POLÍTICAS DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES: DISCURSOS E CONTRARIEDADES

Resumo: O texto analisa algumas contradições inerentes às políticas de formação de professores no Brasil. A obrigatoriedade de formação de nível superior para atuar no magistério da educação básica tem provocado uma corrida às licenciaturas, empreendida por instituições de ensino e em modalidades de oferta as mais diversas, em prejuízo à qualidade dessa formação. Para argumentar nessa direção, optou-se pelo paradigma de investigação qualitativo, de natureza teórica. As fontes e os dados analisados permitiram inferir haver no país uma política de formação de professores caracterizada pela excepcionalidade, pela descontinuidade e sem o amparo de um sistema nacional minimamente articulado e orgânico de educação

Palavras-chave: Políticas de formação; modalidades de oferta; diversidade institucional


INTRODUÇÃO

A obrigatoriedade de formação de nível superior para atuar no magistério da educação básica determinada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei 9.394/1996 (BRASIL, 1996), levou à proliferação da oferta de cursos de licenciatura pelo país afora, sem a institucionalização de uma política nacional de formação de professores minimamente articulada e capaz de assegurar a qualidade dessa formação.

Uma das modalidades de oferta de cursos que mais tem crescido nos últimos anos é a do ensino a distância. Dados do Censo da Educação Superior de 2014 (INEP, 2016) revelaram que, de um total de 1.466.635 matrículas realizadas em cursos de licenciatura, 538.952 (36,74%) foram efetuadas pela modalidade a distância. Os dados revelaram ainda que 81,6% dessas matrículas ocorreram, preponderantemente, em instituições privadas de ensino superior.

A Lei nº 11.502/2007 (BRASIL, 2007a), cujo teor responsabiliza a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) pelas políticas e programas de formação inicial e continuada de professores da educação básica, somada ao Decreto nº 6.755/2009 (BRASIL, 2009), que institui a Política Nacional de Formação de Profissionais do Magistério da Educação Básica, são dúbios em suas orientações. Ao mesmo tempo em que seus dispositivos recomendam que a formação inicial de profissionais do magistério se dê, preferencialmente, pela modalidade do ensino presencial e em instituições públicas de ensino superior (Decreto nº 6.755/2009, artigos 3º e 9º), também admitem que essa mesma formação aconteça, conjugadamente, com o uso de recursos e tecnologias de educação a distância e por meio de instituições privadas (Lei nº 11.502/2007, art.1º, § 2º).

Se a preferência na formação de professores deve ser a realizada pela via do ensino presencial, como explicar, nos últimos anos, o forte crescimento das matrículas em cursos de licenciatura ofertados pela modalidade a distância? Se o atendimento às necessidades de formação de profissionais do magistério da educação básica deva ser feito, preferencialmente, por instituições públicas de educação superior, por que se permite a coexistência desproporcional dessas instituições com outras do setor privado?

Para contribuir com a discussão e com a intenção de buscar algumas respostas às indagações, optou-se por empreender um estudo de natureza qualitativa, seguindo o percurso metodológico de um estudo de perfil teórico, fundamentado em fontes bibliográfica e documental. Iniciou-se pela análise de pressupostos que, de algum modo, marcaram as reformas educacionais dos anos de 1990 e 2000, para, num segundo momento, analisar as implicações dessas reformas nas políticas de formação dos profissionais do magistério da educação básica. Por último, já com o intuito de contribuir com o debate, são apresentados alguns contrapontos às políticas de formação de professores que aí estão, analisando contradições, algumas delas presentes nos próprios textos regulatórios, outras evidenciadas pela materialidade dos números oficiais.

PRESSUPOSTOS E IMPLICAÇÕES DAS REFORMAS EDUCACIONAIS NAS POLÍTICAS DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES

As reformas educacionais processadas nos anos 1990 e 2000 trazem as marcas do neoliberalismo, consubstanciado nos documentos publicados por organismos internacionais, cujos escopos recomendam aos países periféricos a procederem a uma série de ajustes estruturais como condição para se integrarem ao novo contexto do capitalismo internacional globalizado (GOERGEN, 2010).

A estratégia adotada passava, num primeiro momento, pelos ajustes do próprio Estado, para, em momentos posteriores, estendê-las a outros setores da sociedade. A reforma implicou na suplantação do Estado do Bem Estar Social, reduzindo-o à condição de Estado Mínimo, tornando os setores tradicionalmente considerados como espaços públicos em mercados ou ‘quase mercados’. Para Barroso (2005, p. 741):

A influência das ideias neoliberais fez-se sentir quer por meio de múltiplas reformas estruturais, de dimensão e amplitude diferentes, destinadas a reduzir a intervenção do Estado na provisão e administração do serviço educativo, quer por meio de retóricas discursivas (dos políticos, dos peritos, dos meios de informação) de crítica ao serviço público estatal e de ‘encorajamento do mercado’.

Na educação, os pressupostos do neoliberalismo materializaram-se nas reformas educacionais de maior amplitude, em especial aquelas patrocinadas por organismos multilaterais, ainda nos anos 90, com implicações no campo da formulação e execução das políticas públicas do setor. (MARONEZE; LARA, 2009; BARROSO, 2005).

As reformas tiveram o aval de duas conferências promovidas pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), uma realizada em Jomtien (1990), a outra em Dakar (2000), além de número significativo de documentos publicados por organismos internacionais. Todos colocam como preocupação central a universalização da educação básica e a ampliação das oportunidades de aprendizagem como condição para alavancar o desenvolvimento social dos países periféricos. O investimento na formação e valorização dos profissionais do magistério torna-se uma questão estratégica para se alcançar tamanho desafio.

A Declaração Mundial sobre Educação para Todos (UNESCO, 1998) publicada pela Conferência de Jomtien é incisiva nessa questão ao reconhecer que os responsáveis pela educação, sozinhos, não são capazes de suprir “a totalidade dos requisitos humanos, financeiros e organizacionais necessários a essa tarefa” (Artigo 7º) e recomenda dividi-la com outros segmentos da sociedade, entre eles o setor privado. No Brasil, o Movimento Todos pela Educação representa esse pensamento.

As orientações da Conferência de Jomtien, assim como de outras conferências mundiais abriram caminhos para a formulação de políticas educacionais, contemplando questões como descentralização, piso salarial, gestão democrática, conselhos escolares, diversificação de instituições formadoras, flexibilização da oferta e abertura para a educação a distância.

É preciso atentar para o que, efetivamente, está em jogo nas recomendações esses organismos. Não se trata de atender à necessidade de se ter uma política de formação e valorização do magistério por si só, mas de adequar essa formação às novas exigências do mundo do trabalho impostas pelo capitalismo internacional. Para Maués (2009, p. 477):

O interesse desses organismos está vinculado à concepção utilitarista da educação, como instrumento que pode promover o crescimento econômico, por meio da formação de ‘capital humano’ que possa servir sobretudo aos interesses do mercado. É nessa lógica que ocorrem as reformas nos sistemas educacionais.

O interesse desses organismos está vinculado à concepção utilitarista da educação, como instrumento que pode promover o crescimento econômico, por meio da formação de ‘capital humano’ que possa servir sobretudo aos interesses do mercado. É nessa lógica que ocorrem as reformas nos sistemas educacionais.

A formação de docentes para atuar na educação básica far-se-á em nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em universidades e institutos superiores de educação, admitida, como formação mínima para o exercício do magistério na educação infantil e nas quatro primeiras séries do ensino fundamental, a oferecida em nível médio, na modalidade Normal.

Observa-se que, ao mesmo tempo em que a LDB aponta para a necessidade de formação de professores de nível superior como requisito para atuar no magistério da educação básica, possibilita, igualmente, que essa formação se dê em instituições de ensino superior de tipologias as mais diversas. Hoje, convivem num mesmo Sistema Nacional de Educação instituições de naturezas pública e privada. As instituições de natureza pública são segmentadas em públicas federais, estaduais e municipais. Por sua vez, as instituições de natureza privada são subtipificadas em comunitárias e em privadas, estas com ou sem fins lucrativos. Já no segmento das comunitárias há aquelas nomeadas como ‘confessionais’, criadas por instituições confessionais, e aquelas nomeadas como sendo ‘comunitárias’, criadas pela iniciativa de entidades da sociedade civil ou pelo poder público municipal local. Há ainda no mesmo Sistema a coexistência entre diferentes formatos institucionais, entre eles, instituições universitárias, centros universitários, faculdades, os institutos, escolas superiores e institutos federais de educação tecnológica.

Dentro desse universo de possibilidades, como fica a questão da formação dos profissionais do magistério da educação básica? Hoje, formam-se professores em todos os formatos institucionais e em todas as modalidades e regimes de oferta possíveis. Convive-se com o ensino presencial e a distância, com cursos noturnos, diurnos, em regime de férias, em regime de finais de semana, de curta duração, assim por diante.

Dourado (2008) observa que essa tem se tornado uma política naturalizada ainda na década de 1990, quando se escancarou as portas para o ensino superior privado, que viu na formação de professores oportunidade de negócio. Hoje, formam-se mais professores em instituições privadas de ensino superior do que em instituições públicas, como revelarão os números mais à frente. O setor privado, definitivamente, vem incluindo as licenciaturas em seus planejamentos como estratégia de captação de recursos, sem comprometimento com a qualidade da formação (SCHEIBE, 2010).

As reformas educacionais que adentraram aos anos 2000, por sua vez, impactaram de forma mais incisiva e positiva nas políticas de formação de professores, algumas delas protagonizadas por entidades científicas, fóruns e sociedade civil, como foram os debates que resultaram nos planos nacionais de educação, na lei que deu novas atribuições à Capes e na resolução que definiu as diretrizes curriculares nacionais para a formação de professores.

O PNE/2001-2010 instituiu a Década da Educação e estabeleceu o regime de colaboração, transferindo responsabilidades da União para Estados, Distrito Federal e Municípios, em sintonia com os princípios da descentralização e da autonomia assegurados pela LDB. Uma de suas metas contemplou, em específico, a formação e valorização do magistério da educação básica. O grande desafio colocado pelo Plano foi o de “alcançar a expansão do atendimento escolar nos diversos níveis de ensino”. Para isso, seria necessário, entre outras prioridades, “melhorar a formação acadêmica do corpo docente [...], revertendo o quadro atual predominante em boa parte das unidades escolares do país” (INEP, 2004, p. 43). O plano sugere que o sistema possa contar “[...] com um conjunto diversificado de instituições que atendam a diferentes demandas e funções” (p. 43), num claro processo de indução à flexibilidade e à diferenciação da estrutura da educação superior, incluindo as instituições formadoras.

O PNE/2001-2010 foi suplantado pelo Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), vigente no país a partir de março de 2007 (BRASIL, 2007b). O Plano apresenta um conjunto de programas e ações direcionados aos diferentes níveis e modalidades do sistema nacional de educação, contemplando mudanças que vão desde as políticas de financiamento da educação, até as políticas de formação e remuneração de professores. Ao reafirmar “o comprometimento definitivo e determinante da União com a formação de professores para os sistemas públicos de educação básica [...]” (INEP, 2007, p. 16), o PDE inaugura um conjunto de medidas traduzidas em programas e metas, duas delas incidindo nas políticas de formação de professores: a que fez da Universidade Aberta do Brasil (UAB) uma instituição formadora pela via da educação a distância; e a que responsabilizou a Capes pela educação básica. 

A UAB foi criada com a finalidade de acelerar e interiorizar a formação inicial e continuada de professores pela modalidade de educação a distância, compartilhando a tarefa com os institutos federais de educação, ciência e tecnologia e as universidades públicas federais e estaduais, em parceria com a União, Estados e Municípios (BRASIL, 2006). Na expectativa do PDE, a UAB seria “o embrião de um futuro sistema nacional público de formação de professores”, capaz de suprir as necessidades de formação em nível superior. (MEC, 2007, p. 16).

A Capes, por sua vez, para além das atribuições tradicionais relativas à Pós-Graduação, passou a subsidiar o MEC na formulação de políticas e no desenvolvimento de programas e ações de suporte à formação de professores (BRASIL, 2007a). A nova atribuição materializou-se com a publicação do Decreto nº 6.755/2009 (BRASIL, 2009), cujo teor instituiu a Política Nacional de Formação de Profissionais do Magistério da Educação Básica.

O Decreto assume a formação de professores como “compromisso público de Estado” (Art. 2ª), além de defender o princípio da “garantia de padrão de qualidade dos cursos de formação de docentes ofertados pelas instituições formadoras nas modalidades presencial e a distância” (Art. 2º). O texto entende que “o atendimento à necessidade por formação inicial de profissionais do magistério dar-se-á [...] pela ampliação das matrículas oferecidas em cursos de licenciatura e pedagogia pelas instituições públicas de educação superior [...]” (Art. 7º). E conclui que “a formação inicial de profissionais do magistério dará preferência à modalidade presencial”. 

Como se observa, tanto a lei de criação da ‘nova Capes’, como o Decreto que institucionaliza a política de formação de professores, dão preferência à formação inicial de docentes pela via do ensino presencial e por instituições públicas de ensino superior. Por outro lado, tal política tem se revelado incapaz de impedir o avanço expressivo dessa formação pela via do ensino a distância, hoje liderado por instituições privadas de ensino superior. Essa realidade levou Freitas (2007, p. 1206) a afirmar:

Aos estudantes de licenciaturas, oriundos da escola pública, são concedidas bolsas PROUNI, em instituições privadas, em cursos de qualidade nem sempre desejável, ou programas de formação nos polos municipais da Universidade Aberta do Brasil (UAB), intensificando o reforço às IES privadas, em detrimento do acolhimento massivo da juventude nas licenciaturas das instituições públicas.

Tal política é reveladora de uma desigualdade educacional historicamente sedimentada na sociedade brasileira. De um lado, estão as instituições universitárias públicas, cujos estudantes possuem melhores condições de estudar e pesquisar em cursos oferecidos, majoritariamente, pela modalidade presencial; de outro, estão as instituições privadas, em grande parte não universitárias, cujos estudantes procuram por cursos de formação oferecidos naquelas modalidades em que possam conciliar estudo e trabalho, como é o caso da educação a distância. 

O Plano Nacional de Educação 2014-20124, aprovado pela Lei nº 13.005/2014 (BRASIL, 2014), inaugura um novo tempo para as políticas de formação de professores. A meta 15, com suas estratégias, trata especificamente da formação inicial e continuada dos profissionais da educação básica. O Plano coloca-se o desafio de assegurar “[...] que todos os professores e as professoras da educação básica possuam formação específica de nível superior, obtida em curso de licenciatura na área de conhecimento em que atuam.” Para isso, propõe treze estratégias, que passam pela apresentação de diagnóstico das necessidades de formação de professores (estratégia 15.1), até a promoção de reforma curricular dos cursos de licenciatura (estratégia 15.6).

Diagnósticos têm revelado que, por conta da universalização do acesso à pré-escola, à educação fundamental e ao ensino médio, prevista em lei para 2016, será preciso formar em torno de 200 mil novos professores. E para ampliar a taxa de atendimento na creche dos atuas 16% para 50%, previsto no PNE/2014-2024, será necessário formar outros 210 mil professores. Há, portanto, necessidade de se formar em torno de 500 mil novos professores nos próximos anos (FREITAS, 2014, p. 431)

Para tamanho desafio, se faz necessário, como entende Freitas (2014, p. 432), inverter a atual lógica da predominância de vagas em cursos de licenciatura ofertados em instituições privadas de ensino superior e “expandir de forma massiva as vagas nas licenciaturas das IES públicas, fortalecendo o subsistema nacional público de formação e valorização dos profissionais da educação”. Para a autora (p. 432):

[...] essa situação poderá ser parcialmente “amenizada” pela estratégia 12.4 do PNE que indica a necessidade de ‘fomentar a oferta de educação superior pública e gratuita prioritariamente para a formação de professores e professoras para a educação básica, sobretudo nas áreas de ciências e matemática, bem como para atender ao déficit de profissionais em áreas específicas’.

Para cumprir as metas do PNE/2014-2024, a Capes, certamente, não poderá abrir mão da atual política emergencial de formação de professores, que se utiliza de programas especiais, como o Plano Nacional de Formação de Professores (Parfor). Consequentemente, o que era para ser emergencial, passa a ser política permanente, naturalizando-se uma lógica de formação que aceita tudo, inclusive a formação massiva de professores pela educação a distância, como hoje se verifica. 

Mais recentemente, o Conselho Nacional de Educação (CNE) publicou a Resolução nº 02/2015 (BRASIL, 2015), definindo as diretrizes curriculares nacionais para a formação inicial e continuada de professores. A todo instante, o texto apela para a necessidade de se constituir um Sistema Nacional de Educação, com o objetivo de conferir maior organicidade às políticas de formação e valorização dos profissionais da educação, como se lê no artigo 1º, parágrafo 1º:

Nos termos do § 1º do artigo 62 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), as instituições formadoras em articulação com os sistemas de ensino, em regime de colaboração, deverão promover, de maneira articulada, a formação inicial e continuada dos profissionais do magistério para viabilizar o atendimento às suas especificidades nas diferentes etapas e modalidades de educação básica, observando as normas específicas definidas pelo Conselho Nacional de Educação (CNE).

Para a Resolução, todas as instituições de ensino superior, independente de sua organização acadêmica, estão aptas a oferecer cursos de formação inicial e continuada de professores, desde que contemplem “[...] a articulação entre ensino, pesquisa e extensão para garantir efetivo padrão de qualidade acadêmica na formação oferecida [...]” (BRASIL, 2015, art. 4º).

Ao entrar na questão específica da formação inicial de professores, a Resolução, em seu artigo 9º, parágrafo 3º, prescreve: “A formação inicial de profissionais do magistério será ofertada, preferencialmente, de forma presencial, com elevado padrão acadêmico, científico e tecnológico e cultural” (grifo do autor). Como se observa, não há nada de novo em relação à legislação anterior.

Infere-se da análise até aqui empreendida que, apesar de as políticas vigentes recomendarem que a formação de professores se dê, prioritariamente por instituições públicas e pela modalidade de ensino presencial, paradoxalmente assiste-se à expansão acentuada de matrículas em cursos de licenciatura pela modalidade a distância e por instituições privadas de ensino superior.

Infere-se ainda que, em razão da coexistência de formatos institucionais diversos e da permissividade de oferta diversificada de cursos, a formação de professores vem se tornando ‘negócio’ abraçado por instituições privadas, que se utilizam de formatos de formação aligeirada, a distância e sem maiores compromissos com a qualidade, distante, portanto, das boas intenções das políticas educacionais (FREITAS, 2014).

CONTRAPONTOS ÀS POLÍTICAS DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES

Com a intenção de aprofundar o debate, a análise segue contrapondo as políticas de formação de professores com a materialidade dos dados apresentados pelo Censo da Educação Superior, de responsabilidade do MEC/INEP. Deseja-se explorar algumas contradições já identificadas anteriormente nos textos das políticas de formação de professores, como por exemplo, a centralidade da formação em instituições privadas e pela modalidade do ensino a distância.

Apesar de o setor público de educação superior ter registrado, nesses últimos anos, expansão significativa, é o setor privado que mais tem crescido desde os anos 90. Segundo dados do Censo da Educação Superior, o Brasil contava, em 2014, com 2.368 instituições de ensino superior, das quais 195 universidades, 147 centros universitários, 1.986 faculdades e 40 institutos federais. Das 195 universidades credenciadas, 111 eram públicas e 84 privadas, mostrando a força das instituições públicas nesse segmento institucional, contrariamente aos centros universitários, onde as instituições privadas dominam (92,5%). Já as faculdades eram, na sua grande maioria, privadas (93,15%). Ainda segundo dados do mesmo Censo, em 2014, as instituições privadas concentravam 74,5% do total das matrículas do ensino de graduação, restando 25,5% às instituições públicas.

A predominância da educação superior privada evidencia-se, igualmente, nas licenciaturas. Dados do INEP/2014 registraram 1.466.635 matrículas em cursos de pedagogia e licenciatura, representando 18,7% do total. As instituições privadas detêm 58,88% dessas matrículas, restando 41,22% às instituições públicas. Ou seja, o setor privado forma mais professores para a educação básica do que o setor público.

O mesmo fenômeno ocorre com a educação a distância. A modalidade vem apresentando-se, nesses últimos anos, como estratégia de expansão e de concorrência mercadológica sem precedentes, sobretudo junto ao setor privado de ensino superior. (GIOLLO, 2008). Em 2014, eram oferecidas 1.341.842 matrículas nessa modalidade de ensino, representando 17,14% do total das matrículas. As IES privadas detinham 89,61% dessas matrículas, restando 10,39% às IES públicas (INEP, 2016).

Os números mostram que o expansionismo da educação superior desencadeado nos anos 90 vem sendo liderado por instituições privadas, evidenciando-se a lógica privatista das políticas de regulação da educação superior. Nessa lógica, o Estado retrai-se em sua atuação, passando a exercer papel de regulador e avaliador da iniciativa privada com base em critérios do mercado (GOERGEN, 2010; DOURADO, 2008).

O predomínio do setor privado de ensino superior verifica-se, igualmente, na formação de professores. Hoje, o país forma mais professores para a educação infantil e para o ensino fundamental pela via do ensino privado do que pelo ensino público. Em 2014, o setor privado detinha 58,9% das matrículas em cursos de licenciatura, contra 41,1% do setor público (INEP, 2016).

Freitas (2007, p. 1208), ao analisar as matrículas feitas, especificamente, em cursos de pedagogia, observou que essa proporção aumenta ainda mais. De um total de 652.762 matrículas realizadas no ano de 2014, 516.509 (79,1%) foram feitas em instituições privadas de ensino superior e 136.253 (20,9%) em instituições públicas. Desse total, 332.068 (50,8%) matrículas foram realizadas em cursos de pedagogia oferecidos na modalidade a distância, das quais 90,8% por instituições privadas e 9,2% (30.329) por instituições públicas (INEP, 2016). Ou seja, formavam-se mais pedagogos pela modalidade de educação a distância e por instituições privadas do que pela modalidade presencial.

Parece não haver dúvida de que a concentração de matrículas em cursos de licenciatura ofertados por instituições privadas de ensino superior e na modalidade de ensino a distância está se naturalizando no país, contrariando as atuais políticas públicas para o setor. Assim sendo, coloca-se em jogo o protagonismo desse processo. A política foi adequada ao atribuir à Capes o papel de “induzir e fomentar a oferta de educação superior, gratuita e de qualidade, para professores em exercício na rede pública de educação básica [...]” (BRASIL, 2009). Contudo, foi dúbia ao permitir que essa oferta fosse compartilhada com instituições do ‘mercado’, abrindo brechas para cursos de formação de professores de duvidosa qualidade. De quebra, abdicou-se de um sistema nacional minimamente unificado de formação de professores, organicamente articulado a um Sistema Nacional de Educação. Para Freitas (2002, p. 148):

Todo esse processo tem se configurado como um precário processo de certificação e/ou diplomação e não qualificação e formação docente para o aprimoramento das condições do exercício profissional. A formação em serviço da imensa maioria dos professores passa a ser vista como lucrativo negócio nas mãos do setor privado e não como política pública de responsabilidade do Estado e dos poderes públicos.

Para além das preocupações apontadas, a concentração da formação de profissionais do magistério pela educação à distância gera desconforto a todos que trabalham com educação, afinal, está se falando de um modelo de formação respaldado, de algum modo, pelas políticas educacionais vigentes e as regulações delas decorrentes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os dados acima analisados revelam estar se consolidando no Brasil uma política de formação de professores assentada em planos e programas de governo emergenciais, mais preocupados em atender às necessidades de mercado do ensino do que responder a critérios de qualidade.

Apesar de a legislação ter reiteradamente recomendado que a formação inicial se dê, preferencialmente, pela modalidade presencial de ensino e prioritariamente por instituições de ensino superior públicas, observa-se que aquilo que era para ser emergencial/excepcional, passou a ser permanente, contrariando a política. Ou seja, vem naturalizou-se uma política de formação de professores pela modalidade de ensino a distância, de duração reduzida e nas mãos de instituições privadas de ensino superior.

Está-se, portanto, diante de um paradoxo: na ausência de uma ação mais efetiva por parte do Estado, a formação de profissionais do magistério da educação básica vem se dando fora do ambiente universitário, à mercê da iniciativa de faculdades privadas, em modalidades à distância, com qualidade pouco confiável, mais para atender às demandas de um mercado em expansão.

REFERÊNCIAS

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