições em que se encontram. Mostra-se desde o início,

[...] uma conexão materialista dos homens entre si, conexão que depende das necessidades e do modo de produção e que é tão antiga quanto os próprios homens – uma conexão que assume sempre novas formas e que apresenta, assim, uma “história”, sem que precise existir qualquer absurdo político ou religioso que também mantenha os homens unidos. (MARX; ENGELS, 2007, p. 34)

Os autores destacam que, após esse exame, descobriram que o homem tem também “consciência”, mas que essa não é uma consciência pura, e que “desde o início, portanto, a consciência já é um produto social e continuará sendo enquanto existirem homens” (MARX; ENGELS, 2007, p. 35).

Para Marx, o ser humano é um ser natural e “espiritual”, que pensa, e o trabalho é uma atividade “sensível humana”. É também mecânica, material, mas “pensada”. Toda atividade humana não é um simples fazer ou agir, para Marx, a práxis é a capacidade de aderir profundamente à realidade, portanto é necessariamente revolucionária. Uma atividade que inverte e revoluciona, não se limitando ao trabalho, à produção, mas uma atividade que visa à subversão da realidade que está falsificada.

O trabalho, nesse sentido, torna-se práxis quando permite a reflexão e a elaboração da consciência produzida na realidade vivida. A parcelarização do trabalho e a hierarquização da escola que transformam o trabalho do professor em simples “fazer” sem permitir a reflexão não permitem o “pensar”, descolando os professores de sua realidade e de sua práxis no próprio trabalho.

A organização do trabalho nas escolas pesquisadas baseava-se na divisão entre os professores que atuam em sala de aula e os “técnicos” que atuam na gestão da escola encarregando-se do controle, da supervisão e da orientação do trabalho dos docentes. A escola federal, nesse sentido, apresenta-se mais hierarquizada e com maior grau de divisão do trabalho. No caso das escolas municipais, pelo pouco número de profissionais ligados à gestão nas escolas, essa divisão é menos acentuada; no entanto, exacerba-se em relação à secretaria de educação, que vem implementando mecanismos que separam cada vez mais a concepção do trabalho de sua execução, por meio da implantação de projetos e materiais elaborados no órgão central, processo do qual os professores não participam, mas são obrigados a executar nas unidades escolares, além da implantação das avaliações externas realizadas pela SME, que têm por objetivo o controle do trabalho docente.

Observa-se que as escolas pesquisadas apresentam, contraditoriamente, características da organização do trabalho com vários aspectos relativos à divisão do trabalho e à busca de seu controle. Mas, ao mesmo tempo, todas as escolas revelaram, em algum grau, estratégias dos professores de resistir a este controle, revelando-se de modo especial no controle sobre as decisões acerca das atividades a serem realizadas diretamente em sala de aula.

O Projeto político pedagógico e participação docente: o que dizem os professores

A pesquisa indagou aos professores sobre a participação no processo de formulação do Projeto Político Pedagógico da escola, e como isto afeta as condições e o exercício do trabalho. A gestão democrática é considerada na LDB um dos elementos de valorização do trabalho docente, e nesse sentido determina que os estabelecimentos de ensino elaborem e executem suas propostas pedagógicas, devendo contar com a participação dos docentes, articular-se com as famílias e comunidade, criando processos para sua integração e participação na escola, criando uma cultura voltada para a instalação de uma gestão democrática. Nas escolas municipais pesquisadas, os chamados Conselhos Escola-Comunidade (CEC), que possuem representação de professores e famílias, exercem apenas o papel de unidade executora de despesas. Dentre os entrevistados, apenas uma professora mencionou já ter participado dele, e os outros não sabem de seu funcionamento atual. No caso da escola federal, uma das professoras mencionou a existência de uma associação de pais, mas com a qual os professores não têm nenhum contato, nem há discussão sobre os projetos da escola.

Os professores entrevistados relatam diferentes situações em relação à elaboração e à execução do PPP. Na escola federal, a elaboração do PPP é uma tarefa institucional da Direção Geral, que orienta todos os níveis de ensino e departamentos nos quais se organizam professores e alunos. Segundo informação de vários depoentes, o PPP estava em processo de reformulação, tendo sido sua última versão publicada em 2002, contendo o histórico da instituição, sua caracterização, a análise do contexto social, os fundamentos do projeto, a proposta e estrutura curricular e a avaliação. Os dados referentes às características dos docentes, das famílias, dos alunos e das unidades escolares são levantados pela Diretoria de Desenvolvimento Institucional, por meio de questionários eletrônicos. Estes são respondidos voluntariamente por toda a comunidade escolar e compõem o Plano de Desenvolvimento Institucional a ser utilizado para a elaboração do Projeto Político Pedagógico e pelas unidades escolares para elaborar seus planos de trabalho. Importante registrar que não há articulação entre o PPP e os planos de trabalho. O primeiro foi formulado em 2002 e permanece o mesmo e o segundo são reelaborados anualmente.

Todos os docentes que trabalhavam na escola à época da elaboração do PPP foram chamados a participar de reuniões em pequenos e grandes grupos para a discussão dos temas que o compõe. Entretanto, o depoimento abaixo evidencia que o resultado foi uma construção teórica e ideal e não reflete o processo de trabalho para sua elaboração. A grande maioria não reconhece esta proposta como uma orientação real do trabalho dos professores, que se resume, na visão da maior parte, ao programa das disciplinas, nele contidos, que já existiam anteriormente. Várias disciplinas passavam, no momento da pesquisa, por um processo de reelaboração. O PPP não traz concepções sobre o processo ensino-aprendizagem que sejam conhecidas pelos professores e que possam, de fato, orientar o trabalho das diferentes áreas. Quando os professores se referem ao PPP, tratam-no como sinônimo de “programa de disciplina”, o que parece ser o elemento realmente importante para os professores: o que conhecem, o que os orienta, o que se reelabora e se atualiza no PPP desde a versão de 2001. Nesse sentido, o relato de Matilde (Biologia) é esclarecedor.

Quando se anunciou essa ideia [elaboração do PPP], houve essa tentativa de trazer essas discussões, mas,ao mesmo tempo que havia essa discussão, havia muita desinformação, a gente tinha um corpo de professores que nunca tinha parado para pensar sobre isso, e o medo, o que eles querem com a gente? O que vai ser agora, esse negócio de competência, está me chamando de incompetente? Olha, você não faz ideia. [...] nós tivemos tentativas de reunir grupos grandes, grupos pequenos, enfim, mas a coisa saía tão esquartejada, ela vinha tão cheia das reclamações que eu acredito que muito pouco tenha sido utilizado daquelas produções todas que nós fizemos, porque quando ele apareceu pronto, ele parecia tão bonito, sabe? Tão bonito que ninguém se reconheceu ali. Eu posso falar tranquilamente [...] a gente ralava muito para fazer essas reuniões, para colocar tudo no papel, os eixos de discussão sobre ensino e aprendizagem, sobre não sei o que, sobre não sei o que, e a gente fazia relatórios imensos e mandava, e nada, nada. [...] ele é uma maquiagem, ele é uma produção teórica daquilo que você sabe e estuda e o que é o ideal, melhor, você aceita como ideal, mas [a escola] é muito heterogênea, sabe? Não tem aquela carinha bonita do PPP não, não tem mesmo.

Dos 17 professores entrevistados, apenas dois (12%), ambos dos anos iniciais, apontaram o PPP como um parâmetro para o trabalho das coordenações de área e para os docentes. Os professores contratados, um dos anos iniciais e outro dos anos finais (12%), não o conhecem e se referem apenas ao “programa das disciplinas”.

Para Laísa, professora do 1º ano dos anos iniciais, na escola há seis anos, o processo de sua elaboração é desconhecido e aponta uma contradição entre ele, as práticas vividas na escola e as ambiguidades da noção de competências.

[...] desde de que eu entrei,  se vem discutindo renovar esse projeto político pedagógico e  acrescentar e modificar coisas. Ele tem um direcionamento pra você trabalhar por competência mas também indica alguns conteúdos. Então, eu não sei, minha impressão é que tem uma tentativa de fazer diferente, mas ainda com as práticas que as pessoas estão acostumadas. As pessoas falam: como é que a gente tá trabalhando por competência no PPP se a gente não trabalha por competência na sala de aula? A gente trabalha por conteúdo. (Laísa, 1º. ano, escola federal)

Marcela faz uma importante reflexão acerca da preparação/organização da Mostra Pedagógica ocorrida na escola ao final do ano de 2011. Durante todo o processo e ao observar os trabalhos expostos por ano e série, Marcela reflete sobre a ausência de um projeto pedagógico que oriente o trabalho de toda a unidade por meio de objetivos que sejam comuns e deem coerência ao trabalho das professoras de cada ano, turma e série. A falta do projeto faz recair sobre os docentes a responsabilidade individual pelo fracasso e/ou pelo sucesso dos alunos em seu processo de aprendizagem. Neste sentido, para Marcela a “autonomia” dos professores é só um aspecto perverso da falta de um projeto político pedagógico que dê unidade ao trabalho escolar.

Aí eu até dei o exemplo, assim, da língua, né? Eu falei “poxa”! Se... como é que uma pessoa de fora, um pai, assim, que tá chegando agora no primeiro ano, ele entra numa sala do primeiro ano e fala assim: “pôxa, eles trabalharam com a Chapeuzinho. Ah! eles reescreveram a Chapeuzinho Vermelho”. Aí ele vai entrar nas outras salas, lá no quinto ano e vai ver “poxa! Eles pegaram a estória da Chapeuzinho e transgrediram a estória. Trouxeram e brincaram com a língua e transgrediram, pensaram..” Então, esse é o movimento dessa escola, entendeu? Do começo ao fim. Isso aí é projeto político-pedagógico, é currículo, é identidade. O que você pensa sobre a língua, o que você pensa sobre a matemática, o que você pensa sobre... estudos sociais, assim, sobre a vida, como ele olha o mundo... “ah! eles tiveram uma pequena experiência, aqui, de olhar não sei o quê, e lá olha só como eles transformaram e sistematizaram... Meu filho vai fazer esse percurso, esse caminho, né?” Pra mim, é isso. Sabe? Só que eu acho que não sou eu, professor, na sala de aula, não, que tem que fazer isso (Marcela, 1º ano, escola federal).

E ao comparar a antiga escola privada em que trabalhava com a escola federal questiona as diferenças de classe entre as duas escolas. Nesta reflexão, ela interroga por que a escola pública dirigida para as camadas populares deve ser uma escola com menor qualidade de ensino, o que para ela é vinculado à existência de projetos pedagógicos. Aponta para a necessidade de se elaborar o projeto pedagógico da escola a partir da dimensão política que o trabalho da escola pública deve assumir. Ao mesmo tempo relaciona a falta do projeto à individualização do trabalho dos professores como um aspecto negativo de suas condições de trabalho.

Porque, assim, eu fiz muitas análises sobre isso. Porque eu sei que a Escola [privada] é uma escola de classe média, classe média alta, e, obviamente, que a Feira, que é essa vitrine, né? Ela tá te vendendo, vendendo mesmo. Ela tem um sentido muito maior de comércio, de mercadoria, né? Sabe? É isso. Eu tô vendendo pro meu cliente. Então vai ser bom e bonito. Vai gritar pra ele: como essa escola é boa. Então, a gente tinha que ser completamente cuidadoso. Mas, ao mesmo tempo, era o seguinte, aí é o lado que eu vi que era bom. É... não era só [eu], porque era o currículo que tava ali. Então, assim, o projeto do segundo ano era memória e a memória vai ser... você vai entra lá agora, você vai lá, né? Eu saí em 2006, vai ser independente de mim. E vai ser bonito. E vai ser bacana. Tem outras ‘n’ questões? Tem. Óbvio que tem. Aí, fiz uma assim: será que é uma coisa como se fosse uma educação pra rico e uma educação pra pobre? Que, então, o pouco, o desleixado pode ser pro pobre. Então essa autonomia estava mascarada nesse: eles nem vão perceber. Entendeu? Que é muito cruel. Só que eu falei isso, mais ou menos, tudo que eu tô te falando, eu falei pra coordenadora, pra uma coordenadora. Eu fiz, depois de ter feito toda essa análise, e tal. (Marcela, 1º ano, escola federal)

Linhart (2007) a isto se refere como a difusão de práticas individualizantes que, conjugadas a práticas já existentes e disseminadas de trabalho coletivo, buscam forjar um trabalhador não mais condicionado pelos sentimentos de classe capazes de nutrir o movimento sindical, por exemplo, mas “indivíduos capazes de trabalhar, de refletir, e de se expressar em coletivos [apenas] operacionais” (LINHART, 2007, p. 117). As práticas individualizantes servem, neste sentido, para esvaziar os coletivos tradicionais, reduzindo sua força e incentivando desempenhos individuais a partir dos quais se criam os novos vínculos destituídos de qualquer referência coletiva. Nas escolas públicas, atualmente, exemplos disso podem ser a desmobilização em torno da elaboração e execução de projetos coletivos como o próprio PPP e a bonificação dos professores, como resultado de suas “performances individuais”.

No município, na escola de primeiro segmento, existe um PPP, que foi inclusive consultado para esta pesquisa, mas seu processo de elaboração também não envolveu os professores que apontam sua ineficácia na orientação do trabalho pedagógico da escola. Quando perguntados sobre a existência do documento e a participação em sua elaboração, quatro (67%) dos seis professores disseram não ter participado, e alguns docentes responderam:

Foi a coordenadora, diretora e adjunta. Mas, a gente tá pra fazer um outro projeto, né? Que tão ainda num... Que a [coordenadora pedagógica] ainda não conseguiu por falta... porque ela tem que ficar numa turma, outra turma, então isso tá meio atrasado. [...] E também não tá sendo muito cobrado isso [pela secretaria de educação]. [...] Porque deveria se ter uma estrutura para elaborar este projeto, né? (Margarida, 1º ano, escola municipal).

Não, o PPP não foi lido, não foi, né? Mas, é mencionado, vez por outra, você sente... é uma coisa meio intrínseca no trabalho que é realizado, né? Os professores comentam, né? [...] Não tem muito a ver com o meu trabalho não. Porque o ensino de língua estrangeira, ele passa um pouco ao largo, mas eu tenho que me inserir nele, porque eu tenho que me inserir na realidade dele (Franz, Inglês, escola municipal).

Melissa, ao contrário dos demais professores da mesma escola, afirma que “todo início do ano a gente revê”, com a participação de todos os docentes, nos dez anos em que está na escola. No primeiro conselho de classe o PPP anterior é lido e revisto e “a gente adequa com as necessidades, com as políticas governamentais, com a realidade da escola com a clientela que chegou, entende?”. Segundo a professora, o PPP é a “diretriz” dos professores, mas há uma confusão entre o PPP e os temas nele inseridos para serem desenvolvidos durante o ano como projetos parciais da escola. Em 2012, foi elaborado um projeto de uma mostra de literatura sobre o cinema, o Rio de Janeiro falado no cinema, com culminância no mês de outubro. Vários subprojetos são desenvolvidos ao longo do ano pelos professores com essa temática e, nesse sentido, dizem que o PPP está articulado ao seu trabalho travestido de tema que “orienta” o desenvolvimento deste. Todos afirmam que ele é “reelaborado” a cada ano.

[...] eu sei que eu conheço, mas eu não sei exatamente o que está ali, né? Porque eu vi no primeiro dia do ano e eu sei que tem aquelas coisas meio “pedagogês”, né? Porque existe isso, né? Aquelas coisas de chavões pedagógicos, então aquilo tá ali, agora eu não pego ele lá pra ver se o que eu estou fazendo aquilo ou não, mas pelo que eu me lembro no início do ano, o meu trabalho é mais ou menos em consonância com aquilo que está escrito ali. Mas, tem essa coisa de pedagogês que falo “gente, isso aqui é Pedagogia pura, vamos botar isso na prática” (risos) (Renilda, 1º ano, Escola municipal).

Na escola municipal de anos finais, houve um esforço da coordenadora pedagógica durante todo o ano letivo de 2011 para elaborar o Projeto Político Pedagógico, enfatizando ações que criassem uma identidade coletiva para a escola e desenvolvesse o “protagonismo dos alunos”. Neste sentido, a coordenadora pedagógica (CP) adverte que a escola do “voluntarismo” financiada pelo governo federal e pelo município transformou “a escola de todos em escola de qualquer um” como espaço privado, por meio dos projetos e dos trabalhos voluntários que não exigem pessoas com formação e ao mesmo tempo inviabilizam a construção de um PPP próprio da escola como escola pública. Os projetos desenvolvidos na escola contratados e enviados pela SME não foram discutidos com os docentes, pais e alunos, por isso não são resultado do PPP da escola e o inviabilizam, porque fragmenta o seu trabalho e a própria construção do PPP que, na visão da CP, precisa de tempo para ser construído coletivamente e com solidez.

Junto com a CP, o professor Fabrício também acredita que o autoritarismo da Secretaria Municipal de Educação (SME) inviabiliza a realização do PPP, por melhor que ele seja. Segundo este professor, o PPP pode construir um ambiente escolar mais propício à permanência dos alunos na escola e à aprendizagem. Entretanto, este professor compreende que há certa autonomia de seu trabalho em sala de aula. Dessa forma, o PPP para ele é um instrumento que não afeta diretamente as condições nas quais executa o seu trabalho, pois se assim fosse, o PPP seria uma imposição ou um cerceamento ao trabalho dos professores.

Os professores apresentam em comum a visão de que existe na escola um documento formal denominado PPP, que está em processo de reelaboração e que ele só se articula com o trabalho dos professores a partir da eleição de determinados temas a serem trabalhados. Nenhum deles reconhece no PPP uma orientação que traduza as concepções que sustentam o trabalho docente. Em relação a isso, alguns professores expõem sua descrença no processo:

A gente tá construindo... nunca houve.. [...] Sim, você viu que eu falei, participei e falei da sociabilidade. Então, é um negócio assim, só para falar, entendeu? [...] Nós programamos várias coisas e não aconteceu... Nada!!! (risos) (Alexandra, Ciências, escola municipal).

[...] ele é um negócio jogado aí, [...] mas acho que ele nem existe porque eu não vejo (Mário, Ed. Física, Escola municipal).

Às vezes, chega um tema do projeto, então, aí procura todo mundo trabalhar um tema, ih! Já teve tanta briga, “você vai trabalhar o tema”, mas não é assim, se você me perguntasse algo que é meu, que eu sinto como uma bandeira a defender, de jeito nenhum, não tem mesmo. Ele foi constituído às mil mãos, sem a devida, vamos dizer assim, porque um projeto pra andar ele tem que ser construído pela pessoa que tá..se não ele não vai andar, teria que ter certamente, a participação do aluno, do responsável, não é só do professor, e não basta fazer uma reunião, que não vai tirar nada, tinha que ser uma coisa sistematizada, durante algum tempo, não é assim, “amanhã tem que apresentar o projeto, vamos lá gente que tá aí?”. Isso é só feito a toque de caixa, pra mim é papel pra dizer que tem (Fausto, Matemática, Escola municipal).

Registra-se o fato de que entre todos os professores das escolas municipais, apenas o professor Fausto, de Matemática, apontou a necessidade da participação das famílias e dos alunos na construção do Projeto Político Pedagógico da unidade escolar, junto com os docentes e demais funcionários, compreendida como a comunidade escolar à qual se destina o PPP e a partir do qual a escola deve planejar-se coletivamente.

Diante do exposto pelos professores, pode-se afirmar que tanto nas escolas municipais como na escola federal, o Projeto Político Pedagógico não tem reflexos no trabalho dos professores porque não é resultado de uma elaboração coletiva do corpo docente, de seus alunos e de sua comunidade. No caso da escola municipal de anos iniciais, os professores estiveram ausentes do processo de sua elaboração, e o PPP é referenciado apenas como orientador de subprojetos elaborados ao longo do ano individualmente pelos professores. Entre os professores da escola de anos finais do município, o PPP é visto como um documento formal desarticulado do trabalho que realizam, e as discussões em torno de sua elaboração não são consideradas importantes pelos professores porque consideram que terá pouca ou nenhuma repercussão sobre seu trabalho cotidiano na escola. Na escola federal, da mesma forma, o PPP é visto como algo desarticulado do trabalho dos professores porque a maior parte deles não reconhece esta proposta como uma orientação real de seu trabalho, resumindo-se ao programa das disciplinas nele contidas. Várias disciplinas passavam, no momento da pesquisa, por um processo de reelaboração de seus programas, processo que é mais relevante para os professores do que o próprio PPP, porque estes sim orientam efetivamente o seu trabalho em sala de aula.

REFERÊNCIAS

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