IMPLICAÇÕES DO PROCESSO DE ENSINO APRENDIZAGEM DA EDUCAÇÃO DO CAMPO NA PERSPECTIVA DA QUALIDADE SOCIAL

Resumo: O tema proposto para este artigo é a educação do campo na perspectiva da qualidade social. Trata-se de um estudo bibliográfico que apresenta como objetivo geral analisar as implicações do processo de ensino aprendizagem da Educação do Campo tendo em vista a qualidade social. Parte da tese que a qualidade social é a mola propulsora da Educação do Campo. Dessa forma, devido à complexidade de dialogar com o tema na sua totalidade, elegemos como organização didática iniciar pela discussão da Educação do Campo e na sequência, tratar das implicações da qualidade social no processo de ensino aprendizagem a fim de avançarmos na inter-relação entre eles, tendo em vista o desejo de expor a tese anunciada.

Palavras-chave: Educação do Campo; Qualidade Social; Ensino aprendizagem.

A EDUCAÇÃO DO CAMPO NO BRASIL: ORIGEM, PROPOSTAS E PROBLEMATIZAÇÕES.

A educação do campo é uma proposta relativamente recente no Brasil. Podemos apontar os sinais do seu surgimento nos debates dos movimentos sociais do campo no Brasil, desde a década de 1980. No entanto, o seu surgimento explícito pode ser indicado na “I Conferencia Nacional por uma Educação do Campo”, realizada em Luzitana, Goiás, em 1998.

É a partir do final dos anos de 1990, que camponeses e pessoas ligadas aos movimentos sociais se reuniram para discutir, propor e reivindicar do poder público, uma política de educação para os povos que vivem no campo. Essa organização, reunião começa a debater a necessidade dos movimentos sociais do campo ir além da disputa pela terra, pautando também a questão da educação com qualidade social, visando promover o desenvolvimento integral desses povos, superando a educação para o meio rural, vinculada ao modelo de desenvolvimento urbano-industrial capitalista e a estrutura agrária que usa a terra apenas como instrumento de exploração. Segundo Molina (2004, p. 19).

[...] o movimento inicial da Educação do Campo foi o de uma articulação política de organizações e entidades para denunciar a luta por políticas públicas de educação no e do campo, e para a mobilização popular em torno de outro projeto de desenvolvimento.

Historicamente, as lutas dos movimentos sociais ligados a terra, eram essencialmente pelo acesso a terra. Mas, com o seu amadurecimento e desenvolvimento da compreensão política, essas entidades começaram a debater e propor uma educação adequada aos anseios dos sujeitos da terra, com bases históricas, filosóficas, políticas e pedagógicas que se orientam por uma visão crítica da sociedade capitalista democrática e de diálogo com a educação popular de Freire e com a pedagogia do movimento de Caldart (2000). Assim, pensar a educação do campo consiste em estudar e refletir sobre as questões colocadas pelos movimentos sociais do campo e seus sujeitos, como forma de contribuir na construção da emancipação desses povos.

Dessa forma, podemos afirmar que a Educação do Campo se caracteriza pela afirmação da qualidade social da educação. Segundo Molina e Freitas (2011), nos últimos dezessete anos, os movimentos sociais e sindicais rurais organizaram-se e desencadearam um processo nacional de luta pela garantia de seus direitos, articulando as exigências do direito à terra com as lutas pelo direito à educação de qualidade. Esse processo nacionalmente se reconhece como Movimento de Educação do Campo.

Embora a Constituição de 1988 não cite diretamente a educação do/no campo, o artigo 206 prescreve que deve haver “[...] igualdade de condições para o acesso e permanência na escola” e que a “educação, é direito de todos e dever do Estado e da família” (artigo 205). Apesar da prescrição, entendemos que nunca houve uma igualdade de acesso à escola, com um diferencial às escolas no campo, vistos as dificuldades e carências que as mesmas sofreram durante a história e continuam sofrendo com os governos autodenominados “democráticos”.

Leituras sobre a temática nos indicam que os avanços mais significativos foram e continuam sendo conquistados após a promulgação da Constituição em questão, que abriu caminhos à busca de direitos sociais que historicamente tinham sido renegados. Com isto, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), lei nº9394/96, trouxe “avanços” e proporcionou conquistas voltadas às políticas educacionais para o campo, mesmo que nas entrelinhas da LDB estejam presentes os interesses neoliberais. Santana (2006), discutindo tais interesses na LDB, diz que “não é possível negar o neoliberalismo presente no cotidiano escolar” e acrescenta, dizendo que devido a isso “ha uma subordinação da educação aos valores de mercado [...]”.

Por outro lado, o artigo 28 da LDB aponta especificamente para a escola do campo. O artigo prescreve que,

Na oferta de educação básica para a população rural, os sistemas de ensino promoverão as adaptações necessárias à sua adequação, às peculiaridades da vida rural e de cada região, especialmente:
I - conteúdos curriculares e metodologias apropriadas às reais necessidades e interesses dos alunos da zona rural;
II - organização escolar própria, incluindo adequação do calendário escolar às fases do ciclo agrícola e às condições climáticas;
III - adequação à natureza do trabalho na zona rural (LDB, 1996).

Apesar de a LDB mencionar a oferta da educação básica para a população rural, não apresenta a mesma compreensão que os movimentos sociais e as academias científicas têm em relação à educação do e no campo. Enquanto que a LDB ainda apresenta uma concepção de educação como lapidação de mão de obra visando o mercado de trabalho, os movimentos sociais e as academias veem a educação do campo como uma proposta crítica ao modelo hegemônico de educação, preocupado mais em preparar mãos inteligentes. Enquanto que a educação do campo aponta para uma mudança social e a formação para a cidadania.

A LDB também se cala quanto à continuidade dos estudos dos que se formam no ensino médio nas instituições de ensino existentes no campo. Enquanto as pesquisas acadêmicas indicam que milhares dos que se formam no ensino médio nas escolas do campo, interrompem os estudos ao concluírem essa etapa do ensino, sendo prejudicados pela ausência de políticas públicas de incentivo ao ensino superior.

Por outro lado, a LDB proporcionou alguns ganhos. Foram abertos precedentes legais, jurídicos e políticos para a possibilidade da implantação de uma educação que respeitasse a identidade do homem e da mulher do campo. Até a presente lei, o direito a uma educação de qualidade voltada às escolas do campo, havia sido negligenciada pelos governos anteriores. Ainda continuam as negligências, mas os embates organizativos e acadêmicos, com centenas de produções científicas, têm contribuído com as discussões políticas e abertura de diálogos junto aos setores burocráticos do Estado.

Estudos indicam que a educação, enquanto ensino rural, esteve historicamente presente em parte considerável dos discursos dos governantes, mas na prática, não se respeitou o homem do campo como prioridade em seus currículos escolares e direito à educação. Foram e continuam sendo, na grande maioria, discursos de cooptação dos movimentos sociais.

Miguel Arroyo, em palestra proferida em Luziânia/GO, por ocasião da Conferência Nacional por uma Educação do Campo, em julho de 1998, fez os seguintes questionamentos:

[...] como a escola vai trabalhar a memória, explorar a memória coletiva, recuperar o que há de mais identitário na memória coletiva? Como a escola vai trabalhar a identidade do homem e da mulher do campo? Ela vai reproduzir os estereótipos da cidade sobre a mulher e o homem rural? Aquela visão de jeca, aquela visão que o livro didático e as escolas urbanas reproduzem quando celebram as festas juninas? É esta a visão? Ou a escola vai recuperar uma visão positiva, digna, realista, dar outra imagem do campo? (ARROYO, 2011, p. 16).

As interrogações nos fazem observar os inúmeros problemas que precisam ser superados para que a educação do/no campo seja compreendida e trabalhada de acordo com as realidades particulares de cada comunidade. A conquista do direito à educação no Movimento, de acordo com Caldart (2000, p. 145), ocorreu como resultado de muita luta. Os primeiros “[...] a se mobilizar foram as mães e professores, depois os pais e algumas lideranças do movimento”.  Atualmente, o movimento pela educação do campo foi engrossado com a participação de universidades e por setores burocráticos do Estado.

Com base na categoria da totalidade em Thompson“Essa totalidade não é uma verdade acabada (ou teoria); mas também não é um modelo fictício, é um conhecimento em desenvolvimento, muito embora provisório e aproximado com muitos silêncios e impurezas”., podemos afirmar que a educação do campo ainda é um projeto a ser construído, efetivado. Sem, no entanto, deixar de destacar os muitos ganhos e avanços, principalmente no que se refere à legislação. O Movimento da Educação do Campo acumulou, a partir das suas diversas lutas, um conjunto importante de instrumentos legais que reconhecem, legitimam e mobilizam as condições necessárias para que a universalidade do direito à educação de qualidade se exerça, respeitando as especificidades dos sujeitos do campo.  Entre essa podemos destacar as seguintes diretrizes operacionais para educação básica das escolas do campo:

Atualmente, o grande desafio da educação do campo é promover a educação do campo com qualidade social, onde a escola do campo promova o desenvolvimento integral da sua comunidade, visando sua emancipação econômica, social, política e cultural, na construção de um novo projeto de sociedadeCf. Borges, 2013, p. 114. Projeto esse que negue e supere as dicotomias urbano/rural, onde o rural, com tudo o que o caracteriza, sempre aparece como se estivesse marcado com o sinal de menos, negativo, a ser abandonado quando for possível assumir a vida urbana. A educação do campo deve afirmar o campo como lugar de boa vida, de realização dos sonhos e projeto dos homens, mulheres e crianças que ali vivem na sua integralidadeCf. Costa, 2013, p. 119.Mas para isso devem-se repensar também as relações de ensino e aprendizagem, superando a forma tradicional, onde se desconhece ou se resiste fortemente a ideia do educando como detentor de saber e poder. Ignora-se assim o complexo processo pelo qual os componentes da cultura se incorporam na personalidade viva de cada ser humano e o necessário envolvimento do educando como sujeito nesse processo. Para isso é fundamental dialogar com as teorias que estudam a maneira como se desenvolvem os conceitos científicos na mente dos educando, principalmente Vygotsky, ao criticar a escola tradicional devido a sua inconsistência, apontando para sua superação na perspectiva histórico social.

A QUALIDADE SOCIAL DA/NA EDUCAÇÃO DO CAMPO

A educação do campo não tem uma identidade pronta. Ela está em construção, que assume sua particularidade, que é de classe, sem deixar de considerar a formação humana nas suas várias dimensõesCf. Costa, 2012, p. 119.. No entanto, podemos dizer que ela se organização enquanto crítica à educação tradicional, de mãos dadas com a educação popular, comprometida com a construção efetiva das identidades históricas, sociais e políticas das suas comunidades. Pois, historicamente a educação brasileira tem sido privilégio para a formação das elites, enquanto que as classes populares estão condenadas ao conformismo e a alienação por serem a massa de classe trabalhadora do sistema. Segundo Freire (1992, p. 22),

[...] os grupos da elite, agarrados aos privilégios, não se contentam com a ideia, que eles próprios nunca levaram a sério, de que a educação é a alavanca do progresso. Em realidade se comportam como se por esta mesma razão os frutos do progresso devessem ficar para os ‘cultos’.

Nesse contexto, que ainda é o da nossa realidade, a educação do campo, fruto das lutas sociais dos movimentos do campo, significa um esforço conjunto por uma educação de qualidade social para as escolas do campo. Não uma educação para o campo e nem só no campo, mas do campo. Quer dizer, em analogia com a pedagogia do oprimido de Freire, uma educação forjada pelos sujeitos do campo, em luta por suas reivindicações. Segundo Molina (2004, p19), “[...] o movimento inicial da educação do campo (...) tem sido um movimento de reflexão pedagógica das experiências de resistência camponesa, constituindo a expressão, e aos poucos, o conceito de educação do campo”. Nesse contexto, torna-se também necessário repensar as ralações de ensino aprendizado, superando a forma abstrata de entender os indivíduos. Pois, para compreendê-los, devemos primeiro entender as relações sociais nas e pelas quais ele se desenvolve, seguindo as trilhas de Vygotsky.

Segundo Paro (2010), “para uma compreensão mais ampla e profunda da educação é preciso, preliminarmente, considerar os usos comuns do termo com vistas a diferenciá-los do significado mais rigoroso que pretendemos lhe dar”. Na nossa linguagem comum do dia a dia é normal associar educação a ensino, tanto para identifica-los quanto para diferenciá-los. Muitas vezes se diferencia a educação, atribuindo-lhe a tarefa de formar condutas moralmente aceitas, enquanto se atribui ao ensino o dever de transmitir conhecimentos e informações, contidos em disciplinas teóricas ou nas ciências de um modo geral, considerando que são uteis para a vida e principalmente para a inserção no mercado de trabalho. “Em conversa com pais de alunos, e mesmo com professores, costuma-se ouvir que a educação se dá em casa e que na escola é o lugar da instrução” (Paro, 2010, p. 20). No entanto, esses termos também são empregados como sinônimos, quando se diz “educação básica” ou “ensino básico”, para referir-se a questões ligadas a esse nível de estudo.

A escola identificada como do senso comum por Paro (2010), também é assim caracterizada por Vygotsky (2001, p. 245):

Uma escola de pensamento acredita que os conhecimentos científicos não tem nenhuma história interna, isto é, não passam por nenhum processo de desenvolvimento, sendo absorvidos já prontos mediante um processo de compreensão e assimilação; esses conceitos chegam à criança em forma pronta ou ela os toma de empréstimo ao campo do conhecimento dos adultos, e o desenvolvimento dos conceitos científicos deve esgotar-se essencialmente no ensino do conhecimento científico à criança e na assimilação dos conceitos pela criança.

No entanto, segundo os dois autores, o mais significativo não é o termo empregado, mas a forma não científica como se concebe a maneira pela qual a educação se realiza. Segundo Vigotski (2001, 246), “a insuficiência dessa concepção não resiste a um exame mais aprofundado tanto teoricamente quanto em termos de suas aplicações práticas”. Mesmo assim, a grande maioria das pessoas, incluindo os profissionais da educação, acredita que educação é a simples passagem de informação de quem “sabe” para quem “não sabe”, o que Paulo Freire, identifica como educação bancáriaCf. Freire, 1983, p. 64.. Nessa concepção, o que mais interessa é o conteúdo a ser transmitido, abstraindo da sua forma, método ou dimensão ideológica, desconsiderando os contextos e os sujeitos envolvidos no processo de ensino e aprendizagem.

O papel do educador, de quem se espera que detenha o conhecimento, é o de apresentar ou de expor determinado conteúdo ao aluno que, por sua vez, tem como obrigação esforçar-se por compreender e reter tal conteúdo (Paro, 2010, p. 21).

Nessa concepção, as opções didáticas não são determinadas pelas características dos contextos, ou dos sujeitos envolvidos no processo educativo, mas, quando muito, pelo poder explicativo do conteúdo. Entende-se que o bom educador é um bom explicador de conteúdos. “[...] o educador aparece como seu indiscutível agente, como o seu real sujeito, cuja tarefa indeclinável é ‘encher’ os educandos dos conteúdos de sua narração” (Freire, 1983, p. 65).

Para Vygotsky é totalmente inconsistente a tese tradicional de desenvolvimento dos conceitos científicos. Para ele o processo de desenvolvimento dos conceitos ou significado das palavras requer o desenvolvimento de toda uma série de funções. Por isso, para ele, do ponto de vista psicológico, não há dúvida quanto a inconsistência teórica científica da concepção que compreende que os conceitos são apreendidos pela criança de forma pronta no processo de aprendizagem escolar e assimilados da mesma maneira como se assimila uma habilidade intelectual qualquerCf. Vygotsky, 2001, p. 247..

Em oposição à concepção tradicional, bancária de educação, propõe-se uma educação científica (Paro, 2010), Vygotsky (2001) e crítica (Freire, 2010). Nesse sentido, podemos dizer que a educação consiste na apropriação da cultura, entendida de forma ampla, envolvendo valores, crenças, ciência, arte, tecnologia, filosofia, direito costumes e tradições culturais. Esta concepção mais crítica de educação não busca simplesmente preparar os estudantes para fazerem testes em vestibulares e concursos, para ingressar no mercado, mas visa formar a pessoa na sua integralidade. Nessa forma mais rigorosa e crítica de educação é fundamental perguntar sobre a nossa concepção de ser humano ou pessoa humana. Para Paro (2010, p. 24), “o que capacita o homem a tornar-se histórico é, antes e acima de tudo, sua condição de sujeito. É como sujeito que o home se diferencia do restante da natureza. Ele é o único ser para quem o mundo não é indiferente”. O ser humano é independente do mundo natural e, desde essa transcendência, se pronuncia sobre o mundo criando juízos de valor, revelando o caráter ético do ser humano.

Para Fiori, com a palavra o homem se faz homem. Ao dizer a sua palavra, pois, o homem assume conscientemente sua essencial condição humana. Tudo foi resumido por uma mulher simples do povo, num círculo de cultura, diante de uma situação representada em quadro: “Gosto de discutir sobre isto porque vivo assim. Enquanto vivo, porém não vejo. Agora sim, observo como vivo” (Fiori, 2014, p. 72).

Podemos compreender assim que o ser humano se constitui humano, se humaniza em sociedade. O ser humano faz historia, ao produzir cultura. Ele a produz como sujeito, como detentor de vontade, como autor.  Nesse sentido, a educação deve contribuir no processo de humanização à medida que contribui na apropriação da cultura. “É pela apropriação dos elementos culturais, que passam a constituir sua personalidade viva, que o homem se faz humano-histórico” (Paro, 2010, p. 25). Segundo esse conceito crítico, a educação deve se centrar no ser humano na sua integralidade e por isso seu conteúdo deve ser a própria cultura humana em sua inteirezaÉ fundamental percebermos que essa concepção de ser humano é próxima da concepção de Vygotsky, que entende o seu humano como socialmente determinado (Cf. Vygotsky, 2001, p 249).

Dessa concepção de ser humano e de educação crítica decorre também repensar a relação ensino e aprendizagem. Pois, se o fim da educação é o ser humano como sujeito, a maneira e os métodos precisam ser coerentes com esse fim. Por isso o educando precisa envolver-se nas atividades como sujeito, como alguém que aprende por que quer. Para Paro (2010, p. 30), “[...] o que há a fazer é buscar formas de levar o aluno a querer aprender. Nesse sentido, é preciso que se leve em conta as condições em que ele se faz sujeito”. Também segundo Fiori (2014, p.71), “O método Paulo Freire não ensina a repetir palavras (...), coloca o alfabetizando em condições de poder re-existenciar criticamente as palavras de seu mundo, para, na oportunidade devida, saber e poder dizer a sua palavra”.

Essa concepção de ensino aprendizado, que compreende a educação como processo em construção, assumindo a sua particularidade de classe, sem deixar de buscar a formação humana na sua integralidade é o que também caracteriza a educação do campo. E assim, constrói no campo a escola necessária “[...] que orienta a vida das pessoas e inclui também as ferramentas culturais de uma leitura mais precisa da realidade em que vive” (Caldart, 2002, p. 41).

A educação tem como primeira função social contribuir no processo de humanização das pessoas, da preparação para a vida em sociedade, de formação para a alegria de viver, de ser, de sentir e de conviver em seu contextoCf. Costa, 2013, p. 119., construindo a esperança de um presente e futuro melhor para si e as gerações futuras. Essa educação deve ter compromisso com o desenvolvimento econômico, social, político, cultural e até ecológico das suas comunidades do campo.

Segundo Fiori (2014, p. 105), “A educação é esforço permanente do homem por constituir-se e reconstituir-se, buscando a forma histórica na qual possa reencontrar-se consigo mesmo, em plenitude de vida humana, que é substancialmente comunhão social”.  Ou quer dizer, educação sempre já está centrada no ser humano, buscando a sua forma histórico social plena, que em nosso contexto se chama liberdade e autonomia. No entanto, a nossa sociedade contemporânea capitalista e democrática é marcada por contradições radicais, constituindo propostas educacionais e significando os conceitos de forma antagônica. No contexto atual, a educação de qualidade tem se mostrado cada vez mais um conceito polissêmico e muitas vezes contraditório.

A educação, compreendida segundo a ótica dominante, tem se mostrado cada vez mais como reprodução social e, para isso, ela consiste em habilitar técnica, social e ideologicamente os diversos grupos de trabalhadores, para servir ao mercado de trabalho e não ao ser humano. Segundo Frigotto (1999, p. 26), nesse caso, “trata-se de subordinar a função social da educação de forma controlada para responder às demandas do capital”.

Podemos dizer que há ao menos duas perspectivas diferentes de pensarmos a educação: uma que compreende que a nossa sociedade capitalista é o melhor dos mundos possíveis, cabendo à educação preparar as pessoas para se adequarem ao já instituído ou então outra que compreende que a educação deve centrar-se no ser humano, compreendido de forma histórico social, com direito a uma vida feliz e à esperança de um bom futuro para si e as futuras gerações. A primeira perspectiva, por entender que a sociedade capitalista é o melhor mundo possível, compreende não ser necessária a formação integral, onde os sujeitos da educação assumem a responsabilidade pelo seu fazer. Pois, a sociedade garante o melhor possível para cada um. De acordo com a segunda perspectiva, a educação deve contribuir para a formação de sujeitos críticos e capazes de autonomia, na luta política e social pelos direitos de sua classe e da humanidade como um todoCf. Freire, 1983, p. 36.

Segundo Frigotto (1999), a escola é uma instituição social que, mediante sua prática no campo do conhecimento, dos valores, atitudes e, mesmo por sua desqualificação, articula determinados interesses e desarticula outros. Nessa contradição existente no seu interior, está a possibilidade da mudança, haja vista as lutas que aí são travadas. Pensar a função social da escola implica repensar o seu próprio papel, sua organização e os atores que a compõem.

Portanto, no contexto da sociedade capitalista, torna-se necessário optar entre essas duas concepções de educação, onde a pretensa neutralidade sempre já significa a opção a favor da posição dominante, que entende a educação como meio de adequação das pessoas as exigências do mercado. Por isso, a educação do campo assume posição clara a favor dos seus sujeitos, colocando-se de forma crítica em relação à sociedade capitalista, compreendendo que, ou a educação contribui para a emancipação das suas comunidades e sujeitos sociais ou não é educaçãoCf. Fiori, 2014, p. 106.. Por isso, a educação do campo não pode assumir um conceito abstrato, genérico de qualidade da educação, mas deve trabalhar com a educação enquanto qualidade social, quer dizer que a qualidade da educação depende da sua capacidade ou não de contribuir na vida econômica, política, cultural e social dos seus sujeitos.

Com o conceito de qualidade social da educação estamos indicando uma forma particular de educação. Pois, segundo Decreto 7.352 de 4/11/2010,

a população do campo são: os agricultores familiares, os extrativistas, os pescadores artesanais, os ribeirinhos, os assentados e acampados da reforma agrária, os trabalhadores assalariados rurais, os quilombolas, os caiçaras, os povos da floresta, os caboclos e outros que produzem sua condição material de existência a partir do trabalho no meio rural.

As populações do campo são sujeitos em processo de exclusão social. Por isso, a educação do campo deve resgatar suas histórias, identidades e modos de vidas, para a partir dessas realidades, acompanhar e fortalecer as lutas pelos seus direitos, na construção e reconstrução das suas identidades étnicas, sociais e culturais, de forma afirmativa. Por isso, o projeto de educação a ser desenvolvido nas nossas escolas do campo tem que estar pautado na realidade, visando a sua transformação, pois se compreende que a realidade não é algo pronto e acabado. No entanto, não se trata de atribuir à escola nenhuma função salvacionista, mas reconhecer seu incontestável papel social no desenvolvimento de processos educativos, na sistematização e socialização da cultura historicamente produzida pelos homens.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Queremos ainda destacar que a qualidade social da educação do campo ainda implica no seu compromisso em contribuir nos resgates e reconstruções das identidades desses povos, nas suas diferentes características. É uma educação que deve enfrentar o desafio da alteridade, pois essas populações são os outros, os excluídos dos processos convencionais da educação, da sociedade instituída. Nesse sentido, a possibilidade de a educação alcançar uma qualidade social passa necessariamente pela sua capacidade de diálogo, pois ele é uma exigência existencialCf. Freire, 1983, p. 93. . É no diálogo dos sujeitos da educação do campo, sobre seu mundo, que se gesta a educação do campo. Só assim, essa educação pode contribuir na formação para a cidadania, a autonomia, a emancipação, para uma vida feliz.

REFERÊNCIAS

ARROYO, Miguel Gonzalez e FERNANDES, Bernardo Mançano. A educação básica e o movimento social do campo por uma educação básica do campo. Brasília: MST - Coordenação da Articulação Nacional Por uma Educação Básica do Campo, 2011. Disponível em: http://educampoparaense.eform.net.br/site/media/biblioteca/pdf/Colecao%20Vol.2.pdf. Acesso em: 10 mar. 2011.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituiçao.htm . Acesso em: 20 dez. 2009.

______. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/l9394.htm . Acesso em: 20 dez. 2009

______. Decreto nº 4.887/2003. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/l9394.htm

______. Decreto nº 7.352 de 4  de novembro de 2010. Dispõe sobre a política nacional de educação do campo e sobre o programa nacional de educação na reforma agrária. Diário oficial da união. Brasíla, 05 de novembro de 2010. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/decreto/d7352.htm

BORGES, Heloísa da Silva. Educação do campo como processo de luta por uma sociedade justa. IN: GHEDIN, Evandro (Org.). Educação do Campo: Epistemologia e práticas. 1ª ed. São Paulo: Cortez, 2012.

CALDART, Roseli Salete. Pedagogia da Terra: formação de identidade e identidade em formação. Cadernos do Iterra. Pedagogia da Terra. Veranópolis, ano 2, n.6, dez.2002.

______. Pedagogia do Movimento Sem-Terra: escola é mais do que escola. Petrópolis: Vozes, 2000.

COSTA, Lucinete Gadelha da. A Educação do campo em uma perspectiva da educação popular. IN:

GHEDIN, Evandro (Org.). Educação do Campo: Epistemologia e práticas. 1ª ed. São Paulo: Cortez, 2012.

FIORE, Ernani Maria. Educação e Política. 2. ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2014.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 14. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.

______. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz w Terra, 1992.

FRIGOTTO, G. A produtividade da escola improdutiva. 5.ed. São Paulo: Cortez, 1999.

MOLINA, Mônica. e FREITAS, H. C. de Abreu (Org.).  Em Aberto. Brasília: v. 24, nº 85, p. 1-177, abril de 2011.

PARO, Vitor. Educação como exercício do poder: crítica ao senso comum em educação. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2010.

THOMPSON, Edward Palmer. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

VYGOTSKY, Lev Semenovich. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2001.