FORMAÇÃO CONTINUADA E CURRÍCULO NA EDUCAÇÃO INFANTIL: INTERFACES ENTRE O DISCURSO LEGAL E AS PRÁTICAS LOCAIS

Resumo: Este artigo integra uma pesquisa de mestrado e objetiva discutir as contribuições da formação continuada para a implementação e a ressignificação do currículo na Educação Infantil. Toma-se como contexto de análise um Centro de Educação Infantil do município de Água Clara-MS. Na investigação qualitativa recorreu-se à pesquisa bibliográfica, na tessitura de reflexões sobre as políticas públicas nacionais voltadas para o currículo e a formação do professor da infância, tendo em vista a gestão de propostas e práticas realizadas no local da pesquisa. Concluiu-se que a formação continuada foi dimensionadora e mediadora da elaboração e da consecução de uma proposta curricular pertinente para a Educação Infantil.

Palavras-chave: Currículo; Educação Infantil; Formação de professores.


TEXTO COMPLETO

O presente artigo integra uma pesquisa de mestrado em andamento e tem como objetivo discutir possíveis contribuições do processo de formação continuada de professores para a implementação e a ressignificação do currículo na Educação Infantil. Para tanto, tomou-se como contexto de análise um Centro de Educação Infantil (CEINF) do município de Água Clara, localizado no Estado de Mato Grosso do Sul. A pesquisa em questão teve início no ano de 2015.

Nesse sentido, apresentam-se os resultados preliminares de um processo de formação continuada, no âmbito da instituição de Educação Infantil, cujos estudos, realizados na formação, culminaram na mobilização dos professores envolvidos em prol da discussão e da construção da proposta curricular a ser materializada no CEINF onde atuam.

A formação foi realizada no próprio contexto do CEINF, por meio de encontros mensais, e contou com a participação de professores, coordenadores pedagógicos e representantes da Secretaria Municipal de Educação. Nos encontros foram empreendidas reflexões teóricas sobre o currículo para a infância, tomando-se como referência os estudos de documentos oficiais nacionais que estipulam diretrizes para a Educação Infantil como, por exemplo, a proposta curricular contida no Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI), a qual pressupõe a organização dos conteúdos curriculares pela abordagem por projetos que contemplem as múltiplas linguagens. Pari passu aos estudos empreendidos na formação, consolidava-se a construção da proposta curricular adotada pelo CEINF.

A fim de se apreenderem as possíveis contribuições da formação realizada para reflexão e consecução do currículo da Educação Infantil, realizou-se a presente pesquisa qualitativa. Foram utilizados na primeira etapa desse processo a pesquisa bibliográfica e os dados empíricos observados no contexto do CEINF, lócus da citada investigação.

Ao se pautar pela realização de uma investigação de caráter qualitativo, consideraram-se os fatos sem divorciá-los do seu contexto de produção, visando com isso compreender os significados produzidos. (BOGDAN; BIKLEN, 1994).

Chizzotti (2003) aponta que a pesquisa qualitativa adota multimétodos de investigação na busca do estudo de um fenômeno situado no contexto onde ocorre, ou seja, intenciona analisar o fenômeno procurando investigar o seu sentido e interpretar os significados que os sujeitos envolvidos lhe atribuem. O termo qualitativo, nesse sentido, implica “partilha densa com pessoas, fatos e locais, que constituem objetos de pesquisa para extrair desse convívio os significados latentes que somente são perceptíveis a uma atenção sensível.” (CHIZZOTTI, 2003, p. 221). Ainda, segundo Bogdan e Biklen (1994, p. 48), os investigadores qualitativos se preocupam com o contexto, “entendem que as ações podem ser melhor compreendidas quando são observadas no seu ambiente habitual de ocorrência. Os locais têm de ser entendidos no contexto da história das instituições a que pertencem”.

Ao se retratar o processo de formação na consecução da proposta curricular pelos docentes no cotidiano do CEINF, não se perdem de vista a complexidade e as subjetividades envoltas nesse campo. Buscou-se identificar os significados subjetivos dos processos formativos desenvolvidos e das decisões pedagógicas tomadas pelos sujeitos “incluindo fatos, opiniões sobre fatos, sentimentos, planos de ação, condutas atuais ou do passado, motivos conscientes para opiniões e sentimentos.” (LAKATOS; MARCONI, 1993).

Nesse artigo, apresenta-se a primeira etapa da pesquisa. Assim, relatam-se ações desencadeadas e observadas no campo investigado, utilizando o aporte da pesquisa bibliográfica (FERREIRA, 2002). A fim de discutir contribuições científicas, realizou-se a fundamentação teórica por meio da leitura de autores que empreenderam investigações sobre o tema pesquisado: a formação continuada de professores e suas contribuições para a elaboração e a consecução do currículo para a Educação Infantil.

É sabido que a educação voltada para a criança pequena está arraigada historicamente a práticas médico-sanitaristas, assistencialistas, caritativas e filantrópicas, estabelecendo, ao longo de seu desenvolvimento, contornos educativos e pedagógicos. Desse modo, o conceito de infância e de educação voltado para essa etapa adquire diferentes conotações e objetivos, articulados com os contextos histórico, social e cultural nos quais emerge.

A Educação Infantil foi estipulada legalmente pela primeira vez no Brasil na Constituição Federal de 1988, na qual, no artigo 208, o inciso IV determina: “[...] O dever do Estado para com a educação será efetivado mediante a garantia de oferta de creches e pré-escolas às crianças de zero a seis anos de idade.” (BRASIL, 1988). Desse modo, a Educação Infantil se constituiu como “direito da criança” a partir dessa Carta Magna.

Um dos principais marcos no setor das políticas públicas voltadas para a Educação Infantil brasileira ocorreu quando, na década de 1990, essa modalidade da Educação foi reconhecida como nível de ensino na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 (LDBEN – Lei nº 9.394/96). A Lei estabelece esse segmento como primeira etapa da Educação Básica, que tem como finalidade garantir o desenvolvimento integral da criança, complementando a ação da família e da comunidade, associando ainda a questão do cuidar e do educar. (BRASIL, 1996). Atualmente, a infância é vista como uma fase que apresenta necessidades e cuidados especiais. De acordo com Kramer (2006a), o que expressa a singularidade da infância é:

[...] seu poder de imaginação, a fantasia, a criação, a brincadeira entendida como experiência de cultura. Crianças são cidadãs, pessoas detentoras de direitos, que produzem cultura e são nelas produzidas [...]. As crianças brincam, isso é o que as caracteriza [...]. (KRAMER, 2006a, p. 15).

Diante essas disposições legais, abriu-se o terreno para a discussão sobre o currículo das instituições de Educação Infantil, visando atender às necessidades e especificidades das crianças de zero a cinco anos Em 2006, a Lei 11.274 modifica a redação do artigo 32 da LDB 9.394/96 e passa a estipular o Ensino Fundamental, obrigatório, com duração de 9 (nove) anos, tendo início a partir dos 6 (seis) anos de idade. Em decorrência dessa mudança, no ano de 2013, a redação do artigo 29 é revista e especifica o atendimento da criança de até cinco anos de idade em instituições de Educação Infantil., no sentido de garantir tanto o cuidado quanto a educação dessas, visando ao seu desenvolvimento integral. Nesse sentido, a equipe do Ministério da Educação (MEC) elaborou o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil – RCNEI (BRASIL, 1998) -, com o objetivo de subsidiar a construção de propostas curriculares institucionais para a essa etapa educacional, assim como outros documentos oficiais voltados para a Educação Infantil.

Em 1999, o Conselho Nacional de Educação (CNE) instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI), as quais foram revisadas pelo CNE em 2009, por meio de um amplo processo de discussão. Tal movimento contou com a participação de diversos atores e incorporou práticas e produções científicas atualizadas sobre a Educação Infantil, e subsidiou a elaboração do Parecer CNE/CEB nº 20/2009, que orientou a elaboração das novas DCNEI (SALLES; FARIA, 2012). Segundo a Resolução nº 5, de 17 de dezembro de 2009, no artigo 2º,

As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil articulam-se com as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica e reúnem princípios, fundamentos e procedimentos definidos pela Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, para orientar as políticas públicas na área e a elaboração, planejamento, execução e avaliação de propostas pedagógicas e curriculares. (BRASIL, 2009).

Assim, essas diretrizes de caráter mandatório, além de regulamentar a elaboração de propostas pedagógicas curriculares para a educação na infância, também devem ser consultadas e incorporadas aos documentos da proposta pedagógica das instituições de Educação Infantil, já que indicam de forma mais detalhada aspectos a serem considerados e estabelecem paradigmas sobre o cuidar e o educar com qualidade.

Concomitantemente à discussão sobre o currículo da Educação Infantil, tornaram-se emergentes também estudos sobre a formação específica dos profissionais que atuam nessa etapa, observando elementos desde a formação inicial (em nível de ensino superior) à formação continuada (como prática a ser garantida pelas redes de ensino). No artigo 62, inciso 1º da LDBEN nº 9.394/96, aponta-se que “a União, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios, em regime de colaboração, deverão promover a formação inicial, a continuada e a capacitação dos profissionais de magistério.” (BRASIL, 1996, site). Tratando-se da formação continuada, foco desta investigação, esta é concebida no Referencial para a Formação de Professores como:

[...] necessidade intrínseca para os profissionais da educação escolar, e faz parte de um processo permanente de desenvolvimento profissional que deve ser assegurado a todos. A formação continuada deve propiciar atualizações, aprofundamento das temáticas educacionais e apoiar-se numa reflexão sobre a prática educativa, promovendo um processo constante de autoavaliação que oriente a construção contínua de competências profissionais. (BRASIL, 2002, site).

Destaca-se a necessidade imprescindível da formação continuada para a constituição da profissionalidade docente, acredita-se no movimento dialético dessa profissão, o que permite aos professores ao longo de sua trajetória (re)descobrir, (re)aprender e (re)construir conhecimentos, de acordo com a demanda prática pedagógica, que requer o uso de seus saberes.

No Brasil, na década de 1990, as pesquisas sobre o saber docente divulgadas por estudiosos como Nóvoa (1995), dentre outros, levantaram questionamentos a respeito dos modelos tradicionais de formação, direcionados à racionalidade técnica e à acumulação de saberes necessários à prática docente. Colocados em xeque os modelos transmissivos, os teóricos apresentaram novos desafios a pesquisas e políticas de formação docente. Contudo, houve um redirecionamento do olhar, que se voltou para a questão da identidade profissional dos docentes, seu protagonismo e compromisso com o desenvolvimento profissional, bem como para modelos de formação que contemplassem o processo de ação-reflexão-ação e o ideal do professor pesquisador de sua práxis.

As novas tendências trouxeram à tona a valorização do professor reflexivo. Enquanto tal, ele deve encontrar-se em processo contínuo de formação e autoformação, na medida em que pensa, reflete e reelabora os seus saberes iniciais em confronto com suas experiências e práticas cotidianas, utilizando esses saberes no seu contexto escolar. Dessa maneira, a tendência contemporânea de formação continuada ampara-se em um processo sistemático e organizado ancorado no processo de ação-reflexão-ação do docente, revelando contribuições para o desenvolvimento profissional, pessoal e institucional.

De acordo com Moreira, H. (2003, p. 126-127), a formação continuada deve se constituir no rompimento com modelos tradicionais e “representar capacidade de o professor entender o que acontece na sala de aula, identificando interesses simplificativos no processo ensino-aprendizagem na própria escola, valorizando e buscando o diálogo com colegas e especialistas”.

Contudo, a formação continuada deve possibilitar ao docente a construção permanente de seus “saberes-fazeres” a partir das necessidades e desafios que o ensino como prática social lhe coloca no cotidiano. Quanto a esse aspecto, Pimenta (2006, p. 39) retrata que “o trabalho docente constrói-se e transforma-se no cotidiano da vida social”. Assim, a prática pedagógica tem como início e finalidade a prática social dos sujeitos, identificando-a como fonte de conhecimentos capazes de produzir mudanças e imersa em um senso crítico aprofundado da realidade.

Desse modo, a formação dos professores deve centrar-se na reflexão na e sobre a prática pedagógica, possibilitando a esses profissionais desenvolver novas maneiras de realização do trabalho docente. Candau (1996, p. 150) aponta que a formação continuada não pode ser entendida como um “processo de acumulação” de cursos e palestras, mas “como um trabalho de reflexividade crítica sobre as práticas e de (re)construção permanente de uma identidade pessoal e profissional, em interação mútua”. A autora  afirmar que “o dia a dia na escola é um lócusde formação”, na medida em que é no cotidiano que o professor aprende e desaprende, descobre e redescobre, aprimorando a sua formação (CANDAU, 1996, p. 144).

A formação continuada centrada no ambiente escolar é uma prática referenciada por Nóvoa (1995). O autor reporta que “as situações que os professores são obrigados a enfrentar apresentam características únicas, exigindo, portanto, respostas únicas”. As práticas de formação instituídas nos espaços educativos devem tomar como referência as dimensões individuais e coletivas da profissão docente, num movimento que compreenda o compartilhamento de experiências entre pares e a autonomia de cada professor acerca “da responsabilidade do seu próprio desenvolvimento profissional.” (NÓVOA, 1995, p. 27).

Nóvoa (1995) dialoga sobre a formação continuada articulada, visando ao desenvolvimento e à produção do professor como pessoa e como profissional, e ao desenvolvimento e à produção da escola como instituição educativa geradora de inúmeras questões ligadas à educação.

Imbernón (2002, p. 18), criticando a formação continuada sob o viés somente da atualização e da reciclagem didática, científica e pedagógica, aponta que ela “se transforma na possibilidade de criar espaços de participação, reflexão e formação para que as pessoas aprendam e se adaptem para poder conviver com a mudança e com a incerteza”.

As pesquisas realizadas no campo da formação continuada na Educação Infantil apresentam importantes aspectos para melhoria das práticas pedagógicas nas escolas, e destacam a necessidade de mudanças de paradigmas e conceitos em relação à atuação com as crianças. Santos (2005) afirma que os avanços dos estudos no campo da Educação Infantil, as mudanças na legislação educacional e o reconhecimento das influências sócio-históricas e das características próprias das crianças exigem uma nova postura frente às relações com elas e à forma de educá-las. Assim, a autora ressalta a necessidade de mudanças dos profissionais que trabalham com a criança pequena: eles devem passar por uma “metamorfose” que pode ocorrer, ou não, de acordo com as condições materiais, sociais e históricas que lhes são oferecidas. A autora aponta que:

As propostas de formação contínua em serviço sistematizadas em programas com diferentes níveis de abrangência (a instituição, as redes, as secretarias) podem promover oportunidades de construção de novas práticas e mudanças em concepções. As profissionais de educação infantil inseridas em programas de formação contínua em serviço elaborados a partir de necessidade apresentadas no cotidiano podem ser impulsionadas a metamorfosear e deixar de re-por a identidade, construindo réplicas de si mesmas. O contexto e sua dinâmica podem ser ricos o suficiente para promover a problematização das concepções subjacentes às práticas na educação infantil. A responsabilidade por tal enriquecimento é individual e coletiva e recai, principalmente, sobre aqueles que assumem papéis relacionados à gestão, à definição de políticas e à formação inicial e contínua das profissionais. (SANTOS, 2005, p. 100).

Todavia, pensar na formação continuada de professores que atuam na Educação Infantil exige uma reflexão sobre o atendimento adequado voltado à necessidade das crianças, o respeito às especificidades de desenvolvimento das diferentes faixas etárias, as práticas pedagógicas que contemplem suas características e a qualidade da educação oferecida. Pensar nessa formação é, antes de tudo, pensar no sujeito docente, nas suas condições de trabalho, em um plano de carreira que valorize esse sujeito, que viabilize e garanta condições de atuação e formação profissional que qualifiquem sua prática. Esse pensar se faz necessário na medida em que o trabalho docente e a formação de professores encontram-se imbricados e interligados. Corroboramos Kramer (2006b):

A formação de profissionais da educação infantil – professores e gestores – é desafio que exige a ação conjunta das instâncias municipais, estaduais e federal. Esse desafio tem muitas facetas, necessidades e possibilidades, e atuação, tanto na formação continuada (em serviço ou em exercício, como se tem denominado a formação daqueles que já atuam como professores) quanto na formação inicial no ensino médio ou superior. (KRAMER, 2006b, s/p).

Atenta-se, assim, para o fato de, mesmo reconhecendo a importância da formação continuada para a melhoria e a sustentação da prática docente, muitos municípios não contemplam, em suas ações, iniciativas de formação continuada e, ainda, quando oferecida, muitas vezes essa formação fica reduzida a palestras, seminários, dentre outros, não levando em consideração o real contexto dos professores na Educação Infantil. Em suma, esses profissionais são encaminhados para capacitações e formações continuadas que não contemplam nas temáticas abordadas a demanda do local de trabalho, ocorrendo de forma massificada, sem impactos na prática dos professores e suas realidades.

Buscam-se as reflexões de Nóvoa (1995) para apontar a necessidade de passar a formação de professores para “dentro” da profissão, tomando como base as situações vivenciadas por eles em seus contextos, oportunizando o diálogo entre pares em sua própria instituição, na busca de soluções que venham ao encontro dos dilemas e experiências de cada equipe de ensino e sua singular realidade.

Relacionando esse pensamento ao contexto da Educação Infantil, surge a relevância de oportunizar, aos profissionais que nela atuam, espaços de avaliação e discussão entre as demais atividades desenvolvidas nas instituições, para que a formação aconteça como um processo contínuo e integrado ao cotidiano, configurada não somente como necessidade, mas como direito e condição para a oferta de uma Educação Infantil de qualidade. Kramer (2005) elucida que:

A formação é necessária não apenas para aprimorar a ação do profissional ou melhorar a prática pedagógica. A formação é direito de todos os professores, é conquista e direito da população, por uma escola pública de qualidade. Podem os processos de formação desencadear mudanças? Sim, se as práticas concretas feitas nas creches, pré-escolas e escolas e aquilo que sobre elas falam seus profissionais forem o ponto de partida para as mudanças que se pretende implementar. (KRAMER, 2005, p. 224).

A partir do exposto é que se defende a ideia de pensar a formação continuada adotando como eixo central de reflexão o cotidiano escolar, a prática pedagógica e as condições de trabalho do sujeito docente, o que implica contribuições para a melhoria na qualidade da educação ofertada, construção de propostas curriculares condizentes com a realidade específica de cada instituição, bem como o processo de construção identitário do sujeito docente.

A formação continuada relizada no contexto do CEINF no município pesquisado trouxe à tona a indissociabilidade entre a teoria e a prática, na medida em que levou os professores a revistarem e teorizarem suas práticas, ora na busca de respostas às dificuldades encontradas nas situações cotidianas que emergiam nas salas de aulas da Educação Infantil, ora simplesmente na busca de ampliar conhecimentos ainda não adquiridos. Christov (2009) esclarece que teoria e prática andam juntas e que toda ação humana é marcada por uma intenção, seja ela consciente ou inconsciente. Assim:

Construímos nossa teoria ao aprendermos a ler nossa experiência propriamente dita e experiências em geral. Construímos nossa teoria quando fazemos perguntas às experiências, aos autores; quando não nos satisfazemos com as primeiras respostas e com as aparências e começamos a nos perguntar sobre as relações, os motivos, as consequências, as dúvidas, os problemas de cada ação ou de cada contribuição teórica. A construção de nossa teoria exige que coloquemos perguntas à nossa prática. Quanto maior for nossa habilidade para ler nossa experiência, maior será nossa habilidade para compreender autores. Assim, conhecimento e experiência auxiliam nossa compreensão sobre nossa própria prática. (CHRISTOV, 2009, p. 39).

No município de Água Clara, a proposta de formação continuada no lócus do CEINF foi implementada no ano de 2015, sendo organizada por profissionais da Secretaria Municipal de Educação (SME) em parceria com a coordenadora pedagógica do CEINF. Nesse sentido, inicialmente foram realizadas reuniões no interior das instituições, contando com a participação dos professores, com o objetivo de dar voz a esses profissionais, buscando apreender as suas expectativas e inquietações, a serem contempladas pelo processo formativo.

Nesse primeiro momento foram elucidadas questões relativas aos seguintes aspectos: O que ensinar na Educação Infantil? Como organizar o tempo e o espaço na sala de aula? Quais conhecimentos e atividades devem ser priorizados? É possível trabalhar a leitura e a escrita, assim como outros conhecimentos, de forma a contemplar as necessidades de aprendizagem, sem fazer da Educação Infantil uma fase compensatória, visando somente à preparação para a entrada no Ensino Fundamental?

A partir desse diagnóstico inicial, organizou-se o cronograma de formação continuada, a qual passou a ser realizada em uma reunião mensal, contando com a participação dos professores responsáveis pelas turmas que recebiam crianças de quatro e cinco anos, da coordenadora pedagógica e da responsável da SME. Foram realizados oito encontros no decorrer de um ano.

Diante dos questionamentos e do acompanhamento realizado junto aos professores pela coordenadora pedagógica, surgiu a preocupação acerca da qualidade do atendimento oferecido às crianças que frequentavam o CEINF em Água Clara, já que se constatou que algumas práticas desenvolvidas pelos docentes não eram compatíveis com as orientações advindas dos documentos educacionais oficiais e as leis voltadas para a Educação Infantil.

No diálogo com as docentes, ficou claro que muitas, apesar de conhecerem os RCNEI (BRASIL, 1998), não empreenderam estudos aprofundados sobre a proposta apresentada por esses documentos. Perante essa constatação, priorizou-se, no processo de formação continuada, o estudo desses referenciais, por se acreditar que eles auxiliariam tanto no processo formativo, na busca de respostas para as questões colocadas pelos docentes, como para a futura construção e elaboração da proposta curricular a ser adotada no CEINF para a Educação Infantil – uma vez que era seguida, no CEINF, a proposta adivinda do governo anterior, a qual fora elaborada e enviada às instituições para ser implementada, não contando com a participação dos docentes e outros atores envolvidos no processo educacional no movimento de sua preparação.

No percurso dos encontros foram discutidos os três volumes que compõem os RCNEI, organizados da seguinte forma: Introdução, Formação Pessoal e Social e Conhecimento de Mundo. Ao findar esse primeiro ciclo da formação, os docentes decidiram adotar a organização do currículo da Educação Infantil do CEINF por meio de projetos. A organização do currículo da Educação Infantil por projetos de trabalho tem sido discutida por vários teóricos da área, bem como disposta nas orientações dos documentos oficiais do MEC, que elucidam o trabalho pedagógico com crianças nessa etapa como, por exemplo, no RCNEI (BRASIL, 1998), o qual nos diz:

Os projetos são conjuntos de atividades que trabalham com conhecimentos específicos construídos a partir de um dos eixos de trabalho que se organizam ao redor de um problema para resolver ou um produto final que se quer obter. Possuem uma duração que pode variar conforme o objetivo, o desenrolar das várias etapas, o desejo e o interesse das crianças pelo assunto tratado. Comportam uma grande dose de imprevisibilidade, podendo ser alterados sempre que necessário, tendo inclusive modificações no produto final. Por partirem sempre de questões que necessitam ser respondidas, possibilitam um contato com as práticas sociais reais. Dependem, em grande parte, dos interesses das crianças, precisam ser significativos, representar uma questão comum para todas e partir de uma indagação da realidade. É importante que os desafios apresentados sejam possíveis de serem enfrentados pelo grupo de crianças. Um dos ganhos de se trabalhar com projetos é possibilitar às crianças que a partir de um assunto relacionado com um dos eixos de trabalho, possam estabelecer múltiplas relações, ampliando suas ideias sobre um assunto específico, buscando complementações com conhecimentos pertinentes aos diferentes eixos. Esse aprendizado serve de referência para outras situações, permitindo generalizações de ordens diversas (BRASIL, 1998, p. 57).

Assim, os professores perceberam essa forma de organização curricular como uma possibilidade de implementar propostas que privilegiam a iniciativa infantil e o trabalho dirigido, com objetivo de promover o  desenvolvimento integral da criança. Compreenderam assim a proposta de projetos como uma possibilidade de ressignificação do currículo da Educação Infantil, e da própria organização do espaço e do tempo no contexto do CEINF, tranformando-o num espaço aberto a múltiplas dimensões, aprendizagens e linguagens.

Entende-se, como Salles e Faria (2012, p. 32), que o currículo da Educação Infantil se constitui num “conjunto de experiências culturais de cuidado e educação relacionadas aos saberes e conhecimentos, intencionalmente selecionadas e organizadas pelos profissionais de uma IEI, para serem vivenciadas pelas crianças, na perspectiva de sua formação humana”. Assim, o currículo é um dos elementos da proposta pedagógica, devendo, portanto, estar articulado a ela e ser norteado pelos pressupostos que a orientam.

O papel do currículo é fundamental, asseverado por Moreira, A. e Candau (2007), os quais salientam que tudo pode acontecer nas instituições, já que nele se sistematizam as intenções pedagógicas, sendo o professor um dos principais artífices na materialização do currículo nas instituições e na sala de aula. Dessa maneira, esses autores apontam a imprescindível participação dos docentes no processo de elaboração do currículo, atuando de forma crítica, criativa e democrática.

A elaboração e a ressignificação do currículo da Educação Infantil no CEINF campo desse estudo encontra-se em construção. O processo de formação continuada está se constituindo nesse sentido, como mediador e dimensionador de tal elaboração. Tendo em vista que as instituições de Educação Infantil devem se comprometer com o cuidar e o educar, é imprescindível que seus profissionais reflitam sobre seu fazer cotidiano e se tornem conscientes das experiências que estão propiciando às crianças, na perspectiva de cuidar delas e educá-las. Contudo, salienta-se que essas experiências propostas “devem ser intencionalmente selecionadas, planejadas e organizadas em um currículo.” (SALLES; FARIA, 2012, p. 79).

Em suma, os resultados preliminares da pesquisa revelam que pensar o currículo e a formação de professores que atuam na Educação Infantil exige uma reflexão sobre o atendimento adequado voltado para a necessidade das crianças, o respeito às especificidades de desenvolvimento das diferentes faixas etárias, as práticas pedagógicas que contemplem suas características e, por fim, a qualidade da educação oferecida. Esse pensar faz-se necessário na medida em que a organização curricular, a formação de professores e o trabalho docente encontram-se imbricados e interligados. Espera-se que esta pesquisa possa contribuir para a produção acadêmica sobre a formação de professores e práticas docentes na Educação Infantil, aprofundando conhecimentos, suscitando novas pesquisas e a criação e gestão de propostas de formação continuada que tenham como lócuso cotidiano escolar, já que

Apreender na cotidianidade a atividade docente supõe não perder de vista a totalidade social, pois a escola é parte constitutiva da práxis social e representa, no seu dia a dia, as contradições da sociedade na qual se localiza. Assim, um estudo da atividade docente cotidiana envolve o exame de determinações sociais mais amplas, bem como da organização do trabalho nas escolas. (PIMENTA, 2006, p. 38).

Acredita-se que a reflexão permite aos docentes rever suas ações cotidianas e redimensionar práxis, bem como propostas curriculares. Salienta-se ainda que a formação atrelada ao processo de pesquisa, na interlocução com os profissionais que têm sua vivência compartilhada “pode contribuir para formular outras compreensões para o cotidiano escolar”.  (MELLO, 2012, p. 28).  No caso da pesquisa realizada, constatou-se que nessa primeira etapa a leitura e o estudo dos RCNEI e de autores conhecidos e ainda não familiarizados pelos docentes e sujeitos envolvidos possibilitou a ampliação de seus conhecimentos, além de acrescentar novas visões pedagógicas e pessoais, o que os conduziu para a ousadia da construção da proposta pedagógica a ser implementada pelo CEINF.

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