GÊNESE E EVOLUÇÃO DO FIES: HEGEMONIA DO SETOR PRIVADO MERCANTILEste texto apresenta um recorte da pesquisa de doutorado (em andamento) – Governança em rede: hegemonia do capital na política de financiamento estudantil (FIES).

Resumo:Este artigo objetiva identificar os interesses e o modus operandi do segmento privado na política de financiamento estudantil do governo federal – FIES. O texto estrutura-se em três partes. Primeiramente, apresenta a gênese do FIES. Em seguida, discorre sobre as relações de força entre o governo federal e o setor privado. Por fim, discute as implicações das mudanças na legislação do programa em 2010. Metodologicamente, trata-se de uma pesquisa de natureza documental com foco em uma abordagem qualitativa e quantitativa. Os dados qualitativos são tratados pela análise de conteúdo. Os dados quantitativos são tratados à luz da estatística descritiva.

Palavras-chave: FIES; Relações de força; Implicações.


INTRODUÇÃO

As últimas décadas foram palco para o despertar da educação superior enquanto um dos segmentos com maior impacto na economia brasileira. As políticas adotadas e a demanda de alunos sem acesso à educação superior contribuíram para que as instituições de ensino superior (IES) privadas se multiplicassem em um curto período de tempo, ampliando ainda mais o seu domínio na oferta da educação em todo o território nacional. Nesse novo cenário, houve modificações que culminaram no aumento significativo da concorrência, o que forçou uma profunda mudança no modo de se pensar e tecer a governança e a política educacional, que hoje se encontra de mãos dadas com a iniciativa privada mercantil. Essas mudanças cujo mote é a democratização da educação superior, por favorecerem o acesso, também, visam ao atendimento da proposta de privatização que é amparada pelo projeto neoliberalista e validada pelo novo modelo de governança da educação superior.

O Fundo de Financiamento Estudantil (FIES), maior política do governo federal direcionada ao segmento privado, surge em 1999 no contexto descrito acima. A despeito de ter formalizado mais de 2 milhões de contratos entre 2011 e 2015, o programa enfrenta dois grandes desafios – o atendimento da, ainda, grande parcela de estudantes carentes não favorecidos e a garantia do financiamento até o final do curso. Os contratos são renovados no início dos semestres letivos (a cada seis meses). A concessão do financiamento estudantil não institui um direito absoluto, pois estão sujeitas a limitações de ordem financeira e orçamentária. Nas palavras de Duarte (2004, p. 7), “a atual concepção do FIES enquadra-o como espécie de financiamento bancário (especial), sujeitando-o às regras do mercado, no que tange à concessão e à cobrança”.

Conforme Duarte (2004), a Lei que instituiu o FIES apresenta duas finalidades: a) reduzir as desigualdades referentes ao acesso e à permanência na educação superior aos economicamente em situação desfavorecida; b) estabelecer autêntica parceria com as IES privadas, atendendo aos objetivos das instituições e do Estado. Assim, estabelece-se uma parceria benéfica a todos. O Estado atende parte parcela da população estudantil excluída. As instituições cadastradas no programa aumentam o número de alunos e diminuem o índice de evasão. E os estudantes carentes têm a oportunidade de realizar o sonho de concluir um curso universitário, todavia após 18 meses de conclusão do curso, começam a amortizar a dívida.

Dados de Brasil (2015b), apontam que, em 2013, 1.290 instituições privadas participavam do programa, entre elas encontram-se as empresas educacionais mais lucrativas do cenário contemporâneo, isto é, aquelas que têm ações na bolsa de valores – Kroton/Anhanguera, Estácio Participações, Anima Educacional/Gaec e Ser Educacional. Essas redes educacionais têm uma dependência do FIES que “varia entre 45% e 55%”, assinala Jubiloni Alguns atores do governo estão articulando a instauração de uma CPI para apurar irregularidades e fraudes na contratação do FIES (consultar JUBILONI, 2015).(2015). Observa-se que o programa vem se constituindo em uma política indutora da produção e reprodução do capital, ao promover a consolidação dos grandes grupos educacionais, inclusive do maior grupo educacional do mundo – Kroton/Anhanguera. O complexo e contraditório cenário do FIES carece de investigação.

Diante do exposto, a Teoria do Estado Ampliado de Gramsci (1988) permite compreender a governança do FIES, ou seja, a política pública para além do aparato exclusivo do Estado-Nação. “Por ‘Estado’ deve-se entender, além do aparelho de governo, também o aparelho privado de hegemonia [...] hegemonia pressupõe indubitavelmente que se deve levar em conta os interesses e as tendências dos grupos sobre os quais a hegemonia será exercida; que se forme certo equilíbrio de compromisso [...] pois se a hegemonia é ético-política também é econômica; não pode deixar de se fundamentar na função decisiva que o grupo dirigente exerce no núcleo decisivo da atividade econômica (GRAMSCI, 1988, p. 33). ou sociedade civil” (GRAMSCI, 1988, p. 147). Nessa perspectiva, o Estado passa a se organizar em uma arena de conflitos, contradições e disputas entre classes antagônicas. Destarte, este artigo objetiva identificar os interesses e o modus operandi do segmento privado na política de financiamento estudantil – FIES. O texto parte de três questionamentos. Em que contexto surge o FIES? Como o setor privado influencia na governança do FIES e como ele se organiza? Qual é o impacto das mudanças adotadas em 2010? O texto estrutura-se em três partes: a) gênese do FIES; b) relações de força entre o governo federal e o setor privado; c) implicações das mudanças na legislação do programa em 2010. Metodologicamente, trata-se de uma pesquisa de natureza documental com foco em uma abordagem qualitativa e quantitativa. Os dados qualitativos são tratados pela análise de conteúdo (BARDIN, 2010). Os dados quantitativos são tratados à luz da estatística descritiva (REIS, 2008).

GÊNESE DO FIES

A trajetória do financiamento da educação brasileira é marcada pela transferência de recursos por parte dos governos para a educação pública e pelo incentivo direto e indireto às instituições privadas, que desfrutam de isenção fiscal, pelo menos desde a Constituição Federal de 1946 (DAVIES, 2005). A partir da década de 1970, foram implantadas políticas educacionais estratégicas para a expansão da educação superior pública e privada, com o fortalecimento do último segmento. Visando à expansão das IES privadas, em 1975, o governo Ernesto Geisel (1974-1979) criou o Programa Crédito Educativo (PCE), com base na Exposição de Motivos nº 393, de 18 de agosto de 1975, apresentada pelo Ministério da Educação (MEC). O programa, implantado em 1976, designava recursos públicos diretos a essas instituições. O PCE surgiu como uma tentativa de manter a demanda ativa em relação às instituições privadas.

Até a Constituição Federal de 1988, o PCE era financiado com recursos do Fundo de Assistência Social, derivado de rendimentos da loteria. Depois, passou a receber recursos diretos do MEC, que eram administrados pela Caixa Econômica Federal (CEF).

Em 1992, por meio da Lei nº 8.436, o governo Fernando Collor (1990-1992) reformulou o PCE e institucionalizou o Programa Crédito Educativo para Estudantes Carentes (CREDUC), que ficou vigente até 1998. No ano de sua extinção, o índice de inadimplência girava em torno de 83% (BARROS, 2003). No segundo semestre de 1999, no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), o governo federal criou o FIES (Medida Provisória nº 1.827). O FIES Constituem receitas do FIES: I - dotações orçamentárias consignadas ao MEC; II – 30% da renda líquida dos concursos de prognósticos administrados pela CEF, bem como a totalidade dos recursos de premiação não procurados pelos contemplados; III – encargos e sanções contratualmente cobrados nos financiamentos concedidos ao amparo desta Lei; IV – taxas e emolumentos cobrados dos participantes dos processos de seleção para o financiamento; V – encargos e sanções contratualmente cobrados nos financiamentos concedidos no âmbito do Programa de Crédito Educativo; VI – rendimento de aplicações financeiras sobre suas disponibilidades; VII – receitas patrimoniais; e VIII – outras receitas (BRASIL, 2001). é um programa de natureza contábil, que visa ampliar o acesso e a permanência na educação superior por meio da concessão de financiamento a estudantes regularmente matriculados em IES privadas cadastradas no programa e com avaliação positiva nos processos geridos pelo MEC.

Conforme o art. 1 da Lei nº 10.260 de 2001 (BRASIL, 2001), que regulamenta o FIES, o programa é ofertado aos estudantes da educação profissional e tecnológica de nível médio (FIES Técnico) e do mestrado, mestrado profissional e doutorado, sendo observada a prioridade no atendimento aos estudantes da graduação (inclusive os bolsistas do PROUNI). Cabe ressaltar, que até o momento, apenas os estudantes da graduação estão sendo contemplados com o FIES.

O governo federal custeia as mensalidades dos estudantes, nas IES privadas, com títulos do tesouro – Certificados Financeiros do Tesouro – Série E (CFT-E), empregados para quitar tributos. O Tesouro Nacional emite os CFT-E em atendimento à solicitação do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE O FNDE, autarquia federal criada pela Lei nº 5.537, de 21 de novembro de 1968, e alterada pelo Decreto-Lei nº 872, de 15 de setembro de 1969, é responsável pela execução de políticas educacionais do MEC.). Caso o valor do certificado seja maior do que o débito com impostos, o governo recompra os títulos excedentes. Em datas especificadas pelo FNDE, as instituições optam pelo resgate dos títulos ou solicitam a recompra dos títulos excedentes pelo governo. O valor a ser pago é depositado em conta criada para tal. “Os títulos CFT-E são remunerados pelo Índice de Preços - Mercado (IGP-M), para que haja rendimento e preservação do valor recebido pelas mantenedoras” (FNDE, 2016, s./p.). O reembolso da instituição com CFT-E objetiva quitar o grande débito das IES privadas com a previdência. Em audiência pública da Comissão de Educação e Cultura da Câmera dos Deputados realizada em 30 de maio de 2007, o Secretário-Adjunto da Receita Federal do Brasil informou que o total da dívida das IES privadas girava em torno de R$ 12 bilhões, dos quais R$8,3 bilhões referiam-se a débitos previdenciários (ANDRÉS, 2008).

Desde a criação do programa, o número de contratos vem aumentando anualmente. Davies (2005) expõem que, de 1999 a 2003, o FIES havia utilizado cerca de R$ 2 bilhões de recursos públicos. Em 2004, a previsão orçamentária foi orçada em R$ 870 milhões. À época, mais de 80% dos empréstimos não eram na forma de dinheiro vivo, mas de certificados para as instituições privadas liquidarem suas dívidas junto ao INSS. De qualquer maneira, o programa representava subsídios às instituições privadas, que, sem o FIES, perderiam uma parcela de sua clientela e, portanto, sofreriam com uma maior ociosidade. Ainda no governo Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), a Medida Provisória nº 141 de 2003 abriu a possibilidade de negociação entre a CEF e os inadimplentes do antigo CREDUC. Tal negociação resultou em um desconto de cerca de R$ 2 bilhões da dívida dos inadimplentes em 2003.

Mais uma vez o prejuízo será socializado, pois o dinheiro público que financiou as mensalidades em faculdades particulares não voltará aos cofres públicos. Além disso, as IES privadas continuam sendo beneficiadas com uma série de isenções fiscais (para todas reconhecidas legalmente como sem fins lucrativos) e previdenciárias (só para as com o título legal de filantrópicas), de incentivos dados pelo governo federal e governos estaduais e pelo controle privado de órgãos como os Conselhos de Educação, responsáveis pela autorização, reconhecimento e credenciamento de cursos e instituições e que, juntamente com outros fatores, explicam a astronômica expansão do ensino superior privado nos anos 90. Tais isenções fiscais e previdenciárias totalizariam quase R$ 1 bilhão, segundo notícias veiculadas pela imprensa em 2004. Como se não bastassem todos esses privilégios, o governo federal resolveu oferecer mais um, com um verniz democratizante, com o nome de Universidade para Todos (Prouni). (DAVIES, 2005, p. 90).

No bojo das mudanças no programa em prol do segmento privado, a Portaria Normativa nº 02 de 2008 articulou a distribuição de recursos do FIES com a concessão das bolsas parciais (50%) do PROUNI. Os alunos passaram a ter a prerrogativa de custear o restante da mensalidade com a verba do programa. No governo Lula, o FIES continuou servindo aos interesses do capital, dando sequência ao projeto neoliberal de educação do governo anterior.

Com a instituição da Lei nº 12.202 de 2010 (BRASIL, 2010), foram alteradas as regras do financiamento, acarretando na formalização de contratos em massa a partir de 2011. As alterações incidiram na proposição do “Novo Fies” e estão relacionadas, em grande parte, às demandas do lobby privatista, que vê no FIES uma potencial ferramenta de captação e permanência de estudantes. No governo Dilma Vana Rousseff (2011-até o presente) verifica-se a continuidade e a intensificação das alterações no programa para solidificar a expansão do setor privado.

FORÇAS HEGEMÔNICAS – MUDANÇAS NA LEGISLAÇÃO DO FIES

Em 2010, diversas mudanças foram adotadas. O FIES passou a operar em um novo formato. O FNDE passou a ser o agente operador, até então era a CEF. Este banco, juntamente com o Banco do Brasil, passou a atuar como agente financeiro do programa. Caldas (2015), diretor executivo da Associação Brasileira das Entidades Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES), afirma que o FNDE, ao assumir o FIES como agente operador, não possuía estrutura para gerir o programa.

Ocorreram muitos gargalos operacionais e problemas na contratação do financiamento por parte dos alunos, assim como no repasse e na recompra dos CFT-E para as instituições. Diante desse contexto, em 2011, foi formado um comitê, em parceria com os representantes das instituições privadas, com a finalidade de tratar dessas questões e otimizar o processo e alavancar o programa. Com a criação do comitê, as IES privadas conseguiram atender seus anseios:

liberação do módulo de gestão (repasse detalhado das verbas); participação no programa dos cursos que ainda não passaram por avaliação (Cursos sem Conceito), a partir de ato autorizativo do MEC; o pedido de aditamento semestral passou a ser de responsabilidade da Comissão Permanente de Supervisão e Acompanhamento (CPSA A CPSA é responsável pela validação das informações e dos documentos entregues pelos estudantes no ato da inscrição, assim como dá início ao processo de aditamento de renovação dos contratos. Todas as instituições participantes do FIES têm uma CPSA.).

Frente ao exposto, depreende-se que o setor privado vem exercendo grande influência no modus operandi do programa. O Quadro 1 revela as principais mudanças que demarcam o FIES em três fases ao longo dos 17 anos de vigência.

Fonte: Brasil (2001; 2010); MEC (2014; 2015a; 2015b). Elaboração da autora.
Quadro 1: FIES – Principais Mudanças
Critérios e condições 1999 - 2009 2010 - 2014 Novo FIES 2015-2016
Agente Operador Caixa Econômica
Federal
FNDE
Agente Financeiro Caixa Econômica
Federal
Caixa Econômica Federal e Banco do Brasil
Taxas de juros anuais -Até 2005, 9%
-Entre 2006 e 2009, 3,5% (cursos prioritários) e 6,5%
3,4% para todos os cursos 6,5% para todos os cursos
Processo seletivo Processo seletivo em datas definidas pelo MEC Pela internet a qualquer momento por meio do SisFies Pela internet – FiesSeleção gerenciado pela SESU com data definida
Exigência de idoneidade cadastral Dos fiadores e do estudante Somente do fiador (a partir de 2013)
Alternativa à apresentação do fiador Não existia Fundo de Garantia de Operações de Crédito Educativo (os estudantes devem se enquadrar em alguns critérios)
Início do pagamento 6 meses após a conclusão curso 18 meses após a conclusão do curso
Prazo para amortização Até 2 vezes a duração do curso Até 3 vezes a duração do curso + 12 meses Até 3 vezes a duração do curso
Pagamento de juros durante o curso Até R$ 50 a cada 3 meses Até R$ 150 a cada 3 meses
Abatimento da dívida Não existia Profissionais do magistério público e médicos dos programas de Saúde da Família – 1% da dívida por mês trabalhado
Limitação de renda Sem limitação de renda Renda familiar mensal bruta de até 20 salários mínimos Renda familiar mensal bruta per capita de até 2,5 salários mínimos e não ter concluído curso superior
Pré-requisitos para o estudante participar Não existia Nota maior que zero na redação do Enem Mínimo de 450 pontos no Enem e nota maior que zero na redação
Conceito do curso Avaliação positiva – conceito maior ou igual a 3 Prioridade para cursos com conceito 4 ou 5 IES com CPC 5 podem ofertar até 50% das vagas; IES com CPC 4 até 40%; IES com CPC 3 até 30%; IES com apenas autorização até 25%.
Cursos prioritários Cursos de licenciatura, pegadogia, normal superior e cursos superiores de tecnologia Sem definição Cursos das áreas de saúde, de formação de professores (licenciaturas, pedagogia ou normal superior) e da área das engenharias
Regiões prioritárias Sem definição Norte, Nordeste e Centro-Oeste (exceto DF)
Distribuição das vagas Sem definição As vagas sertão distribuídas considerando o IDH de microrregiões e o número de estudantes que fizeram o ENEM nessas localidades em 2014/2015.
Níveis e modalidades de ensino contemplados Graduação e Pós-graduação (mestrado e doutorado a partir de 2007) Graduação, pós-graduação e educação profissional e tecnológica (a partir de 2011 – Fies Técnico e Fies Empresa)

Conforme o Quadro 1, em 2010, os juros passaram de 6,5% para 3,4% ao ano. Em 2015, devido ao ajuste fiscal nas contas do governo, os juros subiram para 6,5% novamente. Todavia, continuam os mais baixos do mercado. O grande pleito das IES privadas foi atendido – a criação do Fundo de Garantia de Operações de Crédito Estudantil – FGEDUC. “O MEC facilitou ainda um dos maiores obstáculos à tomada de empréstimo recambiável pelo FIES: a exigência de fiador, o qual poderá ser substituído por um fundo de recursos do próprio Governo Federal” (ANDRÉS, 2011, p. 9). A partir de 2010, os critérios “facilitadores” promoveram a formalização em massa de contratos e passaram a demandar recursos em uma ordem bilionária. Esta situação fez com que o governo federal instituísse medidas restritivas ao crescimento exponencial de contratos por intermédio das Portarias Normativas nº 21 de 2014 e nº 8 de 2015.

Até o segundo semestre de 2015, 60% dos contratos se concentravam nos estados do Sul, do Sudeste e no Distrito Federal. Dessa feita, o governo federal passou a priorizar as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste (exceto o Distrito Federal), visando à correção das desigualdades regionais. As mudanças adotadas a partir de 2015 abalaram o setor. Para Kuzuyabu (2015), a maior prova disso foi o cancelamento da transação no valor de R$ 1,14 bilhão entre a Anima Educacional e a americana Whitney University System. A operação, que envolvia a compra da Universidade Veiga de Almeida e do Centro Universitário Jorge Amado (UniJorge), foi noticiada como a maior do ano.

Ainda em 2015, quando o programa passou por reformulação, o MEC estipulou um teto máximo de 4,5% para o reajuste das mensalidades, taxa posteriormente ampliada para 6,5%. No fim do processo de renovação do contrato, a pasta abriu possibilidade de reajuste de 8%. O ministério alega que as instituições praticavam reajustes abusivos. Ao adquirir o financiamento, os estudantes só começam a pagar 18 meses após o fim da graduação. O governo, entretanto, paga as instituições durante o curso (ESTADÃO, 2016). Devido à articulação dos grupos educacionais, em 2016, a pasta não impôs limite de reajuste das mensalidades pagas com o FIES.

O setor privado ficou tão preocupado com as mudanças, que o FIES teve um espaço exclusivo para discussões e palestras na 8ª edição do Fórum dos Executivos Financeiros para as Instituições de Ensino Privadas (FinancIES) O FinancIES é uma instituição representativa formada por 1.200 executivos financeiros de todo o Brasil.. O evento foi realizado em novembro de 2015, em Brasília. Durante as discussões, foi confeccionado um documento sobre o FIES. A carta será encaminhada ao MEC e ao FNDE (EZENWABASILI, 2016).

Para o processo seletivo de 2016, o governo divulgou outros novos critérios (MEC, 2015b). Entre as mudanças desta edição, está a utilização do Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M) do local onde a instituição de ensino funciona. A oferta de vagas será feita por meio da soma de 70% do Coeficiente de Demanda por Educação Superior e de 30% do Coeficiente de Demanda por Financiamento Estudantil, aplicado o peso definido para cada microrregião e considerado as faixas de IDH-M. Em relação ao conceito dos cursos, a divisão do FIES 2016 ficará assim: 35% dos financiamentos para cursos com conceito 5 (máximo); 30% dos cursos com financiamento 4; 25% com conceito 3; e 10% dos financiamento serão liberados para cursos recém-autorizados.

IMPLICAÇÕES DAS MUDANÇAS NA LEGISLAÇÃO EM 2010

O governo federal argumenta que “as mudanças efetivadas no FIES têm como objetivo melhorar a qualidade dos cursos e contribuir para a sustentabilidade do programa, garantindo uma política pública perene de inclusão social e de democratização do ensino superior” (BRASIL, 2015c, p. 30). Os dados de Brasil (2015a) revelam que, de 2000 a 2010, o programa manteve um crescimento gradual que ficou entre 32 e 76 mil contratos formalizados anualmente. A partir de 2011, houve um crescimento vertiginoso, ou seja, insustentável, que atingiu o ápice em 2014 com 732 mil contratos. Nos 11 primeiros anos do FIES, foram realizados quase 600 mil contratos.

Gráfico 1: FIES – contratos acumulados entre 2010 e junho de 2015
Fonte: SISFIES (2015).

Verifica-se no Gráfico 1, que nos últimos 6 anos, foram firmados mais de 2 milhões. O número de contratos formalizados passou de 76 mil em 2010 para 732 mil em 2014, contabilizando um aumento de quase 1.000%. Todavia, em 2015, com o ajuste fiscal nas contas do governo federal e as mudanças para o segundo semestre de 2015, foram assinados somente 314 mil contratos (BRASIL, 2015c). Apesar dos cortes do governo na pasta da educação, no ano passado, o MEC gastou R$ 17,8 bilhões com o FIES e prevê investir mais R$ 18,7 bilhões neste ano. No 1º semestre de 2016, o governo ofertou 250.079 contratos em 1.377 IES (G1, 2016).

O número de contratos subiu 735% entre 2010 e 2013, passou de 76 mil para 559 mil. Todavia, o total de estudantes na rede privada ascendeu somente 13% no mesmo período, passou de 3,9 milhões para 4,4 milhões. Para Toledo, Saldaña e Burgareli (2015), a explicação é que muitas instituições “passaram a incentivar alunos já matriculados a não pagar a própria mensalidade, mas a entrar no Fies – que, por sua vez, repassa os valores diretamente para as instituições [...]. Enquanto as empresas têm dinheiro garantido, a dívida fica com o aluno e o risco, com o governo”. Para estimular os estudantes a contratarem o FIES, as IES utilizam diversas estratégias: distribuição de tablets, feirões para esclarecer como funciona o FIES e prêmios para quem indicar um amigo. Como mostra a Tabela abaixo, à medida que o número de contratos foi subindo ao longo dos anos, houve uma variação percentual elevada entre os recursos previstos na LOA e a execução financeira.

Fonte: Brasil (2015a). *Nota: Valores atualizados pelo IPCA por preços de 2014. Elaboração da autora.
Tabela 1: Recursos destinados ao FIES – variação percentual entre a dotação inicial (DI) na LOA e a execução financeira
Ano FIES Dotação Inicial Valores Nominais FIES Execução Financeira Valores Nominais FIES Dotação Inicial Valores Reais* FIES Execução Financeira Valores Reais* ∆% entre DI e execução financeira
2000 861.931.832,00 282.401.725,51 4.691.712.973,49 1.537.184.020,97 32,76
2001 615.639.568,00 320.555.621,04 3.112.269.277,44 1.620.518.665,35 52,07
2002 624.017.960,00 589.577.316,18 2.803.355.082,71 2.648.633.007,23 94,48
2003 709.844.423,00 579.424.337,76 2.917.589.820,67 2.381.539.524,61 81,62
2004 871.685.873,00 629.003.621,30 3.329.708.363,29 2.402.698.819,90 72,16
2005 1.063.050.000,00 552.739.919,48 3.842.085.975,21 1.997.718.162,43 52,00
2006 916.701.466,00 413.227.199,09 3.212.230.579,11 1.447.997.078,95 45,07
2007 980.262.787,00 883.564.440,67 3.288.382.889,52 2.963.999.273,48 90,13
2008 1.064.059.300,00 1.064.059.301,00 3.370.545.919,05 3.370.545.922,22 100,00
2009 1.292.404.160,00 727.740.474,00 3.924.626.873,51 2.209.920.015,42 56,35
2010 1.608.429.138,00 1.562.205.148,00 4.611.741.862,53 4.479.206.891,17 97,13
2011 1.646.961.434,00 2.662.814.410,00 4.434.012.160,93 7.168.930.147,66 161,68
2012 2.164.688.457,00 3.258.530.248,23 5.506.362.345,97 8.288.790.104,66 150,53
2013 1.644.604.823,00 5.596.506.179,43 3.949.946.162,12 13.441.464.962,03 340,29
2014 1.527.097.593,00 12.049.893.134,75 1.527.097.593,00 12.049.893.134,75 789,07

De 2000 a 2010, a execução financeira dos recursos para o FIES não ultrapassou a dotação inicial prevista na LOA. Sendo que de 2011 em diante, os recursos executados foram muitos superiores aos dotados inicialmente. Em 2014, o valor executado foi 789% maior que o previsto. Com a reformulação do FIES em 2010, um terço dos alunos das IES privadas passaram a ser custeados com a ajuda de recursos federais. Nos três primeiros anos do governo Dilma Rousseff, segundo o MEC, os empréstimos ativos do FIES ascenderam de 224.782 para 1.143.000 – ampliação de mais de 400% (MÁXIMO, 2014). Entre 2011 e 2014, o governo federal teve um gasto real superior a R$ 45 bilhões. As implicações das novas regras acarretaram na transferência em massa de recursos para os grandes grupos educacionais.

O Kroton Anhanguera, por exemplo, foi a empresa que mais recebeu pagamentos do governo federal em 2014. Doze mantenedoras do grupo receberam juntas mais de R$ 2 bilhões - o dobro do que a Embraer, que fabrica aviões militares, e a Odebrecht, responsável por dezenas de obras pelo País. Outros grupos também figuram entre os líderes de desembolsos do Tesouro em 2014, como a Estácio (R$ 683 milhões) e a Unip (R$ 390 milhões). O total a mais gasto com o Fies de 2011 a 2014 em relação ao que se gastava antes das mudanças chega a R$ 24 bilhões – o suficiente para operar uma instituição do porte da Universidade de São Paulo (USP) no período (TOLEDO; SALDAÑA; BURGARELLI, 2015, grifo nosso).

Diante do atual formato do FIES, pode-se ter uma dimensão da mercadorização, privatização e financeirização em andamento na arena da educação superior brasileira e o que esse programa representa para os demonstrativos contábeis dos grupos educacionais listados ou não na BM&FBovespa. “Segundo o professor Celso Napolitano, presidente da Federação dos Professores do Estado de São Paulo (Fepesp), a relação das instituições com o Fies é de ‘capitalismo sem risco’. ‘Elas não precisam competir por preço, não têm dificuldade de reajustar valores, não têm crise nem problema com aluno’” (TOLEDO; SALDAÑA; BURGARELLI, 2015). Com a injeção dos recursos do FIES, as IES privadas têm garantido o pagamento das mensalidades de uma grande parcela de estudantes, o que favorece a expansão desse setor.

Na rede de atores que participam do FIES, o único que não corre risco é o empresário da educação. Se o aluno não pagar o empréstimo ao governo, ficará inadimplente. Se houver inadimplência por parte do aluno, o governo aumentará o rombo fiscal e a sociedade custeará essa dívida, pois o governo terá de aumentar os impostos. Em suma, os empresários e os acionistas dos grandes grupos educacionais só têm a ganhar, uma vez que são remunerados à vista, suprimem o risco e fazem caixa em um patamar nunca visto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O FIES desponta no processo de expansão da educação superior para atender a demanda de alunos que não tinha condições de arcar com os custos da graduação e para preencher as vagas ociosas nas IES privadas. Embora o FIES seja uma política indutora do acesso à educação superior e promotora da permanência dos estudantes no sistema, o programa carece de uma investigação meticulosa. Tendo em vista que o crescimento desordenado da carteira de crédito, a partir de 2011, tornou o FIES em uma política de ampla materialidade com impacto direto nos recursos orçamentários da União para a educação.

Enquanto a educação superior pública padece com a falta de verbas – pondo em xeque o custeio das atividades de ensino, pesquisa e extensão –, os grandes grupos do setor mantêm lucros exorbitantes. Desde o início desta década, conforme matéria do ANDES-SN (2015), os tubarões do ensino impulsionaram-se pela política de educação do governo federal, que priorizou o investimento de dinheiro público na educação privada. Entre 2010 e 2014, o governo repassou mais de R$ 30 bilhões para os grandes grupos educacionais por meio do FIES. A Kroton/Anhanguera é a maior beneficiária. A governança do FIES traduz a relação de forças entre Estado e as associações representativas das IES privadas. As mudanças promovidas no programa em 2010, que o caracterizaram como “Novo FIES”, revelam a hegemonia do setor privado. As relações de poder intrínsecas ao atual modelo de governança da educação superior evidenciam a grande influência dos atores privados na condução do FIES, principalmente dos grandes conglomerados.

As mudanças restritivas divulgadas pelo governo federal no final de 2015 e início de 2016, ainda, terão muitos desdobramentos, posto que os atores privados já começaram a se articular por trás dos bastidores. A título de exemplo, neste ano, o MEC não impôs limite de reajuste das mensalidades pagas com FIES, como havia sido estabelecido em 2015.

REFERÊNCIAS

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