FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES ALFABETIZADORES E O PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO DA PROFISSÃO DOCENTE
Resumo: Este trabalho é um recorte da pesquisa de Mestrado em Educação que propõe identificar e analisar as concepções de formação continuada presentes na proposta do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC). Nesse sentido, temos investigado quais as concepções estão subjacentes a essa formação continuada, tomando a pespectiva crítico-emancipadora como elemento articulador entre teoria e prática. Para tanto, apresentamos um breve resumo da primeira etapa dessa pesquisa, que se trata da fundamentação histórico-social e as relações e interações das esferas políticas referentes à Formação Continuada de professores alfabetizadores na condição de compreender o processo de constituição da profissão docente.
Palavras-chave: profissão docente; formação continuada; práxis docente.
INTRODUÇÃO
A educação se constitui uma produção social e atua como difusora de cultura, representações e visões do mundo, de diferentes grupos sociais em cada período em que vai sendo construída como atividade humana. Compreender a educação em seus diversos enfoques permite estabelecer relações com o que foi se transformando na sociedade e com a própria estrutura educacional. Decorrente dessas transformações sociais, o tema da formação continuada de professores tem sido marcado por um grande número de iniciativas e de pesquisas, que pretendem trazer à tona ora o significado da expressão “formação continuada”, ora os limites e possibilidades da formação continuada no processo de desenvolvimento profissional.
Destacamos a necessidade de uma política global de formação e valorização dos profissionais da educação que contemple de forma articulada e prioritária a formação inicial, continuada e condições de trabalho, salários e carreira, com a concepção sócio-histórica do educador a orientá-la na constituição da profissão docente.
As condições do trabalho pedagógico na escola pública, demandam investimento público em políticas de profissionalização e formação continuada de professores, de qualidade elevada, para a educação básica, adequada às demandas contemporâneas da ciência, da cultura e do trabalho (ALARCÃO, 1996).
No entanto, as ações do Ministério da Educação (MEC) mobilizaram desde o final da década de 1990, diferentes políticas de formação continuada docente se pautando pela continuidade de programas de caráter continuado e compensatório; destinados à formação de professores alfabetizadores em exercício a distância, em cooperação com os sistemas de ensino. Situam-se, nessa perspectiva, os programas vinculados à Rede Nacional de Formação Continuada de Professores, na qual se inserem os Centros de Pesquisa e Desenvolvimento da Educação.
Destacamos o Pró-Formação (1997-2004) direcionado à formação continuada de professores de 1ª a 4ª séries do ensino fundamental; o Programa de Formação de Professores Alfabetizadores (PROFA-2001), o Pró-Infantil (2005) dirigido à formação continuada dos professores de educação infantil e o Pró-Letramento (2008-2012) desenvolvido em parceria com os sistemas de ensino e com as universidades da Rede de Formação Continuada e Desenvolvimento da Educação, constituindo-se como um programa de formação continuada de professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental centrado em alfabetização e matemática.
Recentemente, outro programa de maior abrangência relacionada à formação continuada de professores alfabetizadores foi implantado no Brasil. É o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC), um compromisso formal assumido em 05 de julho de 2012 pelo Governo Federal, do Distrito Federal, dos estados e municípios de assegurar que todas as crianças estejam alfabetizadas até os oito anos de idade, ao final do 3º ano do Ensino Fundamental; reafirmando o que propõe o plano de metas Compromisso Todos pela Educação, previsto no Decreto 6.094/2007, especificamente no tocante ao inciso II do art. 2º. Para tanto, a política está estruturada em quatro eixos: formação continuada de professores alfabetizadores; materiais didáticos e literatura; avaliação; gestão, controle e mobilização social.
Então, para compreender melhor os elementos constitutivos da formação continuada de professores alfabetizadores será necessário explorar fatos da realidade e entender sua fundamentação histórico-social; além das relações e interações das esferas sociais e políticas que articuladas à educação e à totalidade social, interferem e consolidam o processo de formação docente.
POLÍTICAS PÚBLICAS DE FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES ALFABETIZADORES
Segundo Mortatti (2011) a alfabetização escolar é um processo complexo e multifacetado que envolve ações especificamente humanas e, portanto, políticas, caracterizando-se como dever do Estado e direito constitucional do cidadão. Desde o final do século XIX pode-se constatar, em determinados momentos, a centralidade atribuída, no âmbito do que hoje determinamos políticas públicas, a um ou a alguns aspectos específicos da alfabetização.
A partir do final da década de 1970, a luta pela democratização da educação centrou-se na defesa do direito à escolarização para todos, da universalização do ensino e da maior participação da comunidade na gestão da escola. Especialmente no início da década de 1980, essas constatações indicaram a necessidade de pensar em políticas públicas, manifestando dialeticamente as relações entre teoria e ação do Estado no que se refere ao atendimento às necessidades básicas sociais, como direito do cidadão e direito dos profissionais da educação à formação continuada. Com a Declaração de Jomtien (1990), no Ano Internacional da Alfabetização e com a Declaração de Salamanca (1994) temos definições e novas abordagens sobre as necessidade básicas de aprendizagem, tendo em vista estabelecer compromissos mundiais para garantir a todas as pessoas os conhecimentos básicos necessários a uma vida digna, visando uma sociedade mais humana e mais justa.
No Brasil, o Ministério da Educação divulgou o Plano Decenal de Educação Para Todos para o período de 1993 a 2003, elaborado em cumprimento às resoluções da Conferência de Jomtien; no qual o governo brasileiro assume compromisso de garantir a satisfação das necessidades básicas de educação, cujo objetivo mais amplo é assegurar, até o ano de 2003, a crianças, jovens e adultos, conteúdos mínimos de aprendizagem que atendam a necessidades elementares da vida contemporânea. A partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBN nº. 9.394/96, são implementadas as reformas curriculares e instituído um sistema nacional de avaliação e gestão da escola, no qual o papel do professor passa a não se restringir mais ao trabalho em sala de aula; mas ampliado também para a participação na gestão da escola, elaboração de projetos educacionais, discussões e decisões acerca do currículo e avaliação institucional.
Também com a declaração pela Organização das Nações Unidas (ONU) de que o período de 2003 a 2012 seria designado à década da alfabetização, fortalecem os movimentos políticos e da academia na perspectiva de busca de inovações da alfabetização no Brasil, nos programas de formação docente e de avaliação em larga escala. Com essas mudanças, a formação continuada se tornou importante instrumento para propiciar a adequação às reformas curriculares e dar subsídios às novas demandas exigidas pelos professores.
Com a implantação das políticas públicas neoliberais no cenário da formação docente no Brasil, principalmente a partir de 1990, a tônica da formação continuada dos professores assumiu novos conceitos, ideias e valores; incluindo a responsabilização individual pela própria formação, a autoavaliação, a polivalência, flexibilidade e reflexão sobre suas práticas e sobre as práticas escolares, tudo como conjunto de habilidades e competências necessárias ao trabalho docente. Os investigadores buscam entender os problemas do cotidiano escolar como base para a criação de alternativas transformadoras, fundamentadas na abordagem do professor reflexivo/pesquisador.
Segundo Oliveira (2012) o caráter de formação compensatória, destinado a preencher lacunas da formação inicial, aliado à necessidade de garantir a implementação das reformas educativas dos anos de 1990, estimulou fortemente o desenvolvimento de programas de formação continuada em serviço. A formação passa a desenvolver-se preferencialmente no âmbito da instituição escolar, na qual o profissional exerce suas atividades, envolvendo todo o corpo docente e, por vezes, membros da equipe e da comunidade escolar. Assim, sob a coordenação do Ministério da Educação, foram intensificadas as ações de formação das secretarias municipais e estaduais, onde diversos programas, os chamados “programas oficiais” foram implantados dentro das modalidades presenciais, semipresenciais e a distância.
No início do século XXI, observamos a construção de um novo perfil do professor adequado aos novos tempos, envolvendo desde a formação inicial e continuada aos salários e condições de trabalho e a necessidade de profissionalização docente. A partir da criação da Rede Nacional de Formação Continuada de Professores da Educação Básica em 2004 pelo Ministério da Educação (MEC), com a finalidade de contribuir com a qualidade do ensino e para o desenvolvimento e oferta de programas de formação continuada; percebemos a elaboração de materiais didáticos destinados aos professores em serviço, além de ações de formação em parceria com as Instituições de Ensino Superior (IES), nas quais se inserem os Centros de Pesquisa e Desenvolvimento da Educação, e os Estados e Municípios.
A respeito desses programas de formação continuada estabelecidos pela Rede Nacional de Formação Continuada de Professores da Educação Básica destacamos:
- Pró-Formação (1997-2004): direcionado à formação continuada de professores de 1ª a 4ª séries do Ensino Fundamental e orientado pela Secretaria de Educação a Distância (SEED).
- Programa de Formação de Professores Alfabetizadores (PROFA-2001): formação continuada desenvolvida com professores alfabetizadores e orientada pela Secretaria de Educação a Distância (SEED).
- Pró-Infantil (2005): dirigido à formação continuada dos professores de Educação Infantil em nível médio, por meio de tutorias e supervisionado pelas Instituições de Ensino Superior parceiras.
- Pró-Letramento (2008-2012): desenvolvido em parceria com os sistemas de ensino e com as Universidades da Rede de Formação Continuada e Desenvolvimento da Educação, constituindo-se como um programa de formação continuada de professores dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental centrado em alfabetização e matemática.
Esses programas de formação continuada de professores, fomentados por essas parcerias com os sistemas de ensino, na maioria das vezes, resultaram em ações descontinuadas das práticas, contrapondo à ideia da formação como um processo que se realiza num movimento dialético, de idas e vindas, em que o professor se constrói e reconstrói como pessoa e como profissional, a partir de uma dinâmica que tem a ver com um processo de “vir a ser” do sujeito e não a partir de um tipo ideal de professor, que normalmente é projetado separadamente das condições objetivas de realização do trabalho docente.
O Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC) foi implantado em julho de 2012 com o objetivo principal de garantir o direito à alfabetização plena a todas as crianças até oito anos de idade, ao final do 3º ano do Ensino Fundamental; reafirmando o que propõe o plano de metas Compromisso Todos pela Educação, previsto no Decreto 6.094/2007, especificamente no tocante ao inciso II do art. 2º; ou seja, responsabilidade dos entes governamentais de “alfabetizar as crianças até, no máximo, os oito anos de idade, aferindo os resultados por exame periódico específico”. E a Meta 05 do projeto de lei que trata sobre o Plano Nacional de Educação também reforça este aspecto.
Ao aderir ao Pacto, os entes governamentais comprometem-se a: alfabetizar todas as crianças em língua portuguesa e em matemática; realizar avaliações anuais universais, aplicadas pelo INEP, junto aos concluintes do 3º ano do ensino fundamental e no caso dos estados, apoiar os municípios que tenham aderido às Ações do Pacto, para sua efetiva implantação. As Ações do Pacto são um conjunto integrado de programas, materiais e referências curriculares e pedagógicas disponibilizados pelo Ministério da Educação e que pretendem dar suporte para a alfabetização e o letramento, tendo como eixo principal a formação continuada dos professores alfabetizadores.
A Portaria do MEC esclarece no artigo 5º, que as ações do PNAIC têm por objetivos:
I ‐ garantir que todos os estudantes dos sistemas públicos de ensino estejam alfabetizados, em Língua Portuguesa e em Matemática, até o final do 3º ano do ensino fundamental; II ‐ reduzir a distorção idade‐série na Educação Básica; III ‐ melhorar o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB); IV ‐ contribuir para o aperfeiçoamento da formação dos professores alfabetizadores; V ‐ construir propostas para a definição dos direitos de aprendizagem e desenvolvimento das crianças nos três primeiros anos do ensino fundamental. (PORTARIA nº 867, Art 5º, 2012).
Todo esse sistema político de decretos, leis, portarias e acordos estabelecido pelo Governo através do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa retrata o ideário neoliberal de parceria entre o Estado e a educação. O Estado neoliberal apossa-se do processo de formação de professores, tendo em vista a importância política e a influência do mesmo no contexto social do país. Com o objetivo de assegurar a hegemonia de suas concepções o Estado neoliberal propõe uma formação de professores numa perspectiva tecnicista, tendo a técnica como definidora das relações sociais e educacionais; desconsiderando a autonomia docente no espaço pedagógico, a intencionalidade do ato educativo e a valorização do trabalho docente como princípio ontológico do homem.
Para Melo (2004) termos como empregabilidade, competitividade, eficiência, eficácia, presentes na direção de nossas políticas educacionais desde os anos 80, são mais facilmente associados ao neoliberalismo, assim como a crítica a projetos de atendimento assistencial, e políticas de privatização da educação.
Denominado de Terceira Via, esse projeto, direcionado principalmente às forças sociais de centro-esquerda que chegaram ao poder nos últimos anos do século XX; possui uma concepção de natureza técnica, de atender às necessidades humanas. Nega, assim, a centralidade da categoria “trabalho” para a constituição humana ao reduzi-la à ideia de ocupação ou emprego. Nessa perspectiva, percebemos um processo que exige a disposição da sociedade civil para trabalhar em parceria com o Estado, o incentivo para a resolução de seus próprios problemas, e até mesmo, um pacto com o objetivo principal de garantir o direito de alfabetização plena a todas as crianças até oito anos de idade.
A nova gestão pública apresenta-se, geralmente, como politicamente neutra. No campo da educação, desde os sistemas centrais até à escola, passam a ser adotadas diretrizes gerenciais na condução dos serviços educacionais. A gestão baseada nos resultados e nos indicadores de desempenho constitui-se em fator crucial da modernização da gestão educativa. Esse novo desenho de gestão das políticas públicas educacionais traz a regulação e a ação pública como elementos nos programas, estabelecendo a formulação dos mesmos no nível central e a descentralização na implantação ou execução local.
Nesse contexto, a formação continuada de professores possui um caráter compensatório, técnico e de responsabilização. O professor reflete sobre sua prática e retorna novamente à pratica, numa busca constante de tentar resolver os problemas de sua sala de aula. A formação continuada passa a ser pensada no formato escolar, trazendo, na maioria das vezes, a desvalorização dos saberes experienciais, a dissociação entre tempos e espaços de formação e trabalho e a desarticulação entre os projetos formativos das instituições de formação; integrando a formação como instrumento de gestão estratégica e de desenvolvimento organizacional.
A partir de uma análise da realidade brasileira no final do século XX e início do século XXI, é possível verificar que as relações sociais capitalistas foram mantidas, e até mesmo se intensificaram; e que consolidaram uma nova pedagogia da hegemonia política e social. Essa nova pedagogia da hegemonia materializou-se com ações efetivas na aparelhagem do Estado, configurando uma nova dimensão educativa do Estado capitalista. Sua principal característica é assegurar que o exercício da dominação de classe seja viabilizado por meio de processos educativos positivos. Surge, assim, a figura da sociedade civil e de cada cidadão como responsáveis pela mudança da política e pela definição de formas alternativas de ação social.
Organismos internacionais como o Banco Mundial (BM), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BIRD), a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), entre outros, realizaram estudos e pesquisas e fizeram diagnósticos, previsões e propostas de reorganização da educação básica e da formação de professores nos países em desenvolvimento, entre eles o Brasil, que aderiu prontamente às propostas.
A formação continuada centrou-se na reflexão dos professores sobre suas práticas e sobre as práticas escolares, tanto do ponto de vista epistemológico quanto político; numa concepção de formação em que a capacitação deverá se realizar, preferencialmente em serviço, com o mínimo de intervenções externas. Assim, a formação passa a desenvolver-se preferencialmente no âmbito da instituição escolar, na qual o profissional exerce suas atividades, envolvendo todo o corpo docente e, por vezes, membros da equipe e da comunidade escolar.
A atividade prática, portanto, passou a ser o principal eixo da formação docente, tendo como lócus central a experiência, o exercício prático. Podemos inferir que este formato se alinha com os objetivos estabelecidos pelas políticas públicas neoliberais, intensificando uma visão pragmatista da formação deste profissional. É necessário, pois, refletir acerca desta cultura constituída em torno do professor reflexivo/pesquisador no processo de formação docente, na qual cria uma falsa promessa de transformação ao propagar que o professor, refletindo sobre sua prática, melhorará suas ações pedagógicas e, consequentemente, a qualidade do ensino.
Neste sentido é que Silva (2008), ao reconhecer esta proposta de formar o prático reflexivo nos documentos legais que embasam a formação docente no Brasil, alerta “sobre o cuidado necessário ao assumir este ideário, principalmente para a profissionalização docente, uma vez que se coloca a ênfase no sucesso ou no fracasso na responsabilização do professor. Entendemos que este praticismo acaba por esvaziar a função do professor formador que, nesta ótica, teria como tarefa mediar, orientar ou apenas facilitar o conhecimento. No processo de formação, o professor não só modifica sua prática, mas recupera seu status profissional e político quando revê e fundamenta a sua própria qualificação e, em um contexto coletivo, toma decisões sobre sua prática pedagógica.
Diante disso, pensar a formação continuada de professores e a atuação docente numa perspectiva crítico-emancipadora e autônoma se faz necessário. O conhecimento e a autonomia permitem a articulação teoria e prática, ou seja, a práxis docente. A pesquisa e a reflexão da prática profissional do professor são elementos que podem articular teoria e prática mediadas pelo trabalho e pela práxis, permitindo o docente compreender a realidade em um todo (VASQUEZ, 1968). Quanto à formação dos professores nessa perspectiva, pode-se afirmar que assim como o aluno constrói o conhecimento, o mesmo acontece com o professor. Os professores devem passar por experiências de aprendizagem para confrontar suas experiências particulares, suas crenças tradicionais, seus conhecimentos sobre o desenvolvimento psicológico das crianças.
É compartilhando suas experiências com outros educadores que os professores podem questionar, refletir e construir a prática pedagógica nos moldes desenvolvimentalistas (SILVA, 2008). O professor precisa pensar sobre sua própria prática, pesquisar. A função docente é vista como exercício profissional e também humano, social. A pesquisa possibilita a práxis, unidade teoria e prática, e permite os professores ressignificarem sua atuação docente, produzindo conhecimentos sobre seu trabalho.
FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES ALFABETIZADORES E A CONSTITUIÇÃO DA PROFISSÃO DOCENTE
O contexto educacional brasileiro sofreu, nas últimas décadas, fortes influências de uma concepção de formação continuada baseada numa lógica de reciclagem, treinamento, aperfeiçoamento e atualização dos conhecimentos do professor alfabetizador, as quais se cristalizaram numa prática formativa, cuja característica repousa no seu caráter instrumental. Assim, é verdade que tais práticas primaram pelo excesso de ações formais que se estruturam em torno dos conteúdos curriculares e de novas técnicas de ensino.
Nesse contexto, partindo da necessidade de assegurar que todas as crianças estejam alfabetizadas até os oito anos de idade, ao final do 3º ano do Ensino Fundamental; o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC) estabelece uma formação continuada presencial de professores alfabetizadores e seus orientadores de estudo com encaminhamentos metodológicos de discussão sobre a alfabetização, na perspectiva do letramento, no que tange o ensino de Língua materna e da Matemática e princípios que orientam essa formação docente:
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A prática da reflexividade: pautada na ação prática/teoria/prática, operacionalizada na análise de práticas de salas de aulas, aliadas a reflexão teórica e reelaboração das práticas.
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A socialização: operacionalizada na criação e fortalecimento de grupos de estudo durante as formações que, espera-se, transcenda o momento presencial, diminuindo o isolamento profissional, intrínseco à profissão de professor.
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O engajamento: privilegiar o gosto em continuar a aprender é uma das metas primordiais da formação continuada e certamente faz parte da melhoria de atuação em qualquer profissão.
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A colaboração: para além da socialização, trata-se de um elemento fundamental no processo de formação. Por meio da colaboração, busca-se a formação de uma rede que visa ao aprendizado coletivo, por meio do qual, os professores exercitem a participação, o respeito, a propriação e o pertencimento.
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A constituição da identidade profissional: efetivada em momentos de reflexão sobre as memórias do professor enquanto sujeito de um processo mais amplo, procurando auxiliá-lo a perceber-se em constante processo de formação.
Evidencia-se, então, nessa política de formação continuada, a importância da reflexão docente, pautando-se na perspectiva da epistemologia da prática; sinalizando a necessidade da constituição da identidade profissional, mas que ainda não traz uma concepção de construção indissociável de teoria e prática na práxis. O professor alfabetizador é inserido numa política pública de formação continuada, tendo em vista a necessidade de todas as crianças estarem alfabetizadas até os oito anos de idade, ao final do Ciclo de Alfabetização; e que a reflexão sobre sua prática, aliada à troca de experiências poderá ser a solução para seus problemas em sala de aula.
Essa ideia pode contribuir para a precarização do trabalho docente, pois enfatiza a questão da reflexão presa à ação profissional entendida simplesmente como a competência do saber fazer cotidiano, apenas numa perspectiva de auto-reflexão sobre o fazer do profissional. Reafirmamos assim, a necessidade de uma concepção de formação continuada numa perspectiva crítico-emancipadora, que procura construir a indissociabilidade de teoria e prática na práxis; permitindo que através da pesquisa o professor possa ressignificar sua atuação docente, produzindo conhecimentos sobre seu trabalho.
Concebemos a formação continuada como um processo de preparação intelectual, técnica e política que pretende responder às demandas e aos desafios presentes na realidade social. O exercício da atividade docente requer uma formação intencional de caráter integral, que dê conta das tarefas do processo de ensino-aprendizagem circunscrito em contextos escolares, permeados por contradições, tensões e conflitos.
Nesse contexto, partimos do entendimento de que a formação continuada é parte constituinte do exercício profissional do professor. Ela emerge como uma necessidade do trabalho docente, por isso ela é concebida como processo permanente, contínuo, que ocorre durante toda a carreira profissional, desde a formação inicial até a formação continuada (desenvolvimento profissional). Enfim, a formação continuada é um processo histórico e inacabado, vinculado às questões da profissão docente e da educação como prática social.
Evidencia-se também a importância da formação na construção da profissão docente e para qualificar o trabalho pedagógico; possibilitando a busca, a pesquisa, a ampliação e a apropriação de novos conhecimentos. No que diz respeito à formação continuada, o que se espera e o que se deseja dela é a conjugação de aspectos teóricos-práticos, que favoreçam uma sólida formação teórica, a reflexão crítica, na valorização da escola como espaço de pesquisa e formação e na valorização dos professores como sujeitos produtores do saber.
Diante disso, pensar a pesquisa para a formação de professores e atuação docente se faz necessário, pois permite a articulação teoria e prática, ou seja, a práxis docente. A formação continuada, compreendida como possibilidade de desenvolvimento pessoal e profissional, requer a superação de práticas formativas que apresentam características eminentemente prescritivas, normativas e pontuais, desprovidas de uma reflexão crítica sobre o ato pedagógico em sua totalidade. A formação continuada de professores na perspectiva crítico-emancipadora possibilita a práxis docente, oportunizando ao professor condições para ele teorizar sobre a prática, pois, nesse processo de teorização, ele realiza um esforço cognoscitivo que o ajuda a descobrir a prática pedagógica inserida num contexto mais amplo. Por outro lado, essa apropriação da realidade, que se efetiva por meio da relação teoria-prática, propicia determinadas aprendizagens que ajudam o professor a transformar o seu objeto de trabalho.
Nesse contexto, a formação continuada assume uma ação humana emancipatória e transformadora que ocorre para a construção de novas possibilidades de ser da educação e da profissão docente. A práxis docente, o voltar na teoria a partir da prática, possibilita o conhecimento, a síntese e a crítica; e a pesquisa como forma de superar o senso comum e avançar na sistematização dele. Extrapolando a perspectiva do modelo e do senso comum, o espaço de coordenação pedagógica pode se transformar em pesquisa na tentativa de analisar alguns problemas da escola.
Segundo Silva (2008) a pesquisa é vista como uma atitude investigativa que inclui a predisposição para examinar a própria prática docente de uma forma crítica e sistemática, ou seja, a disposição questionante e a manutenção do estado de dúvida. Nessa forma de investigar a realidade, a primazia é do sujeito sobre o objeto, e é o sujeito que conhece e cria a realidade.
A formação continuada numa perspectiva crítico-emancipadora permite uma (re)construção de uma outra epistemologia, capaz de revelar o contexto criado pelas políticas públicas neoliberais na formação de professores; ou seja, uma tentativa de superar uma visão pragmatista no processo de profissionalização docente, de um retorno ao tecnicismo e de continuidade da exploração do trabalho do professor.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A formação continuada de professores, compreendida enquanto política pública de educação, prática e discurso pedagógicos, é uma ação social recente e em ascensão no Brasil. A pesquisa educacional sobre a formação de professores também possibilitou o crescente interesse pelo estudo, reflexão e relação entre a formação continuada e a constituição da profissão docente.
Segundo Santos (2010), a formação continuada ao constituir-se como uma ferramenta necessária ao processo de profissionalização do professor, é parte de um processo inacabado, de permanente elaboração e reelaboração do trabalho pedagógico. Assim, ela torna-se imperiosa, principalmente quando a ação tem como horizonte a construção de práticas educativas propositivas.
Porém, se a formação se mantém afastada da situação de trabalho, das condições pedagógicas da escola e do contexto histórico e cultural do professor, não temos uma formação docente transformadora; mas sim, uma formação que reproduz um sistema de ações que objetiva a resolução de problemas imediatos da escola, buscando sempre a hegemonia e o bem estar político e social.
Com base nessas questões e no debate acerca das concepções que orientam a formação continuada, reafirmamos a necessidade da mesma ser compreendida como uma atividade crítico-reflexiva-emancipadora e de natureza teórico-prática que concerne para o desenvolvimento pessoal e profissional do professor. A práxis transformadora, quando documentada, permite a renovação de conhecimento profissional prático; pois são, em grande medida, os projetos e as situações participativas de trabalho que proporcionam as oportunidades de formação.
A formação docente numa perspectiva crítico-emancipadora corresponde a práticas formativas que se articulam com os contextos vivenciais, pessoais, profissionais, pedagógicos, organizacionais e comunitários dos atores educativos. Os professores são considerados sujeitos e não apenas objetos da formação.
REFERÊNCIAS
ALARCÃO, Isabel. Formação reflexiva de professores: estratégias de supervisão. Lisboa: Porto Editora, 1996.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Pró-letramento: Programa de formação continuada de professores das séries iniciais do Ensino Fundamental. Formação de Professores: Fundamentos para o trabalho de tutoria – Fascículo do Tutor. Área de Alfabetização e Linguagem. Brasília: MEC/SEB, 2007.
_______. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa: formação de professores no Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa.Brasília: MEC/SEB, 2012.
_______. Portaria nº 867 de 04 de julho de 2012. Institui o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa e as ações do PACTO e define suas diretrizes gerais. DOU de 05 de julho de 2012.
MELO, Adriana Almeida Sales de Melo. A mundialização da educação. Consolidação do projeto neoliberal na América Latina – Brasil e Venezuela.Maceió: Edufal, 2004.
MORTATTI, Maria do Rosário Longo. (Org.) Alfabetização no Brasil: uma história de sua história. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2011.
SANTOS, Edlamar Oliveira dos. A Formação continuada na rede de ensino do Recife: concepções e práticas de uma política em construção. Recife: PPGE UFP, 2010.
SILVA, Kátia Augusta Curado Pinheiro Cordeiro da. Professores com formação stricto sensu e o desenvolvimento da pesquisa na educação básica da rede pública de Goiânia: realidade, entraves e possibilidades. 2008. 292f. Tese de doutorado (Programa de Pós-Graduação em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2008.
________ . A formação de professores na perspectiva crítico-emancipadora. Revista Linhas Críticas-Faculdade de Educação da UnB, v.17, nº32, 2011.
VASQUEZ, Adolfo Sanches. Filosofia da Práxis. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968.