VINCULAÇÃO CONSTITUCIONAL DE RECURSOS FINANCEIROS PARA EDUCAÇÃO E A MANUTENÇÃO E DESENVOLVIMENTO DO ENSINO

Resumo:Este trabalho trata da vinculação constitucional de recursos financeiros para a educação e o significado do que conhecemos hoje como Manutenção e Desenvolvimento da Educação (MDE). Mostra a relação entre períodos democráticos e vinculação constitucional e entre períodos de ditadura e desvinculação. Constata que em muitos momentos a MDE não é tida como referência para o uso dos recursos financeiros vinculados e que os tribunais de conta precisam melhor as suas análises sobre as prestações de contas apresentadas pelos executivos, em especial nos estados, município no Distrito Federal. Indica a necessidade do uso dos recursos financeiros estar articulado com a garantia das aprendizagens dos estudantes.

Palavras-chave: financiamento; vinculação; aprendizagens.


INTRODUÇÃO

A disputa entre o público e o privado que remonta de forma mais explícita aos anos 30 do Século XX, infelizmente, ganhou fôlego ao longo da historia da educação brasileira, inclusive com o apoio de organismos internacionais à tese privatista, em especial nos aos 80 e 90 do século passado. Só que passado um período de relativo consenso em torno do financiamento da educação pública, no período de 2003 a 2014, temos hoje um quadro bastante desfavorável à garantida de recursos financeiros para o setor, sobretudo na educação básica.

O fato é que, diante de um cenário de ataque aos direitos sociais e à própria democracia, o financiamento da educação no Brasil tende a ocupar papel central no debate sobre o futuro da educação pública para além dos espaços acadêmicos.

Neste contexto de acirramento da histórica disputa entre o púbico e o privado, é importante recuperar um pouco do histórico da vinculação constitucional de recursos para a educação e o significado da Manutenção e Desenvolvimento do Ensino (MDE).

VINCULAÇÃO CONSTITUCIONAL: BREVE HISTÓRICO

A vinculação constitucional de recursos financeiros para a educação é iniciada em 1934. Na verdade, pode-se afirmar que começa aqui uma disputa a parte, no campo de batalha no qual o público e privado se digladiam, entre vinculação (sempre aprovada em períodos democráticos) e desvinculação (igualmente presente durante os regimes autoritários). Atente-se que foi em 1934 que uma importante expressão aparece na Carta Magna: manutenção e desenvolvimento dos sistemas educativos. Esta expressão, modificada posteriormente, para manutenção e desenvolvimento do ensino, chamada de MDE, será ponto de discussões em função da sua importância no financiamento da educação.

Com a outorgada constituição de 1937, início do Estado Novo, acontece algo lamentável, e que se tornaria realidade em todos os períodos autoritários da nossa historia mais recente, no caso a desvinculação de recursos para a educação, conforme já mencionado. Em 1946, já com a retomada da redemocratização, a vinculação de recursos para a educação é novamente incluída na Constituição Federal no seu artigo 169: Anualmente, a União aplicará nunca menos de dez por cento, e os Estados, o Distrito Federal e os municípios nunca menos de vinte por cento da renda resultante dos impostos na manutenção e desenvolvimento do ensino.

Ainda no período democrático, e sob a vigência da CF de 1946, aprova-se a primeira Lei de Diretrizes da Educação Nacional, a famosa 4.024 em 1961, que também foi fundamental para fortalecer a ideia de vinculação de recursos para a educação.

Art. 92.A União aplicará, anualmente, na manutenção e desenvolvimento do ensino, 12% (doze por cento), no mínimo, de sua receita de impostos e os Estados, o Distrito Federal e os municípios, 20% (vinte por cento), no mínimo” (Art. 92 da Lei 4.024).

Além disso, a LDB de 1961 (Lei 4.024), pela primeira vez na história, estabelece os gastos que seriam considerados como despesas do ensino e os que não seriam, no seu artigo 93, § 1º e §2, respectivamente.

Pois então, três anos depois da aprovação da nossa primeira LDB, ocorre o Golpe Militar, o qual não tardou em colocar vários empecilhos para o cumprimento da Carta Maior de 1946 e, claro, para o cumprimento do aumento do percentual de 10% para 12% que a 4.024 havia estabelecido para o Governo Federal. Na verdade, a pouca transparência do que era investido em educação, com o Golpe, desaparece, e passa-se a um período de “trevas” acerca dos gastos em educação. E tal como em 1937, a Constituição outorgada de 1967 desvincula novamente os recursos para a educação. E mesmo a Emenda Constitucional n. 01 de 1969, ao contrário do que em certos momentos se ouve em círculos que defendem as ações do Golpe, não altera esta lógica, pois estabelece vinculação apenas para os municípios. “Aos municípios que não aplicarem, em cada ano, pelo menos 20% da receita tributária municipal no ensino de primeiro grau, aplicar-se-á o disposto no art. 15, § 3º, alínea f da Constituição” [intervenção] (artigo 59). Isso complicou a situação da educação porque a desvinculação resultou em menos recursos para o setor. Segundo Melchior (1983), a desvinculação teria sido desastrosa para a educação e que

“... foi durante o período de maior crescimento do PIB que verificamos uma decrescente aplicação de recursos financeiros em educação, principalmente pela esfera federal, que é aquela que maior potencialidade apresenta na perspectiva de receita fiscal efetivamente arrecadada” (Melchior, 1983, p. 75).

Melchior sustenta ainda que os recursos da União cresceram e os da educação decresceram. Calmon (1990) reforça a tese do prejuízo sofrido pela educação ao apresentar o decréscimo das aplicações da União na área de 1969 a 1975: 8,69% em 1969; 7,33% em 1970; 6,78% em 1971; 5,62% em 1972; 4,95% em 1974; e 4,31% em 1975. O autor afirma ainda que a União, que já vinha descumprindo o dispositivo da antiga LDB, apoiando-se em parecer da Consultoria-Geral da República, liberta-se de qualquer obrigação. Não seria exagero afirmar que o órgão citado estava submisso aos generais que comandavam o país.

Mas a situação ficou pior, já que a CF de 1967 tinha ampliado a obrigatoriedade educacional para 8 anos. Mas, como diz o ditado popular: “há males que vem para o bem”. E foi justamente isso que aconteceu, já que esta ampliação da obrigatoriedade foi a justificativa usada pelo Senador João Calmon para apresentar a Emenda Constitucional em 1976 que tinha como objeto a retomada da vinculação de recursos para educação (12% para União e 24% para Estados).

Retoma-se a luta pela vinculação, mas neste momento, infelizmente, sem sucesso, pois o governo fez uma manobra e inviabilizou o quórum para votação. Foram necessários alguns anos a mais e muita luta, em especial dos sindicatos, para que a emenda fosse, finalmente, aprovada em 1983 com a seguinte redação “A Emenda Calmon não logrou ser cumprida no governo Figueiredo – o que chegou, inclusive, a gerar um pedido de impeachment. A Secretaria do Planejamento (Seplan), comandada pelo então Ministro Delfim Netto exigiu a regulamentação da Emenda, que o Conselho Federal de Educação e muitos juristas consideravam autoaplicável. Com a campanha presidencial que se seguiu, o candidato Tancredo Neves comprometeu-se com o cumprimento da Emenda. A regulamentação veio com a "Nova República", pela Lei nº 7.348/85. Assim, a Emenda Calmon foi aprovada em 1983, mas aplicada somente em 1986, a partir do orçamento em 1985” (Sena, 2002, p 10 e 11). :

Artigo 176 (...)

§ 4º Anualmente, a União aplicará nunca menos de treze por cento, e os Estados, o Distrito Federal e os municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, na manutenção e desenvolvimento do ensino.

Em 1986, com a eleição do Congresso Constituinte, as discussões e encaminhamentos sobre a vinculação constitucional são retomadas com toda a força. Foi um período também de muita luta, com destaque para o Fórum Nacional em Defesa da Escola Publica (FNDEP), criado em fevereiro de 1987, do qual participavam várias entidades nacionais importantes.

E a inclusão da vinculação de recursos para educação não foi fácil, inclusive com “direito” ao desaparecimento da emenda no primeiro anteprojeto, conhecido como Cabral I (o Deputado Bernardo Cabral foi o relator da Constituinte). Segundo o próprio Calmon, teria prevalecido a tese defendida pelo deputado Jose Serra que defendia a vinculação apenas nas disposições transitórias. “Por esse texto ocorreria vinculação apenas até que se aprovasse o orçamento plurianual para o governo. O porcentual dessa aplicação provisória caiu de 25% para 20%, no que se referia aos Estados e municípios” (Calmon, 1990, p. 24-25).

Contudo, para a alegria dos movimentos sociais, intelectuais progressistas, sindicatos e outros atores, o artigo 212 da Constituição Federal que estabelece a vinculação de recursos para a educação foi aprovado com a seguinte redação:

Art. 212. A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino (EC nº 14/1996, EC nº 53/2006 e EC nº 59/2009).

Mas a história do financiamento no Brasil é marcada por algo tão perverso quanto à falta de recursos: dupla contagem. Esta ocorre nos casos em que o mesmo recurso é considerado duas vezes para a prestação de contas junto aos tribunais de conta. Por incrível que pareça, o Governo Federal e os estaduais, durante muitos anos, usaram esse ato ilegal para a dupla contagem para efeito do cálculo dos percentuais que deveriam ser aplicados em educação. Tal esperteza foi devidamente proibida no § 1º do artigo 212 da Constituição Federal de 1988:

§1º A parcela da arrecadação de impostos transferida pela União aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, ou pelos Estados aos respectivos Municípios, não é considerada, para efeito do cálculo previsto neste artigo, receita do governo que a transferir.

Outro aspecto interessante é que no § 5º do artigo 212 citado consta que “a educação básica pública terá como fonte adicional de financiamento a contribuição social do salário-educação, recolhida pelas empresas na forma da lei.

E diferente do que às vezes pode parecer, não há consenso em torno da vinculação constitucional para a educação. Existe uma “onda” contraria à vinculação de recursos, em geral vinda de parte burocracia dos executivos, de segmentos do próprio parlamento e, obviamente, do setor privado. Segundo Veloso, “a vinculação de recursos sempre enfrentou a hostilidade dos setores de planejamento e orçamento. Aos educadores coube o papel de denunciar as manobras para descumprir tal dispositivo” (Velloso, 1990, p. 20). Nesse sentido, é preciso vigiar permanentemente o cumprimento do dispositivo constitucional, em especial na conjuntura atua de retirada de direitos e de descumprimento dos marcos constitucionais.

Contudo, e em que pese a hostilidade de alguns setores, a vinculação constitucional para a educação tem lastro legal, conforme estabelece o artigo 167, inciso IV:

Art. 167. São vedados: (EC nº 3/1993, EC nº 19/1998, EC nº 20/1998, EC nº 29/2000, EC nº 42/2003 e EC nº n85/2015)

... IV – a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, ressalvados a repartição do produto da arrecadação dos impostos a que se referem os arts. 158 e 159, a destinação de recursos para manutenção e desenvolvimento do ensino, como determinado pelo art. 212, e a prestação de garantias às operações de crédito, por antecipação da receita, previstas no art. 165, § 8º, bem assim o disposto no § 4º deste artigo (grifo meu).

A vinculação constitucional passou a figurar também nos diplomas infraconstitucionais (LDB de 1996, constituições estaduais e leis orgânicas). E a vinculação se fortaleceu tanto que passou a ser subvinculada em dois importantes Fundos: Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério (Fundef), já extinto; e Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), em vigor

Mas e o papel da atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB)? O processo de discussão da LDB, tal como o da Constituição Federal, foi palco de discussões acaloradas entre o público e o privado, mas ratificou a vinculação constitucional:

Art. 69. A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, vinte e cinco por cento, ou o que consta nas respectivas Constituições ou Leis Orgânicas, da receita resultante de impostos, compreendidas as transferências constitucionais, na manutenção e desenvolvimento do ensino público (grifo meu).

Registre-se que, diferente do artigo 212 da Constituição Federal, no artigo 69 da LDB consta o termo “público”. Não há duvida que isso marca uma tentativa de canalizar os recursos públicos somente para a educação pública. Mas o artigo 213da CF-88 e o 77 da LDB mantêm a possibilidade de destinação de recursos públicos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas (ECCF).

Outro aspecto que merece atenção na LDB é o cronograma de repasses de impostos do caixa da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios ao órgão responsável pela educação, em geral, as secretarias de educação, bem como a responsabilização civil e criminal das autoridades competentes (Presidente da Republica, Governadores e Prefeitos), conforme determina o seu artigo 69:

Art. 69....

§ 5º. O repasse dos valores referidos neste artigo do caixa da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios ocorrerá imediatamente ao órgão responsável pela educação, observados os seguintes prazos:

I - recursos arrecadados do primeiro ao décimo dia de cada mês, até o vigésimo dia;

II - recursos arrecadados do décimo primeiro ao vigésimo dia de cada mês, até o trigésimo dia;

III - recursos arrecadados do vigésimo primeiro dia ao final de cada mês, até o décimo dia do mês subseqüente.

§ 6º. O atraso da liberação sujeitará os recursos a correção monetária e à responsabilização civil e criminal das autoridades competentes.

Infelizmente, a inovação não foi cumprida pelos executivos estaduais, municipais e do Distrito Federal. E o problema nem chegou a ser o cronograma de repasses previsto no § 5º do artigo 69 da LDB, e sim a inexistência de repasse ao órgão responsável pela educação. Ou seja, as secretarias de educação de todo o país, talvez com honrosas exceções que só comprovam a regra ilegal, não recebem o repasse de recursos financeiros devido à educação e, ao que parece, estão cada vez mais distantes do gerenciamento dos recursos. O mais certo seria que fosse aberta uma conta em nome de cada secretaria de educação para o recebimento dos recursos financeiros de acordo com o cronograma estabelecido no § 5º do artigo 69 da LDB. Do contrário, parte importante da legislação educacional referente ao financiamento da educação é enfraquecida.

Diante disso, é preciso vigiar o artigo 212 da Constituição Federal e o artigo 69 da LDB, pois são estes que garantem o funcionamento da educação brasileira (universidades, institutos federais e escolas públicas e as suas devidas estruturas de apoio). E, atenção: os recursos vinculados não são para a educação em geral, e sim para a manutenção e desenvolvimento do ensino (MDE), o que será abordado a seguir.

MANUTENÇÃO E DESENVOLVIMENTO DO ENSINO (MDE)

Em primeiro lugar, o MDE (Manutenção e Desenvolvimento do Ensino) não era MDE no momento da primeira vinculação constitucional em 1934. Nesta, a expressão era "manutenção e desenvolvimento dos sistemas educativos". Pode até parecer a mesma coisa, mas não e! E isso porque é fundamental definir o que está ou não incluso na manutenção e desenvolvimento do ensino. Manter e desenvolver o ensino não e a mesma coisa de manter e desenvolver os sistemas educativos, já que estes são de caráter mais amplo. Sim, pois a manutenção dos sistemas educativos pode ser compreendida como, por exemplo, custear estruturas adjacentes e ou suplementares à educação. Exemplo: incluir como despesa da educação os programas suplementares de alimentação e assistência à saúde. O pensamento mais “lógico” seria afirmar que tal inclusão seria normal e tranquila, mas não é! E isso porque e fundamental definir o que, de fato, está diretamente relacionado à manutenção e desenvolvimento do ensino. Os dois programas citados de acordo com o §4 do artigo 212 da Constituição em vigor devem ser custeados com recursos provenientes de contribuições sociais e outros recursos orçamentários. Além disso, o artigo inciso IV do artigo 71 da LDB Art. 71. Não constituirão despesas de manutenção e desenvolvimento do ensino aquelas realizadas com: IV - programas suplementares de alimentação, assistência médico-odontológica, farmacêutica e psicológica, e outras formas de assistência social;, que estabelece o que não é despesa de MDE, reforça o preceito constitucional. Como assim? É que atualmente a vinculação de recursos para educação é provenientes de impostos. E imposto é um tipo de tributo, e não inclui, por exemplo, contribuições sociais. Portanto, mesmo o salário-educação não deve ser incluído no montante de MDE para o cumprimento do artigo 212, já que e uma contribuição social. Enfim, o MDE constitucional é composto apenas de um tipo específico de tributo, no caso o imposto.

E já faz tempo que o MDE figura no texto legal. A Carta Magna de 1946 corrige a “falha” e cunha a expressão manutenção e desenvolvimento do ensino em substituição à antiga, no caso a manutenção e desenvolvimento dos sistemas educativos. O estabelecimento do que entra e do que não entra como MDE é tão importante que a LDB de 1961 (artigo 93, § 1º e §2º) e a de 1996 (artigos 70 e 71) explicitaram o que é, e o que não é MDE. Na verdade, a delimitação nestas leis parece denunciar os desvios que ocorreram com os recursos vinculados à educação. Apenas a título de exemplo, despesas com assistência social e hospitalar, mesmo quando ligadas ao ensino, foram proibidas na LDB de 1961(no § 2º do artigo 93) d serem computadas como sendo de MDE. Esta mesma lei proibiu ainda despesas realizadas por conta de verbas previstas para o Plano de Valorização Econômica da Amazônia e do plano de aproveitamento das possibilidades econômicas do Rio São Francisco. Isso e um absurdo? Com os “olhos” de hoje, sim, mas ilustra bem a situação há mais de meio século. Mas algumas proibições na LDB em vigor mostram que o assunto ainda se encontra em aberto. O artigo 71 da atual LDB proíbe, além do que já foi citado em relação à suplementação da alimentação escolar e quaisquer formas de assistência social, despesas com recursos de MDE com: “formação de quadros especiais para a administração pública, sejam militares ou civis, inclusive diplomáticos” (inciso IV); pessoal docente e demais trabalhadores da educação, quando em desvio de função ou em atividade alheia à manutenção e desenvolvimento do ensino. Durante muito tempo era comum construir uma ponte ou mesmo uma estrada próxima à escola com recursos de MDE, mas a LDB atual veta o uso de recursos de MDE para despesas com “obras de infraestrutura, ainda que realizadas para beneficiar direta ou indiretamente a rede escolar” (artigo 71, inciso V)

Enfim, a pergunta que não poder calar é: o que, de fato, está incluso na manutenção e desenvolvimento do Ensino? Para tanto, um olhar atento aos artigos 70 e 71 da LDB e também aos programas federais e locais é um interessante exercício, mas apenas para iniciar a conversa, pois a questão é muito mais complexa, uma vez que, mesmos os tribunais de contas ainda têm dificuldade de aferir o que, de fato, deve ser considerado MDE. A este respeito, Davies (2007) encontra inúmeras falhas nos pareceres do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro por um longo período, no caso em torno de 10 anos (1997 e 2007). Posteriormente, o mesmo autor indica irregularidades nas aplicações em MDE no Estado do Mato Grosso. Segundo comentário de Veloso a este trabalho, o Tribunal de Contas teria aceitado:

“...o demonstrativo contábil do governo estadual, que incluiu, no percentual mínimo de despesas com a manutenção e desenvolvimento do ensino, gastos que não podiam ser assim contabilizados, pois não eram oriundos de impostos – como aplicações efetuadas com recursos do salário-educação, que é uma contribuição social. Constatou ainda uma aberração conceitual em alguns pareceres do mesmo tribunal: nestes, considerou que o imposto de renda pago pelos servidores estaduais e municipais não deveria ser considerado como imposto para fins do cálculo dos recursos vinculados à MDE” (2012, p. 366).

Nesse sentido, todo cuidado é pouco com possíveis prestações de contas organizadas na perspectiva contábil por parte dos executivos, pois isso pode gerar uma espécie de cumprimento formal do dispositivo constitucional referente aos recursos aplicados em educação. Ou seja, é urgente que as despesas tidas como MDE sejam detalhadas tanto quanto possível e colocadas à disposição da sociedade, o que poderia ser considerado cumprimento de fato, e não “maquiagens” contábeis que são aceitas por pura ignorância na maioria dos casos pelos tribunais de conta. Veloso (1990) usou os termos nominal e real para se referir ao que é feito contabilmente e o que está de acordo com o marco legal referente ao uso dos recursos de impostos em MDE, respectivamente.

No caso do Distrito Federal, infelizmente, ao que parece, não há acompanhamento sistemático dos pareces do Tribunal de Contas do Distrito Federal (TCDF) pela Câmara Legislativa e pela sociedade civil, e muito menos estudos que possam constatar se o MDE é respeitado ou não. Isso aponta para a necessidade de um controle social dos gastos. Seria interessante a criação de um Conselho de Acompanhamento dos Recursos de MDE. Vale registra que Veloso, por ocasião do seu depoimento a CPI da Emenda Calmon, afirmou que

“que no caso das verbas destinadas ao Distrito Federal, a destinação ocorria desde o processo de elaboração do orçamento, sendo tais recursos análogos aos impostos arrecadados pelos Estados. A apropriação desses gastos pela União implicava dupla contagem. Procurou, enfim, demonstrar os artifícios contábeis que comprometiam a aplicação em MDE, sugerindo metodologia para a depuração das despesas, segundo os critérios adotados pela Lei nº 7.348/85, então em vigor” (Veloso, 1990).

E a Lei Orgânica do DF “veda o desvio temporário, a retenção ou qualquer restrição ao emprego dos recursos de MDE (art. 241, § 1º). Na prática, isso significa que não se pode imputar anistia fiscal ou outro de qualquer natureza nos montantes vinculados a educação.

No entanto, o mais complicado, e que precisa de uma regulamentação específica, é o que será ou não, em termos de programas, projetos e mesmo pessoal, considerado MDE. Ou seja, já não basta sustentar que os recursos vinculados devem manter e desenvolver o ensino. É que mesmo os artigos 70 e 71 da LDB e também a Lei 7348/85 não dão conta do que vem acontecendo na vida real das despesas e da avaliação das mesmas por parte, inclusive, dos tribunais de conta.

E atente-se que vários estudiosos do assunto tem denunciado tal distorção. E ainda que se admita que, por vezes, estas denúncias tenham sido exageradas, como no caso de Souza (1984) que, além de questionar corretamente a inclusão de ações no âmbito da cultura, telecomunicações, desporto, ciência e tecnologia, sugeriu a exclusão da educação especial e pré-escolar (Souza, 1984, p. 139). Já Melchior sustentava que deveriam ser considerados apenas despesas com o "... ensino de 1º, 2º e 3º graus, supletivo, pré-escolar e de excepcionais, nas autarquias e fundações que tratam do ensino superior..."(1984, p. 154-155). Ele, tal como Souza, questionava a inclusão de “programas” como administração, administração financeira, ciência e tecnologia, desportos, assistência ao educando e cultura. Calmon, com base nos critérios da Unesco, afirmava que o MEC “...não deve computar como despesas com manutenção e desenvolvimento do ensino os gastos que faz com cultura, desportos, tecnologia, segurança e informações, entre outros itens (1984, p. 135). Veloso, por sua vez, anotou “...que existiam brechas para que despesas não destinadas especificamente à manutenção e desenvolvimento do ensino fossem incluídas como tal [e criticou] a inclusão dos colégios militares e de despesas com assistência social e hospitalar” (1990, p. 21). Registre-se, no entanto, que “a Lei nº 7.348/85 estabeleceu em seu art. 6º, § 1º a definição normativa de "manutenção e desenvolvimento do ensino". Assim, eram consideradas despesas com MDE todas as que se fizessem "dentro ou fora das instituições de ensino, desde que as correspondentes atividades estejam abrangidas na legislação de Diretrizes e Bases da Educação Nacional" e fossem "supervisionadas pelos competentes sistemas de ensino" ou ainda as que: a) resultassem da manutenção dos colégios militares de 1º e 2º graus; b) resultassem em bens ou serviços que se integrem nas programações de ensino; c) consistissem em levantamentos estatísticos, estudos e pesquisas, levados a efeito pelas instituições de ensino ou por outros órgãos e entidades, desde que visem precipuamente ao aprimoramento da qualidade e à expansão racional do ensino; d) correspondessem à amortização e ao custeio de operações de crédito destinados ao financiamento de programações de ensino; e) importassem em concessão de bolsas de estudo; f) assumissem a forma de atividade-meio de estabelecimento de normas, gestão, supervisão, controle, fiscalização e outros, necessários ao regular funcionamento dos sistemas de ensino. Mas a Lei nº 7.348/85, embora tenha dado “guarita” para as muitas distorções que ocorreram, em especial no final da década de 1980 e 1990, sendo um exemplo os colégios militares como bem aponto Veloso (1988), esta Lei também avançou no seguinte aspecto:

Art. 7° - os órgãos e entidades integrantes do sistema de planejamento e orçamento detalhassem seus programas de trabalho, de modo a identificar operacionalmente as ações conceituadas como "manutenção e desenvolvimento do ensino", nos níveis de subprojeto e subatividade orçamentários, para efeito de consideração nas fases de elaboração e execução do orçamento.

Sem dúvida, no caso da manutenção e desenvolvimento do ensino (MDE), o detalhamento da lei pode contribuir para que os órgãos envolvidos neste processo cumpram o dispositivo constitucional. Calmon sintetizou bem tal necessidade ao sustentar que “...trata-se da hierarquia das leis. As regras orçamentárias é que devem se adaptar ao mandamento constitucional” (1984, p. 175).

O problema é que os relatórios anuais dos órgãos de controle são pouco lidos e quase nunca compreendidos pela sociedade, mesmo a que está organizada em sindicatos, associações, movimentos sociais, etc., de forma que há muitos segredos a serem desvelados neste universo que mais parece uma caixa preta. E um dos segredos foi desvendado por Veloso (1990, p. 26), quando ele afirma que o Governo Federal, em 1986 e 1987, teria cumprido nominalmente a Emenda Calmon, mas não realmente. Segundo ele, a União teria despendido 13% da receita de impostos na educação, mas que incluiu itens que não poderiam ser considerados como de MDE, a saber: as despesas com segurança e informações; as contribuições do MEC por sua participação em organismos internacionais; despesas com desportos; assistência social; previdência; academias e colégios militares; fundo geral do cacau; recursos para o DF; recursos para os ex territórios do Acre e Rondônia. Ainda que a Lei nº 7.348/85 permita a inclusão dos colégios militares, Veloso tem razão em relação aos demais elementos.

Ao que parece, tem-se aqui a prestação de contas contábil, chamada por Veloso de nominal, sem que a expressão manutenção e desenvolvimento do ensino fosse tida como balizadora e definidora das despesas.

Enfim, para que o cumprimento do preceito constitucional de recursos vinculados para manutenção e desenvolvimento do ensino seja respeitado, será preciso uma sistemática de analise não só das prestações de contas dos governos, mas também dos pareceres dos tribunais de conta como numa espécie de “depuração” para desvelar os segredos do uso dos recursos públicos. Se isso começar a ser feio de forma sistemática, até mesmos os futuros contratos de compra de equipamentos e contratação de serviços, assinados pelos executivos, terão novas bases. Hoje, o que se vê e um verdadeiro festival de aquisições sem respeito ao preceito legal justamente porque todos os anos as contas são aprovadas pelos tribunais de conta, ainda que com ressalvas que não alteram o teor das conclusões. As secretarias de educação de todo o país não podem prescindir de usar os recursos financeiros de impostos vinculados para garantir as aprendizagens dos alunos, mas para isso os contratos não podem ser assinados à revelia da proposta pedagógica de determinada rede de ensino.

Importante deixar claro que, ao citar os tribunais de conta não se pretende questionar a competência do órgão, e muito menos questionar a relevância social dos mesmos, até porque são instituições que devem ser fortalecidas, sob pena de enfraquecer a democracia e a transparência, duas conquistas muito “caras” e que foram fortalecidas nos últimos anos.

A crítica feita é no sentido de contribuir para que os tribunais de conta melhorem a qualidade da sua analise sobre as prestações de conta da educação, sobretudo dos recursos vinculados constitucionalmente para a manutenção e desenvolvimento do ensino e também na interpretação do artigo 212 da Constituição Federal. Aliás, a este respeito, no passado recente, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TCSP), por intermédio da Adin nº 12.240-0, considerou inconstitucional o aumento do porcentual vinculado nas constituições estaduais e leis orgânicas municipais, o que é um equivoco, haja vista que no dispositivo constitucional constam as expressões nunca menos de... e no mínimo..., ignoradas na mencionada decisão. Ou seja, o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo com esta “postura” fortaleceu uma tese de que as ampliações de recursos vinculados para 30% ou 35% nas Constituições Estaduais ou Leis Orgânicas devem retroceder ao patamar de 25%. Os tribunais deveriam agir de outra forma, ou seja, posicionarem-se contrários a este tipo de expediente, na medida em que o Estado brasileiro tem uma dívida histórica para com a população brasileira, em especial a sua parcela mais. A tese do TCSP resultaria, com certeza, em menos recursos financeiros para a educação pública. Com todo respeito a este importante órgão, tal postura vai de encontro à construção de caminhos para que o Brasil tenha uma educação de qualidade em um futuro que não seja tão longínquo, pois, afinal de contas, já passamos dos 500 anos! Não somos tão jovens! Sinceramente, os tribunais de contas ajudariam mais se as suas energias fossem canalizadas para desvelar cada vez mais os detalhes das despesas e constatar ou não se, de fato, o preceito constitucional de aplicar os recursos de receita de impostos em MDE esta sendo cumprido. E um bom começo para fazer isso seria analisar as prestações de contas do executivo, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, checando se os artigos 70 e 71 da LDB foram observados e depois conferir os pareceres dos tribunais de contas. E urgente que os tribunais de contas de todo o país entrem em um consenso, com base no preceito constitucional, do que é ou não MDE.

Fica claro então que o MDE não deve ser confundido com manutenção e desenvolvimento da educação como um todo. Só que a composição do MDE resulta do montante de impostos arrecadados, e não dos tributos. Pode-se dizer mesmo que a educação “vive” de impostos Mesmo a educação pública do Distrito Federal que é contemplada com recursos do Fundo Constitucional do Distrito Federal (FCDF) também “depende” dos impostos, em menor grau obviamente que o restante do país, mas não a ponto de “viver” sem observar o que estabelece o artigo 212 da Constituição Federal, o artigo 69 da LDB e artigo 241 da Lei Orgânica do Distrito Federal.. O fato é que imposto importa, e muito, para a educação pública.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Não há dúvida de que a vinculação constitucional de recursos financeiros para a educação é importante, já que em momentos de desvinculação o setor recebe menos verbas. No entanto, é urgente que os recursos sejam usados, de fato, para a manutenção e desenvolvimento do ensino. Para tanto, será necessário ajustes no interior das secretarias de educação, no sentido de que o uso dos recursos tenha como finalidade a garantia das aprendizagens dos estudantes, o que coloca o pedagógico como referência para as ações. É inaceitável, por exemplo, que contratos de aquisição de equipamentos e/ou de contração de serviços sejam assinados à revelia da proposta pedagógica de determinada rede de ensino e dos seus documentos pedagógicos norteadores.

Além disso, os órgãos de controle externos, em especial os tribunais de conta, precisam qualificar as suas análises sobre as prestações de contas enviadas pelos chefes dos executivos.

REFERÊNCIAS

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