PERSPECTIVAS PROFISSIONAIS DE ESTUDANTES DE CURSOS DE HISTÓRIA: O MAGISTÉRIO DA EDUCAÇÃO BÁSICA COMO OPÇÃO PROFISSIONAL

Resumo: O trabalho analisa expectativas profissionais de estudantes concluintes de curso de historia, em especial suas intenções de exercer o magistério da educação básica. Constitui-se em estudo de caso, desenvolvido com base nos estudos de Bourdieu sobre perspectivas “de futuro”. Procura-se apreender relações entre habitus de classe e estratégias de mobilidade social ou reprodução da posição de classe a partir da análise de discursos estudantis. Explicam-se os motivos que levam esses estudantes a escolherem curso voltado para exercício do magistério da educação básica, embora este não seja o objetivo profissional da maioria. Discutem-se ainda os efeitos dessa situação sobre a crise do magistério brasileiro.

Palavras-chave: magistério; escolhas profissionais; licenciatura


APRESENTAÇÃO

O trabalho prossegue pesquisa desenvolvida há alguns anos sobre percepções de estudantes de cursos de licenciatura Não foram objeto de nossa pesquisa os estudantes matriculados em cursos de pedagogia. relativas ao exercício do magistério da educação básica como futuro profissional. Agora, especificamente, apresentamos considerações relativas a estudantes cuja formação universitária tradicionalmente privilegia, de forma quase absoluta, a docência como atividade profissional, caso dos cursos de ciências sociais, filosofia e história.

Embora seja nosso objetivo maior analisar os processos de escolha dos três cursos mencionados, o que se segue relaciona-se somente à análise de discursos de estudantes de história sobre suas escolhas acadêmicas e perspectivas profissionais.

OS DISCURSOS SOBRE A ESCOLHA PROFISSIONAL

Independente das modalidades formais de ingresso (bacharelado ou licenciatura), o trabalho como professor da educação básica se constitui, na prática, na primeira (ou quase única) possibilidade profissional em que os graduados de história se encontram de imediato habilitados Embora tenha sido recentemente oficializada, a profissão de historiador se constitui em uma real opção profissional somente após formação acadêmica posterior à graduação (mestrado e, preferencialmente, doutorado). Portanto, de fato, exige-se a realização de novo percurso de estudos, com duração de dois a seis anos. Nesse sentido, foi de nosso interesse apreender como esses estudantes consideram esse possível caminho de inserção no mercado de trabalho, considerando, particularmente, a posição ocupada pela história como disciplinar escolar no cenário educacional brasileiro.

Buscamos registrar e compreender as motivações que levaram esses estudantes a se inserirem no curso de história e como se visualizam (ou não) na condição de professores.

Elegemos como elemento maior de pesquisa, seus discursos relativos às motivações para ingresso no curso de história e às percepções (e desejos) sobre possíveis futuros após a graduação. Mediante a análise de suas falas sobre o magistério como atividade profissional, procuramos apreender suas representações de si, entendendo que os discursos de todo agente referentes à realidade social em que estão inseridos - mesmo quando esta última não lhe afigura espacial e temporalmente imediata Sobre como as representações de tempo e espaço contribuem de forma decisiva para as representações de si dos agentes sociais, veja-se Bourdieu (2009). - se constitui em concomitantes expressões das representações que fazem, quase sempre de modo inconsciente e pouco sistemático, também de si próprios.

Mas a atenção às auto-representações formuladas não significa desconsiderar as situações em que são progressivamente elaboradas e expressas. É preciso ter em conta que a compreensão de todo discurso não pode ser realizada sem que atentemos para as condições objetivas em que são gerados, sobretudo para as posições em que aqueles que os produzem se encontram no espaço social. Porém, a preocupação com a delimitação das posições em que os agentes se encontram nos campos sociais e dos lugares, no interior desses campos, de onde proferem seus discursos, não deve, por um equívoco “objetivista”, nos levar a minimizar suas particularidades subjetivas. Particularidades que podem ser fundamentais no processo de identificação dos móveis determinantes de aparentes possíveis contradições entre seus discursos, ações e interesses.

Salientar a importância da identificação de “particularidades subjetivas” não significa reconhecer o poder determinante de dons naturais ou características inatas definidores da personalidade dos agentes sociais e de suas trajetórias, equivoco psicologizante apontado e criticado por Bourdieu Sob a ótica do subjetivismo, as aparentes contradições entre ações, discursos e interesses de um agente social são compreendidas sobrelevando o grau de autonomia da ação desse agente, minimizando os efeitos decorrentes das estruturas dos campos sociais, os quais sobre ele incidem, configurando não mecanicamente suas alternativas e possibilidades de ação. Como é sabido romper a antinomia estrutura-agente se constituiu em permanente esforço teórico de Bourdieu.. Ao contrário, ressaltamos que os discursos individuais sobre o futuro (mesmo quando manifestos sob formas extremas de aparente utopia ou de conformado fatalismo), somente são possíveis por meio de apreensão subjetiva da realidade presente.

Se os discursos são, nos modos concretos em que emergem nas interações sociais, manifestações subjetivas dos agentes sociais, a compreensão dos processos que permitem a sua produção, soe ser efetivamente possível se os entendermos como produtos simbólicos configurados em campos sociais Compreender os discursos dos agentes sociais como produtos simbólicos significa compreendê-los como instrumentos concomitantes de interpretação, classificação e também de distinção social (Bourdieu, 1988)., resultantes da complexa dialética estrutura-agente subjacente ao espaço social.

Nessa perspectiva, é possível entender discursos que, à primeira vista, apresentariam forte dubiedade e estariam eivados de contradições, por neles se identificar uma suposta incompatibilidade entre as aspirações É importante salientar que ao manifestarem determinadas aspirações os agentes sociais estão também implicitamente reconhecendo que essas são inerentes a interesses que reconhecem como sendo legitimamente seus e que podem ser realizáveis mesmo quando pouco prováveis. de seus formuladores e as ações que de fato realizam, por força de dispositivos incorporados aos seus habitus de classe ao longo de suas, mesmo quando pequenas, trajetórias de vida.

Observe-se que aparentes dubiedades sobre o futuro são mais encontráveis em discursos de agentes sociais localizados, conforme assinalado por Bourdieu, na singular posição de dominantes-dominados Veja-se Bourdieu, (1991; 1996b).. Posição que é comum à boa parte dos que desenvolvem profissionalmente atividades de caráter intelectual e que de alguma forma se inserem em regiões do campo intelectual, tendo suas posições sociais também definidas pelas relações que estabelecem em diferentes lugares desse campo.

Para o entendimento dessas dubiedades deve-se ter em conta a dimensão, em suas mais diferentes facetas, que o trabalho intelectual ganhou com a expansão territorial e o desenvolvimento do capitalismo Sobre os efeitos da expansão territorial do capitalismo nos processos de trabalho, veja-se Harvey (2011).. Processo que se fez acompanhado da elevação contínua dos contingentes que passaram a ocupar postos de trabalho “não manuais”. Elevação só possível pela força que a escolarização, cada vez mais universalizada e prolongada, ganhou como instrumento de socialização nas sociedades contemporâneas, mesmo quando isto se fez (ou se faz) sob forma de simulacro desqualificado.

Deve-se igualmente sublinhar que a ampliação e a diferenciação do “trabalho intelectual” não se encontram hoje mais direta e necessariamente correlacionadas a antigos instrumentos simbólicos de distinção social. Não produz necessariamente os anteriores efeitos de legitimação da desigualdade social, como, por exemplo, os de ordem financeira, manifestos por expressivas diferenças de poder econômico, entre os que realizavam “trabalhos intelectuais” e os “trabalhadores manuais”. Diferenças que explicitavam o consenso existente na sociedade quanto à hierarquização entre “intelectuais” e “manuais”, ou seja, a percepção de tal hierarquização como normal e natural.

As consequências da ampliação, diferenciação e verticalização do “trabalho intelectual”, pode ser perceptível entre agentes sociais - como certas camadas de frações da pequena burguesia - que, tendencialmente, reproduziam sua posição social mediante a realização de atividades intelectuais que perderam parte de sua aura de consagração, produzindo processos de empobrecimento entre os que são hoje por elas responsáveis. Por decorrência, não é incomum entre esses agentes, a presença de atitudes frente ao futuro que se assemelham às dos historicamente posicionados mais próximos do pólo dominado do campo social. Atitudes que, seguindo-se a lógica do senso comum, se classificariam como inconsequentes e irracionais; incompatíveis com o intento de concretizar “futuros racionalmente possíveis”, mais conformes às formas de capital econômico, social e cultural que esses agentes possuiriam.

As ações e os discursos dos agentes sociais sobre seus “futuros possíveis” são, de modo implícito, respectivamente, sintomas da presença de estratégias O conceito de estratégia é empregado segundo as formulações de Bourdieu (e similarmente por Elias) para a compreensão de trajetórias individuais em diversos campos sociais. Considera-se que as estratégias de um agente social se configuram sempre de maneira singular e única, dado que as experiências por ele vivenciadas em diferentes situações sociais ao longo de sua existência são também subjetivamente interpretadas de modo igualmente singular e único, embora possam ser objetivamente compreendidas com o emprego de instrumentos analíticos das ciências sociais. mais ou menos inconscientes de reprodução de suas posições sociais ou de mobilidade social e sinais significativos dos modos como esses mesmos agentes, ainda que de forma não plenamente sistemática e racional, produzem suas autopercepções de si. Constituem-se em importantes instrumentos de compreensão das determinações sociais inerentes a essas estratégias. O exame dessas estratégias se constitui em meio de apreensão das características dos campos sociais que as possibilitam, independente do grau de sucesso que possam proporcionar, isto é, se permitem ou não aos agentes sociais realizar o que consideram como seus interesses pessoais.

No caso dos estudantes de história, a análise de seus discursos sobre perspectivas profissionais deve ainda considerar aspectos concernentes às relações do campo educacional com os demais campos da sociedade brasileira. Em especial: as particularidades da condição subalterna do campo educacional entre nós Para discussão da condição subalterna do campo educacional na sociedade brasileira veja-se a análise desenvolvida em Masson (1997).; a prolongada “crise do magistério brasileiro da educação básica”, expressa, não só, porém significativamente, pelo continuo processo de empobrecimento do professorado; os efeitos decorrentes da redução do interesse pelo magistério por parte de segmentos sociais que historicamente tinham nesta atividade profissional um instrumento de reprodução de sua posição social As possibilidades de ampliação dos percursos escolares dos socialmente subalternos provocam, ao menos a princípio, o aumento de suas as chances de ingresso em áreas profissionais que, anteriormente, lhes eram inacessíveis. Todavia, a “democratização da educação escolar” pode também propiciar, inadvertidamente, a “desqualificação” de certas atividades de trabalho intelectual e de instituições formadoras dos responsáveis por essas atividades, gerando processos de reconversão de diplomas e alteração do valor simbólico de algumas certificações escolares, inclusive universitárias. e, por fim, a posição que a história, como disciplina escolar, ocupa no universo escolar, tendo em vista as hierarquizações, não oficiais, mas sempre existentes entre as disciplinas escolares, com todas as consequências sobre o trabalho docente.

Sublinhar a interveniência desses aspectos no processo de escolha de um curso, como o de história, não significa que esse processo transcorra de modo invariável para todos que por ele optam.

Ao contrário de quaisquer mecanicismos, o reconhecimento dos possíveis efeitos desses aspectos nas escolhas estudantis sinaliza para o grau de esforço que se faz necessário para a compreensão de processos de escolhas acadêmicas e profissionais. Sobretudo, se tivermos como objeto indivíduos que não seguiriam a linearidade que, à primeira vista, poder-se-ia encontrar em discursos de outros estudantes, cujas escolhas se justificariam pelo seu pertencimento de classe ou pelas posições privilegiadas que os cursos pretendidos propiciam aos seus partícipes.

De outro lado, também não encontramos nos discursos dos estudantes pesquisados relação imediata entre a opção por um curso de licenciatura (mesmo quando posterior ou concomitante ao bacharelado) e a presença de um desejo de ser professor anterior ao ingresso no ensino superior Como exposto pela literatura recente e percebido em trabalhos anteriores de nossa autoria (Masson, 2015), envolvendo estudantes de diferentes cursos de licenciatura, a opção por esses cursos não significa necessariamente uma preferência profissional pelo magistério.. Inclusive em função das modificações nos processos seletivos de ingresso em cursos de graduação dos últimos anos e por termos realizado nossa pesquisa numa instituição de prestígio acadêmico elevado, muitos dos ingressantes não tinham o curso de história como opção preferencial e sim outros, como o de direito. O relato de um entrevistado é, nesse sentido, bastante esclarecedor:

No segundo e no terceiro períodos houve grande debandada do curso. Metade foi embora, sobraram cerca de quinze ou dezoito dos quarenta e cinco que entraram comigo. (homem, bacharel, concluinte de licenciatura)

Semelhante a grande parte dos alunos de outros cursos de licenciatura que entrevistamos anteriormente, entre os estudantes de história a opção pelo magistério da educação básica era sempre mediada por considerações que procuravam justificá-la, inclusive de ordem política. A elaboração, sempre mediada por justificativas para legitimar a escolha por um curso tradicionalmente correlacionado ao exercício do magistério, indica a significativa percepção da depreciação das atividades do magistério, cada vez mais generalizada a partir de meados dos anos 1980.

Apesar de toda difusão de discursos de “valorização da profissão” As ambíguas representações do magistério na sociedade brasileira, isto é, discursos públicos de valorização da atividade docente e cada vez maiores restrições, em âmbito privado, a opção de próximos pela profissão, foram assinaladas em trabalho sob a situação do professorado brasileiro (Masson, 1997)., essa apreciação negativa foi narrada por quase todos os estudantes entrevistados, como demonstram, abaixo, trechos de suas falas:

“Quando eu falei que ia tentar para história, minha mãe reclamou... mas quando ela viu que eu estava fazendo iniciação científica e que poderia fazer um mestrado e um doutorado, ser professor universitário. Ela passou a me estimular” (homem, bacharel, cursando licenciatura e ingresso em curso de mestrado)

“Sempre teve aquela coisa dos conhecidos, vai fazer história, vai ser professora, vai morrer de fome” (mulher, concluinte do bacharelado e da licenciatura)

UNIVERSO DE ESTUDO E INSTRUMENTOS DE PESQUISA

Nosso universo de pesquisa se constituiu de estudantes de uma das principais instituições universitárias do país, situada na segunda maior região metropolitana brasileira, além de ser uma das mais antigas a oferecer cursos de historia (bacharelado e licenciatura).

Os estudantes entrevistados foram selecionados a partir de dois critérios: faixa etária (terem idade inferior a vinte e seis anos) e estarem concluindo o curso (terem cursado, no mínimo, seis períodos letivos e estarem inscritos ou concluído as denominadas disciplinas de “formação pedagógica”).

Como instrumentos de pesquisa, empregamos, além de técnicas próprias à observação participante, questionários e entrevistas semi-estruturadas.

A aplicação dos questionários objetivava coletar dados referentes a: faixa etária, sexo, trajetória escolar, profissão e escolarização dos pais e expectativas profissionais e/ou acadêmicas futuras.

As entrevistas, devidamente gravadas e autorizadas pelos entrevistados, seguiram procedimentos indicados por Bourdieu em “A Miséria do Mundo” (Bourdieu, 2003), entendendo-se que o processo de entrevista não vem a ser um simples e imediato registro de informações como ocorre em pesquisas de opinião. Para o pesquisador, a entrevista deve ser considerada como uma interação em que os participantes, concomitantemente, se observam e se interpretam mutuamente, exigindo da parte do entrevistador atenção constante às atitudes do entrevistado e recursos de técnicas etnográficas.

As entrevistas, sempre individuais, em média de trinta a quarenta minutos de duração, se desenvolveram a partir de roteiro flexível, buscando fazer com que o entrevistado expusesse aspectos de sua trajetória de vida, características de seu cotidiano familiar e experiências escolares, além de relatar e comentar as motivações que tinha o levado a escolher o curso de história, suas percepções sobre a formação universitária recebida e as expectativas de futuro profissional e seus desejos (ou não) de exercer o magistério da educação básica.

Procuramos observar atitudes dos estudantes no curso das entrevistas, seja mediante as linguagens empregadas, oral ou gestual, pois, além de indicar elementos de seus habitus de classe, elas poderiam denotar pequenas diferenças, por vezes ínfimas, quanto aos seus procedimentos em determinados espaços institucionais. Procedimentos que poderiam sinalizar para modos como esses estudantes construíam suas visões a respeito de suas trajetórias de vida, ressaltando interesses e identidades, ainda que não expressassem necessariamente maior entendimento das ações que realizavam.

Foram entrevistados dezesseis estudantes, nove mulheres e sete homens. Embora formalmente fossem matriculados em turnos distintos (diurno e noturno), dadas as características institucionais, logo após os períodos iniciais, cursaram disciplinas em diferentes horários.

CARACTERÍSTICAS DOS ENTREVISTADOS E OPÇÕES PROFISSIONAIS E ACADÊMICAS

Os estudantes entrevistados em sua maioria (dez, seis mulheres e quatro homens) integram as camadas mais baixas da pequena burguesia. Seus pais são, em geral, trabalhadores assalariados do setor de serviços, com renda mensal entre 05 a 10 salários mínimos No momento da pesquisa, isto significava rendas de aproximadamente entre quatro e dez mil reais.. Possuem escolaridade média ou superior, denotando a presença de certo capital cultural e social expresso, entre outros elementos, pelas opções de escolarização de seus filhos, ainda que isto somente venha a ser concretizado pela posse de capital econômico.

Somente cinco (três mulheres e dois homens) dos entrevistados são oriundos de famílias tipicamente proletárias, com pais exercendo atividades semi-qualificadas no setor de serviços, possuindo no máximo renda equivalente a cinco salários mínimos. Nessas famílias a maior escolaridade alcançada pelos pais é o ensino médio. Quase todas as mães possuíam o ensino fundamental completo.

Apenas uma família dos estudantes integrava a pequena burguesia tradicional (médio empresário) com renda mensal de aproximadamente 20 salários mínimos.

Proporcionalmente, a maioria dos estudantes integrantes de famílias de maior renda mensal são homens e as de menor renda são mulheres.

As mães possuem maior escolaridade que os pais na maioria das famílias de maior renda (nove mães possuíam curso superior, duas tinham diplomas de mestrado). Só quatro pais eram graduados. Esta situação se inverte nas famílias de menor renda onde os pais tinham maior escolaridade (no máximo tinham ingressado no ensino médio) que as mães.

É sintomático que a maioria (quatorze, inclusive todos os sete homens) tenha cursado o ensino fundamental em escolas particulares ou federais, denotando uma preocupação familiar com as possibilidades de ascensão social por meio de uma trajetória escolar mais bem sucedida, pois conforme visões predominantes na sociedade brasileira, as escolas particulares (ou as públicas federais) são muito superiores às municipais e estaduais. Apenas duas estudantes cursaram o ensino fundamental em escolas municipais ou estaduais.

Quase todos os entrevistados ressaltaram a realização de esforços familiares, em especial dos pais, mas também de parentes como tios e avós, para que pudessem vir a ter uma escolarização considerada no âmbito de suas famílias de melhor qualidade. Geralmente isto significou cursar o ensino fundamental em escolas particulares.

Quanto ao ensino médio, vários entrevistados relataram a preocupação com a preparação para concursos de ingresso em escolas federais ou em colégios de aplicação, mesmo quando não tiveram sucesso nos concursos em que participaram. A maioria (oito) realizou o ensino médio em escolas particulares. Vários ingressaram ou em escolas federais (quatro) ou em escolas técnicas estaduais (um), cuja qualidade do ensino se diferencia positivamente do ofertado pela maioria das escolas da rede estadual do Rio de Janeiro.

Nesse sentido, é ilustrativa a fala de um entrevistado:

Eu moro em município da baixada O entrevistado se referia à baixada fluminense, cujos municípios historicamente apresentaram dificuldades consideráveis na oferta de serviços públicos em áreas como educação, saúde, saneamento, etc. e lá sempre teve problema de escola. Meus pais me matricularam em uma escola particular perto de casa desde pequeno. Quando cheguei no último ano do ensino fundamental, fiz uma preparação para tentar entrar na FAETEC e consegui. Foi um outro mundo para mim.” (homem, concluinte do bacharelado e da licenciatura)

Somente uma estudante se transferiu de uma escola particular para uma escola estadual e outras duas, que tinham cursado o ensino fundamental em escolas municipais realizaram o ensino médio em escolas estaduais. Essas três estudantes pertenciam a famílias de mais baixa renda (de três a menos de cinco salários mínimos).

As diferenças de posse de capital econômico e de capital cultural, ao menos em sua forma objetiva escolar (certificados e diplomas de ensino), são fortemente percebidas quando analisamos as falas sobre os motivos que os levaram a escolher a graduação em história.

Conforme dito antes, para todos os entrevistados a opção as pelo curso de historia, não decorreu de uma vontade de ser professor, a qual que teria se constituído ao longo da infância ou da adolescência e sim por um “gosto pela matéria” decorrente não só, mas, sobretudo, dos efeitos produzidos por professores de história que tiveram principalmente no ensino médio. Os relatos de dois entrevistados expressa bem o impacto que as aulas de certos professores produziram na escolha do curso universitário.

 “Sempre gostei de humanas, mas sempre fui boa aluna em outras matérias, mas foi o professor de história da sexta série que me fez gostar de história. Ele passava uma ideia de processo em história que me fascinava. Quando cheguei ao ensino médio, fiz concurso para o Pedro II, CEFET e de bolsas para escolas particulares, queria ser técnica em turismo. Não passei, mas passei no Pedro II, que gostei muito e aí teve outro professor que me fez apaixonar novamente pela história e me fez querer fazer história. Um outro professor, do cursinho pré-vestibular que fiz e que eu também gostei me disse que dava para viver com o magistério. Aí, resolvi fazer história”(mulher, concluinte do bacharelado e da licenciatura, ex-estudante de escolas particular e federal)

Por que da escolha de história? Em parte porque os professores das humanas tinham maior diálogo do que os professores das exatas. As disciplinas destes eram mais respeitadas e valorizadas entre alunos e os professores do que as de humanas. Eu fazia escola técnica, mas a química já estava alijada. O magnetismo de dois professores, de literatura e história, contribuiu muito para isto, eles eram doutorandos. A dúvida era entre história e literatura, letras.” (homem, bacharel, concluinte de licenciatura, ex-estudante de escolas particular e técnica federal)

Observe-se que o fato do segundo estudante sublinhar o diálogo e também a formação mais elevada de seus professores “de humanas” sinaliza para o efeito de consagração que a titulação acadêmica pode provocar sobre determinados agentes sociais que assim, mesmo por uma via aparentemente alternativa, visualizam um trajeto profissional, que inconscientemente, reafirmaria a possibilidade de reprodução da posição de classe familiarmente herdada.

As condições objetivas de trabalho dos professores e, de modo especial, a imagem atual das escolas de ensino fundamental e médio, não somente, mas, principalmente, das redes públicas, torna secundária a opção pelo magistério como atividade profissional. Baixos salários, tensões cotidianas com alunos e seus familiares, pressões administrativas e casos de violência são causas geralmente apontadas para a recusa, de forma mais ou menos intensa, ao exercício do magistério.

A forte presença de visões negativas sobre o trabalho dos professores de educação básica torna-se responsável pelo menor interesse profissional no magistério, inversamente proporcional às aspirações de continuidade na formação acadêmica por meio de ingresso em cursos de mestrado e doutorado.

Dos dezesseis entrevistados dez pretendem cursar (ou já tinham sido aprovados) em cursos de mestrado em história ou áreas afins. Desses estudantes a maioria (seis) tem pais portadores de diplomas de curso superior e situados em camadas baixas da pequena burguesia. Somente dois estudantes têm pais operários, embora de todo o grupo pesquisado, sejam estes os pais os mais escolarizados das famílias operárias. Os estudantes, dessa forma, tentam realizar, para empregarmos expressão de Bourdieu, uma reconversão de estratégias (Bourdieu, Bolstanski, Saint-Martin, 1979), que, ao final, poderá lhes possibilitar um modus vivendi compatível com suas origens sociais ou promover desejada ascensão social.

Dois estudantes, com semelhanças da maioria dos que pretendem ingressar em mestrado apresentam como objetivo imediato à graduação em história, iniciar novo curso superior, estratégia que bem sucedida assegurará a reprodução de sua posição de classe.

Apenas quatro estudantes, em sua maioria de menor renda familiar e com pais de menor escolaridade afirmam desejar realizar cursos de atualização na área, voltados à preparação para concursos públicos. Só um desses estudantes não pertence a famílias operárias.

Quanto à inserção no magistério como opção profissional, o baixo interesse é esxplícito. Apenas um estudante, de origem operária, afirma que o magistério deverá ser sua única e principal atividade profissional. Entretanto o mesmo estudante também almeje se preparar para se candidatar a um mestrado em história, possibilidade que, se concretizada, poderá levá-lo a questionar sua preferência profissional pela docência na educação básica.

Seis estudantes (três de famílias operárias), afirmam que o magistério da educação básica será a sua principal, mas não única atividade profissional. Como todos pretendem dar continuidade à sua formação acadêmica, possivelmente para eles o magistério poderá vir a ser uma atividade temporária, exercida durante a realização de suas pós-graduações.

Sete estudantes, afirmam que o magistério será uma profissão secundária, exercida ao lado de outras. Significativamente cinco desses estudantes pertencentes a famílias pequeno-burguesas com pais portadores de diplomas de ensino superior. Entre esses estudantes encontram-se aqueles que afirmam realizar imediatamente nova graduação após a conclusão do curso de história. Em seus planos, outra graduação possibilitará o exercício de atividade profissional que, de fato, será a principal. Como o grupo anterior, esses estudantes poderão fazer do magistério uma atividade temporária, exercida enquanto outras opções profissionais não se concretizam.

Dois estudantes, já inscritos em cursos de mestrado, afirmam que não possuem nenhum interesse em atuar como professores. Só o fariam em instituições de reconhecidas melhores condições de trabalho e enquanto não ingressarem no magistério superior. Ambos pertencem a famílias de origem pequeno-burguesa de maior renda.

Frente a esses discursos, podemos afirmar que a escolha pelo curso de historia não está relacionada ao exercício do magistério como opção profissional.

O desejo pelo curso de história advém, no caso dos estudantes por nós pesquisados, de um interesse adquirido ao longo da trajetória escolar por esta área de conhecimento Devemos, observar que o grupo pesquisado era constituído por estudantes de uma instituição pública de forte prestígio social, fator que produz efeitos de seleção no processo de ingresso, que pode não existir em outras instituições. A evasão, registrado por um dos entrevistados, de boa parte de seus colegas, por estes não estarem no curso que de fato pretendiam e que iriam participar de novos processos seletivos, sinaliza para uma percepção de si desses jovens mais positiva, possibilitando a confiança em nova tentativa de inserção em curso que têm efetivo interesse. Estudantes que somente tenham obtido ingresso em instituições de menor prestígio poderão ter outros comportamentos, permanecendo matriculados em cursos que não eram os seus preferidos., tornando igualmente pouco significativas, em termos de futuro profissional, as opções por licenciatura ou bacharelado. Nos discursos dos estudantes não encontramos escolhas pautadas por maior entendimento da diferenciação – ao menos formal - entre as duas opções de curso (bacharelado e licenciatura) e suas relações com o futuro profissional Para a maioria dos estudantes dois fatores explicam a opção por uma ou outra modalidade de curso (bacharelado e licenciatura): menor grau de competição para o ingresso, situação que pode variar conjunturalmente e maior dificuldade em realizar um curso durante o dia (sempre há oferta de cursos de licenciatura à noite). .

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo em vista impossibilidade de nos estendermos em nossa análise, podemos afirmar que a escolha pelo curso de história decorreu principalmente pelo interesse por esta área de conhecimento, o que foi construído durante o período de escolarização.

O magistério ocupa uma posição secundária nas intenções profissionais desses estudantes. Para a maioria exercer o magistério é uma possibilidade sempre relacionada a condições de trabalho específicas.

Mesmo os que afirmam priorizar o magistério como atividade profissional, pretendem empreender ações que, na prática, poderão contradizer seus atuais discursos, embora essas ações possam vir a permitir a reprodução de suas posições de classe.

As falas dos estudantes denotam a presença de estratégias para a ascensão social que podem secundarizar o exercício do magistério, embora a posse de um diploma superior, mesmo de licenciatura, de uma instituição socialmente considerada de excelência se constitua em elemento importante para a concretização de suas aspirações.

Contudo, é preciso salientar que nem sempre as aspirações individuais se concretizam, mesmo quando os agentes sociais podem possuir dispositivos sociais mais aparentemente sofisticados, sobretudo em relação à posse de capital cultural. Em cenários que se avizinham, marcados por ameaças de intensificação de crises econômica e políticas, os desejos desses estudantes poderão sucumbir frente a forças que em muito ultrapassam suas capacidades de controle, seja sobre o presente, seja, em especial, o futuro. O malogro das estratégias de ascensão social da maioria dos agentes investigados poderá levá-los a assumir o magistério como atividade profissional principal, porém não como atividade desejada. Tal contradição, involuntariamente, poderá contribuir para a continuidade e intensificação da crise do magistério no Brasil.

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