AUTONOMIA CURRICULAR NO CONTEXTO DE REFORMAS EDUCACIONAIS GLOBAIS LOCAIS
Resumo: O presente texto objetiva analisar o panorama histórico dos discursos da descentralização e autonomia no contexto de reformas na política educacional brasileira, sobretudo a partir da década de 1990. Abordar os textos e contextos globais sobre a autonomia, a partir da proposição curricular docente, se faz a partir do reconhecimento de que as práticas locais são (re)textualizadas também por configurações globais. Avaliar a construção de tais políticas pode ajudar as instituições e professores a refletirem sobre a significação da autonomia na formulação curricular local, por meio do Projeto político-pedagógico.
Palavras chave: Avaliação; política; autonomia.
INTRODUÇÃO
O discurso da autonomia curricular, especialmente no Brasil, é um terreno movediço e permeado de ambiguidades. Temos um currículo prescrito como modelo e referência para as escolas e um sistema de avaliação nacional que acompanha o seu desenvolvimento, mas infelizmente com o mesmo modelo de países bem sucedidos ainda vivenciamos uma busca incessante em reformulá-lo. A insistência em reformular documento, sem uma análise e participação de quem está “na ponta” tem sido um dos fatores que prefiguram um currículo esfacelado e distante da perspectiva de um currículo projeto.
Alguns discursos docentes acerca da autonomia curricular no momento de formulação do projeto político-pedagógico ajudarão a compreender algumas mudanças e permanências na estruturação do currículo escolar. São enunciações políticas extraídas de professores de escolas públicas que vivenciaram a onda reformista em prol de uma maior descentralização e autonomia. As vozes serão apresentadas ao contextualizarmos modelos e gerências políticas da agenda educacional brasileira, como espécies de conversação (PINAR 2004), no qual convergem diversas enunciações presentes na comunicação humana.
Abordar os textos e contextos globais sobre a autonomia a partir da proposição curricular docente se faz a partir do reconhecimento de que as práticas locais são (re)textualizadas a partir também de configurações globais. Considerar os desdobramentos do global nas práticas educacionais, significa assumir uma postura que considera e reconhece a complexidade das formas que direcionam o processo de conhecimento na configuração global. É importante destacar no entanto, que não tenho a intenção de apenas acrescentar a globalização sem referenciar o espacial e seus desdobramentos políticos relacionais. Não fazendo isso, cairia no que Tello (2013) chamou de “fetichizar o espacial” que é o risco que corremos se não enxergarmos as estratégias que os atores estão utilizando também para construir projetos adicionais, com outros formatos e no contexto de relações profundamente desiguais.
O Estado Moderno, em sua formação, assumiu um papel centralizador em termos de administração e planejamento das políticas públicas. Tal modelo, em seu processo histórico, foi sendo criticado quanto à eficiência e à eficácia. A defesa de sua reorganização coloca no centro dos debates a ideia de descentralização administrativa política e financeira, no intuito de garantir a qualidade de serviços.
Nos anos 90, no contexto das relações internacionais desenvolvidas após o Consenso de Washington em 1989 formou-se a ideia de que, o Estado, principalmente nos países periféricos, deveria focar sua atuação nas relações exteriores e na regulação financeira negociadas logicamente, de forma direta, com organismos internacionais. De acordo com Martins (2006, p. 29):
A reforma nas suas estruturas e aparato de funcionamento consolidou-se nos anos 90, por meio de um processo de desregulamentação na economia, da privatização das empresas produtivas estatais, da abertura de mercados, da reforma dos sistemas de previdência social, saúde e educação, descentralizando-se seus serviços, sob a justificativa de otimizar seus recursos.
A força discursiva mantém-se em torno da descentralização dos sistemas de ensino, utilizando parâmetros de eficiência, eficácia, excelência e competitividade, oriundos da racionalidade econômica. A ênfase no planejamento e na avaliação para controle de resultados da escola, em toda sua multiplicidade, justificaria tal empreendimento. Alguns discursos docentes enunciam a concreticidade de tal fato em simples visita a secretaria de educação de seu município:
Professora1 - Na secretaria tem muita coisa mudando... agora a gente não vai ter mais coordenadora de creche, teremos uma gerente(risos). Na verdade não tem mais coordenações tudo agora lá é gerência. Gerência do Ensino Fundamental, Gerência da educação Infantil...
Esse processo de exaltação à descentralização está significado nas políticas oficiais como maior concessão de autonomia ao espaço escolar. Sobre a escola recai a grande responsabilidade de reconstruir um novo percurso para o ensino com vistas a atender às novas demandas sociais. Fairclough (2001, p.100), analista crítico do discurso, acredita as formas discursivas e as estruturas sociais se influenciam mutuamente, e por indicar que “os textos contêm traços e pistas de rotinas sociais complexas”. Para o autor, a Análise crítica do discurso objetiva “tornar visíveis às relações entre linguagem e outras práticas sociais, muitas vezes naturalizadas e opacas” e, portanto, não percebidas pelos indivíduos.
No entanto, a autonomia, sob os princípios da eficiência e eficácia, deve ser entendida a partir do contexto social. Conforme Martins (2006, p.30), a compreensão do processo de autonomia permite que avaliemos a distância e a tensão existentes entre lutas que consideramos autônomas e as instituições sociais que têm como função garantir a reprodução das relações de produção, pois “suas possibilidades e os limites para seu exercício são dados no conjunto de fatores subjetivos”. Neste entendimento, a autonomia só pode ser definida, portanto, como relação e prática social.
Discursos acerca da descentralização e da autonomia, originárias na produção, permeiam todos os níveis da gestão educacional. No Brasil, o Ministério da Educação (MEC) assumiu a descentralização, como base da gestão educacional, sob a discursividade de aproximar os governos locais das necessidades reais da escola, a partir das regulações impostas pela agenda de financiamento da educação, promovidas por agências multilaterais. Assim procuraremos destrinchar alguns desses caminhos a partir de algumas análises de cunho político e linguístico sobre os discursos da autonomia.
Esse discurso criticava, também, a falta de autonomia da escola e de participação da comunidade na “construção” e “execução” do projeto político-pedagógico. Nesse diagnóstico, fica excluída a formação e a valorização do magistério, como se estas, não fossem também, imprescindíveis à construção da identidade da escola. Um discurso docente bem atual, acerca da construção do Projeto político-pedagógico vai, infelizmente, mostrar que os avanços não foram tão significativos:
P3: Olha a gente sabe que o p.p.p é importante para escola é porque as vezes a gente não se vê muito estimulada mesmo a fazer nada. Sei lá... bate um cansaço de ver que os anos se passam e a nossa profissão só tem sido desvalorizada... e você sabe, que pra gente projetar a própria vida é preciso que a gente esteja muito estimulada, imagine fazer isso com esse desrespeito que sofremos. Até uma piso rasteiro desse ainda não querem pagar a gente!
A discussão no campo da política educacional em torno da autonomia e descentralização dos estabelecimentos de ensino continua, na primeira década dos anos 2000, ressignificada/continuada nos programas do governo Lula. O discurso democrático mediado pela descentralização e autonomia é, ainda, a batuta que rege as políticas educativas na contemporaneidade, mas é pela análise da natureza desses princípios democráticos em instituições concretas que podemos ter condição de avaliar se estes princípios postulados estão sendo respeitados. Se os princípios e valores que o sustentam se encarnam em instituições concretas.
O PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO NA LEGISLAÇÃO EDUCACIONAL
A descentralização educacional, no Brasil, teve início com o Ato Adicional à Constituição do Império e foi assumindo configurações diferenciadas. Ao longo da história, a descentralização e a regulação da gestão educacional (federal, estadual e municipal) dissimulam o tradicional embate entre os setores público e privado.
A Constituição de 1988 (BRASIL, art. 1º e 18, 1988) define a República Federativa como união indissociável dos Estados, Municípios e do Distrito Federal formadores do Estado democrático, com prerrogativa de autonomia para promoverem a organização político-administrativa, de acordo com os princípios instituídos.
Ao atribuir competência à União, aos Estados e aos Municípios, para organizarem, em regime de colaboração, seus sistemas de ensino, a Carta Magna (BRASIL, 1988, art. 211, parágrafo 2º, art. 29), estabelece que “Os Municípios atuarão, prioritariamente, no Ensino Fundamental e na educação infantil”. Estes, por sua vez, deverão reger-se por “lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará”.
As políticas de descentralização, apregoadas não só no Brasil, mas em toda América Latina, enquanto redefinem as funções do Estado e privatizam as relações sociais no interior do sistema público de ensino, tornam mais complexo o quadro de funcionamento das esferas públicas e privadas no âmbito da educação.
As propostas acabaram por revelar duas perspectivas de política educacional: um projeto democrático e outro que expressava a política do capital financeiro internacional. Infelizmente os interesses imediatos do governo, majoritário no Congresso, acabaram desfigurando o projeto originário da sociedade, reduzindo-o a uma “carta de intenções”. Os textos normativos e os documentos oficiais analisados, embora enfatizem a autonomia e a descentralização, foram produzidos por especialistas do Ministério da Educação, que centraliza e controla as decisões, conforme as diretrizes instituídas pelas agências de financiamento da educação.
METODOLOGIA
Como foi discutido anteriormente, os processos são caracterizados por uma desobrigação do poder público aos problemas constituintes da prática pedagógica e, o que é posto como uma maior “conferência de autonomia aos estabelecimentos”, não passa de um engodo para enxugar os quadros profissionais em nome de um trabalho coletivo.
Assim, apresentaremos algumas analises consolidadas a partir das vozes docentes fazendo um articulação com o contexto da políticas que enfatizam a autonomia em seu planejamento político.
Na atualidade, os documentos legais continuam a enfatizar fortemente o discurso sobre autonomia, a exemplo do Plano de Desenvolvimento da Educação (2008). É um documento de prestação de contas, especialmente do governo Lula sobre os feitos gestionários dos últimos anos em favor da educação, como também um convite à sociedade civil a colaborar com os destinos educacionais do Brasil.
Outro documento recente que constitui texto final de discussão da Conferência Nacional de Educação - CONAE que foi realizada em abril de 2010, traz como tema central: "Construindo o Sistema Nacional Articulado de Educação: o plano nacional de educação, diretrizes e estratégias de ação. Tal documento enfatizava do discurso da autonomia em todos os níveis de ensino.
O documento final naquele contexto evidenciava uma compreensão de Sistema Nacional de Educação como provedor da educação obrigatória, direito do indivíduo e dever do Estado e destaca como necessidade:
Projeto Pedagógico (educação básica) e Plano de Desenvolvimento Institucional (educação superior) construídos coletivamente e que contemplem os fins sociais e pedagógicos da instituição, a atuação e autonomia escolar, as atividades pedagógicas e curriculares, os tempos e espaços de formação, a pesquisa e a extensão. (p.32).
A gestão democrática, entendida como princípio da educação nacional, segundo documento “deve entrar em sintonia com as formas de participação da comunidade local e escolar”. Assim, o projeto político-pedagógico é referendado como elemento decisivo “na formação de cidadãos críticos e compromissados com a transformação social”. Esse projeto deverá trazer como fundamento a autonomia como estratégia de um modelo de gestão democrática. (p.42) Temos uma voz docente que indica que ainda há muita centralização local na propositura de um currículo mais emancipador:
P4: Foi alguma coisa feita mais pelos técnicos e que deveria ser entregue na Secretaria de Educação./ Por isso que eu digo que não participei efetivamente/eu estive lá/ouvi algumas reuniões.../ mas dizer assim, da minha palavra mesmo, assim como os demais educadores, não foi levada em consideração(sic), visto que o corpo técnico que elaborou./ É como se fosse o P.P.P dos técnicos.(risos)
Ainda no item 54 do mesmo documento, ao destacar o sistema nacional articulado de educação como modo consistente de conjugar forças em prol da educação, alerta que se deve considerar a promoção da elaboração do Projeto pedagógico (educação básica) e Plano de Desenvolvimento Institucional (educação superior) construídos coletivamente e que contemplem os fins sociais e pedagógicos da instituição, a atuação e autonomia escolar, as atividades pedagógicas e curriculares, os tempos e espaços de formação, a pesquisa e a extensão. (P.23).
Atualmente a questão do tempo para discutir coletivamente as questões da escola são evidenciados no discurso docente quando afirma:
P4:O trabalho é sempre tumultuado. Não dá pra gente se debruçar em um questão de cada vez. Tem sempre muito problema pra resolver”. P:5Sei não… a gente tem que ter muito cuidado com o nosso fazer, porque corre tanto de um lado para o outro que daqui a pouco ninguém sabe quem é quem”(T2).
O documento recomenda por fim, que os próprios conceitos de autonomia, democratização, descentralização sejam “coletivamente debatidos” para que seja alcançada “maior legitimidade e concretude no cotidiano”.(P.27)
A autonomia também pode ser vislumbrada no sentido filosófico do sujeito se contrapor e perceber-se sobre ordens e funções que não respondem aos seus anseios, de se enxergar num processo constitutivo coletivo e não individual. Tal evento não indica superação de falsos consensos, dos ideais de mercado criados em torno da autonomia nos espaços educativos, mas indica a natureza de possibilidades de contestação individual de sujeitos que se projetam numa prática e se percebem cerceados por limites que impedem a autonomia almejada.
Diante disso, não se pode deixar de apontar a importância dos processos de formação docente para aprofundamento das perspectivas de visualização da autonomia como movimento de luta e contraposição às leis de mercado e as teorias circulantes em torno de um profissional mais “reflexivo”.
Atualmente, no PNE 2014-2024, a gestão democrática continua a aparecer como condição importante de possibilidade dos sujeitos terem acesso à educação de qualidade como direito universal. A construção do Projeto político pedagógico no texto da CONAE é um mecanismo de participação para configurar um processo de gestão democrática e com isso contribui para “a formação de cidadãos críticos e compromissados com a transformação social” (p.59). Dentro desse projeto construído nas instituições haverá, na perspectiva do documento, possibilidades de consolidação dos fundamentos de autonomia, a qualidade social, a gestão democrática participativa e a diversidade cultural, étnico-racial, de gênero, do campo.
Assim, além de reiterar a importância do objeto da pesquisa, que são as configurações locais da autonomia, reafirmo a importância dos movimentos sociais e a militância dos intelectuais críticos no processo de compreensão dos (inter)discursos que justificam uma boa educação para sua nação. Conforme Dale (2008, p.18), o currículo tem se tornado um componente crucial da escolarização em função de ser analisado como meio pelo qual os “Estados-nações conseguem ajustar seus sistemas educacionais para atender demandas e preferências em constante mudança.
O currículo tem sido o meio principal mecanismo de “substancialização” de políticas, no entanto adverte Dale (2008) que o Estado n contexto de globalização neoliberal não é instituição e forma de governo exclusiva, pois está nesse conjunto de governação “nacional” o “mercado e a comunidade, a esfera transnacional e a subnacional”. Nesse interim temos forças sociais no contexto de globalização vão operar “supranacionalmente e transnacionalmente, ao invés de internacionalmente, para anular, desmantelar ou passar por cima das barreiras nacionais enquanto reconstrói as relações entre nações”. Nesse sentido para Dale (2008, p.19):
Ontologicamente, a globalização neoliberal pode ser vista como um conjunto de arranjos políticos e econômicos para a organização da economia global, impulsionada mais pela necessidade de manter o sistema capitalista e do que por quaisquer valores. A adesão aos seus princípios se dá pela influência política e econômica e pela percepção dos próprios interesses. Nenhum Estado-nação, nem mesmo os Estados Unidos ou a China, é capaz de controlar ou dirigir a economia global neste momento, e isso tem duas consequências importantes para nossa compreensão da globalização e do currículo.
A autonomia que vai constituir os discursos no contexto das políticas educacionais em âmbito global como se vê tem uma “ordem”. No contexto da economia global instituições internacionais tem um efeito importante na reconfiguração dos currículos Globais-locais. O interesse global conforme apresentou Dale (2008), estão bem representados para esse fim: (G8, Fórum Econômico Mundial, Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico-OCDE, Banco Mundial, Organização Mundial do Comércio-OMC, organizações regionais como a União Europeia-UE e o Acordo de Livre Comércio da América do Norte-NAFTA). É na constituição discursiva contraditória que “os Estados-nações, voluntariamente, cedem parte de seu poder nacional no interesse do controle coletivo da economia global em prol de seus interesses conjuntos”. Ao que parece são os espaços territoriais mais ricos que acabam sendo os agentes com maior força no processo de globalização.
Apesar dos Estados se ancorarem em um discurso de que estão em busca de soluções para seus problemas educacionais, tais organizações internacionais acabam oferecendo um receituário de como podem ser enfrentados e quais são as demandas mais urgentes a serem trabalhadas nesse campo. Se autonomia entendida nesse estudo se dá em um processo de relação social, como está a autonomia do Estado brasileiro em (re)definir suas políticas a partir dos seus problemas? É importante reconhecer, no atual contexto de análise das políticas educacionais e decisões curriculares que esses contornos que são desenhados por agências internacionais que colocam a educação parte do setor mais amplo de serviços no âmbito de uma economia de conhecimento global (ROBERTSON; DALE, 2011).
Os organismos internacionais são difusores de soluções genéricas no âmbito curricular, mas o que é mais importante destacar nesse estudo talvez seja a restrição quanto ao alcance do olhar sobre o local, pois tais políticas de alcance internacional acabam por reforçar esquemas de legitimação de modos de ser e fazer pouco contestados e bem assimilados no contexto da prática.
Assim, reafirmo a constatação de Dale (2008) de que “não podemos compreender o que acontece no nível da prática sem ter uma ideia do que acontece no nível da política, e não significa essencialmente que nós não podemos compreender o que acontece no nível da política sem entender o que se passa no nível da economia política”. Assim, parece ser importante compreender o conceito de autonomia no contexto de descentralização como sentença discursiva que não produziu as melhorias que apontava na qualidade do ensino. Como apontou os estudos de (ZIBAS, CARNOY, CASTRO, 1997) que procuravam elucidar que a autonomia administrativa, financeira e pedagógica da unidade escolar, idealizada pelos organismos internacionais tinha como base o “pressuposto de que, com tal nível de descentralização, se estabeleceria, nas escolas públicas, um cenário muito próximo àquele da iniciativa privada, em que objetivos próprios e recompensas por produtividade representam, em tese, o motor do dinamismo do setor”. (ZIBAS, 1997, p. 67).
Os processos de decisão que são vitais na configuração de um currículo mais vivo e de uma docência mais autônoma e profissional no contexto reformador está tensionado por uma “centralização das estratégias e da epistemologia”. Como acredita Popkewitz (1997, p.176) que argumenta sobre a ênfase dada a” flexibilidade, a individualidade e o pensamento crítico, mas posicionados dentro da ecologia do raciocínio instrumental e do individualismo possessivo”. Nesse sentido “a discussão de padrões universais justapostos contra a determinação local de estratégias pressupõe definições centralizadas”, o que nos move a querer entender melhor o sentido de mudança no contexto reformador.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As análises desenvolvidas no percurso de pesquisa teórico-empírica nos permitem relacionar os princípios políticos e filosóficos das reformas educacionais em nível macro e micro ao ideário neoliberal e ao positivismo, que distanciam a educação da realidade social.
Na tentativa de compreender a educação numa abordagem contra hegemônica, recorremos ao discurso acadêmico que identifica o projeto político-pedagógico como mediação de uma prática discursiva, articulada ao processo de transformação.
O projeto regulado, conforme referência anterior, também não se realiza na escola investigada. No entanto, a regulação que incide sobre ele desqualifica o trabalho docente e transforma a escola e seus professores em escravos do tempo do capital.
O discurso político documental traz o que Fairclough (2001, p.129) entende como aparente democratização do discurso, pois envolve “a redução de marcadores explícitos de assimetria de poder entre as pessoas com poder institucional desigual”, como é o caso dos professores. Isso costuma ser evidente numa diversidade de domínios institucionais. A autonomia está muito bem demarcada no texto das políticas educacionais, mesmo que de forma ambivalente: autonomia como direito do docente e também dever na construção do PPP. Fairclough (2001, p.152) compreende que a interdiscursividade é basicamente a forma como um tipo de discurso vai sendo constituído por meio de combinação de elementos de ordens do discurso. O discurso docente também apresentou ambivalências na questão da participação da construção do projeto: as professoras têm e não têm autonomia, e isso surge nos questionamentos que fazem ao longo de suas falas.
Algumas tendências de mudança de ordens de discurso apontadas por Fairclough (2001, p.247), como a comodificação, foram verificadas tanto na voz docente como no discurso das políticas educacionais. “Em termos de ordens de discurso, podemos entender a comodificação como a colonização de ordens de discurso institucionais e mais largamente da ordem de discursos societária por tipos de discursos associados à produção de mercadoria” (p. 255).
A gestão democrática (descentralizada e autônoma), a competência, a habilidade e a comunidade são marcas dos discursos, mas o discurso comodificado costuma ser contraditório, como sugeriu algumas vozes docentes. Ao mesmo tempo em que exteriorizavam o projeto como algo de “dentro para fora”, indicavam que sem ele ficariam como “uma nave sem direção”. Nos documentos como PNE (2001) e LDB (1996) as professoras são colocadas como sujeitos ativos e capazes de pensar a escola, mas historicamente são ignoradas na formulação de políticas de sua própria formação.
Assim, embora a escola seja desafiada a oferecer respostas e condições às novas exigências da reestruturação produtiva “global”, compreendemos que a sua ação se inscreve num local com temporalidades culturais diferenciadas, conforme as subjetividades envolvidas no seu cotidiano. Sem dúvida, o tempo do capital invade o tempo do trabalho e investe na transformação da escola pública numa “organização” movida pelos princípios administrativos da gerência empresarial.
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