RELATO DE EXPERIÊNCIA: ALFABETIZAÇÃO EM VALORES HUMANOS: A FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES DA EDUCAÇÃO INFANTIL, EM SERVIÇO E, A FORMAÇÃO INICIAL DE PEDAGOGOS E PSICÓLOGOS ESCOLARES.

Resumo: Uma gestora de escola de educação infantil do interior de São Paulo e uma docente de instituição de ensino superior relatam a experiência em formação de professores utilizando o programa Alfabetização em Valores Humanos (PAVH), para a melhoria das relações interpessoais em sala de aula. A experiência revela um estranhamento da relação entre desempenho social e desempenho acadêmico e a equivocada percepção dos discentes e profissionais de que o comportamento do aluno é independente do contexto. É necessário que a formação dos docentes privilegie, práticas pedagógicas para melhoria da convivência escolar, não só para os que estão ainda em formação acadêmica, mas, para os profissionais que já estão em serviço.

Palavras-chave: Gestão escolar; convivência escolar; formação de professores.


INTRODUÇÃO

A escola é o meio ideal para se trabalhar a convivência. É na escola que a criança se depara com o grande desafio de negociar os relacionamentos além das fronteiras do ambiente familiar. É ali também que ela gasta, em contato com educadores e companheiros da mesma idade, pelo menos a quarta parte do tempo que está acordada, e isso em fase de acelerado desenvolvimento psicobiológico, propício à aprendizagem da prossociabilidade (MARTURANO, 2015).

Perante os resultados do PAVH aplicado em salas de aulas e, frente às queixas escolares de conflito com alunos, uma gestora de uma escola municipal de educação infantil e uma docente de uma instituição de ensino superior se propuseram a divulgar e formar profissionais aptos a utilizarem o programa em sua prática, visando à melhoria das relações interpessoais em contexto de sala de aula.

A primeira autora, pedagoga, doutora em Ciências, na área da Psicologia, professora durante vinte anos dos primeiros anos do ensino fundamental e, há cinco anos atuando como gestora propôs um trabalho de formação em serviço utilizando os princípios do programa desenvolvido por ela, durante seu doutorado. A segunda autora, psicóloga escolar, doutora em Ciências na área de Psicologia e docente de uma instituição de ensino superior, responsável pela formação de pedagogos e psicólogos escolares, se propôs a formar os discentes de pedagogia preparando-os para desenvolverem o programa em sua prática e, a orientar futuros psicólogos para atuarem como formadores de pedagogos em serviço na educação infantil e no ensino fundamental, na aplicação do programa em sala de aula.

Assim, o relato de experiência se subdivide em três partes, na primeira a apresentação do PAVH, na sequência o relato das expositoras e finalmente a discussão sobre a experiência.

O PROGRAMA

Os estudos atuais descrevem o ambiente escolar como um lugar que, na maioria das vezes, propicia vivências com repercussões negativas para a saúde mental das crianças, assim, os conflitos interpessoais no cotidiano escolar são considerados como sendo uma das maiores causas de estresse na infância (TRIVELLATO-FERREIRA; MARTURANO, 2008; CORREIA-ZANINI; MARTURANO, 2015; CREPALDI, 2016). “A vida em comunidade é impossível sem justiça, que é a base da moralidade. Portanto, uma convivência respeitosa tem sua base na ação moral de cada indivíduo” (BORGES; MARTURANO, 2010, p. 43).

Adotamos a definição de La Taille (2006) de comportamento moral como sendo o sistema de regras e princípios que pressupõe por parte do indivíduo a legitimação do sentimento de obrigatoriedade, e que se relaciona ao bem-estar de todos os envolvidos. Apesar de os recursos que a criança possui, em termos de desempenho social, e que determinam a qualidade dos relacionamentos, serem originalmente gerados no meio familiar (DEL PRETTE; DEL PRETTE, 2005), há que se considerar que as crianças passam a maior parte do tempo dentro da comunidade escolar e, portanto, interagem na fase mais primária da formação de sua personalidade com as professoras e os colegas de sala.

Em um processo de retroalimentação, a criança, com seu comportamento, gera impressões nos seus pares ou nos adultos de sua convivência e, por sua vez sofre o feedback de suas interações, assim, intensifica-se a necessidade de desenvolver nas crianças comportamentos que favoreçam a qualidade dos relacionamentos interpessoais e que favoreçam habilidades básicas à aprendizagem acadêmica. Em suma, crianças que desenvolvem relações interpessoais adequadas, no contexto escolar, demonstram um melhor enfrentamento diante das inúmeras fontes de estresse e inadaptações que poderiam resultar em confrontos rotineiros na convivência diária e em diversas formas de violência, comprometendo, assim, a qualidade do ensino-aprendizagem (FANTE, 2005).

O assunto a respeito de “como trabalhar com a criança para que ela seja autônoma e tenha um comportamento moral, ou, se preferirem, um comportamento ético, operacionalizado através de condutas” é constantemente abordado na escola, mas, com frequência, atribuindo-se a responsabilidade da referida formação à vontade da criança e a seus familiares. Transpondo esse “ser mais moral e mais ético” para o meio escolar, isso significa que se eu trabalhar no sentido de desenvolver no meu aluno a moralidade autônoma, ele vai ser mais interessado na aprendizagem, vai ser menos disruptivo, prestar mais atenção, entre outras habilidades que são consideradas essenciais à aprendizagem e à convivência social, independente de haver uma fiscalização externa ou não.

Diante deste cenário, como quesito necessário para a aquisição do grau de doutorado à primeira autora, foi realizado o estudo Convivência em sala de aula: uma proposta de intervenção na 1ª série do ensino fundamental, que teve seu desdobramento no livro Alfabetização em Valores Humanos: Um método para o ensino de habilidades sociais, de Dâmaris Simon Camelo Borges e Edna Maria Marturano, publicado pela editora Summus, em 2012. Esses trabalhos descrevem um programa de intervenção, com o foco voltado para a alfabetização em valores humanos aplicado a uma sala de aula do início do ensino fundamental, com o objetivo de melhorar as relações interpessoais, permitindo assim, um clima agradável de convivência favorável à aprendizagem.

O programa é formado por três módulos: (a) o currículo "Eu Posso Resolver Problemas" (EPRP) (SHURE, 2006), que desenvolve habilidades de solução de problemas interpessoais visando à flexibilização cognitiva, tem como referência o “saber fazer”; (b) um módulo de iniciação aos valores humanos, que visa ampliar o repertório de respostas e a motivação prossocial dos alunos, relacionado ao “saber fazer”; (FREY; NOLEN; EDSTROM; HIRSCHSTEIN, 2005); (c) um módulo de autocontrole, que visa à autorregulação de emoções negativas, o “poder fazer” (FORMAN, 1993).

No módulo em que se trabalha o "saber fazer", a estratégia é oportunizar conflitos cognitivos referentes a problemas interpessoais, de modo a estimular: (a) a reversibilidade e a descentração do pensamento; (b) a superação da orientação para a punição e obediência, na direção de uma crescente compreensão da reciprocidade nas relações humanas (BORGES; MARTURANO, 2002; SHURE, 2006).

O módulo em que se trabalha a motivação prossocial - o "querer fazer" - utiliza como pressuposto que os sentimentos constitutivos do senso moral vão sendo modelados nas relações sociais com adultos significativos e outras crianças: amor e medo, confiança, simpatia, culpa, indignação (LA TAILLE, 2006). A estratégia básica consiste em trabalhar tais sentimentos, bem como as emoções mais básicas no ser humano, a partir da literatura infantil, estendendo sua aplicação a situações cotidianas (MONKEVICIENÉ; MISHARA; DUFOUR, 2006) (TEGLASI; ROTHMAN, 2001).

No módulo de autocontrole, o foco é a capacidade do indivíduo para regular as emoções negativas. Para trabalhar a autorregulação das emoções - o "poder fazer" - considera-se que a capacidade para regular emoções fortes e desagradáveis está presente em crianças da faixa etária correspondente ao primeiro ano do ensino fundamental (DIAS; VIKAN; GRAVAS, 2000) e é sensível a práticas de socialização (SHURE, 2006). A autorregulação é exercitada por meio de técnicas de relaxamento e recolhimento voluntário diante da iminência da perda do controle (FORMAN, 1993) (LIPP, 2000).

De acordo com os resultados dos estudos da primeira autora, as crianças que passaram pela intervenção ampliaram suas habilidades de solução de problemas interpessoais, diminuíram a participação em conflitos interpessoais abertos ao longo do ano letivo, reduziram comportamentos incompatíveis com as atividades escolares e melhoraram o desempenho prossocial. As mudanças comportamentais verificaram-se para todas as crianças, porém, foram mais pronunciadas nas crianças inicialmente mais disruptivas. A intervenção também mostrou efeitos mais pronunciados que quando simplesmente se ensina o EPRP.

Em relação aos colegas que não passaram por intervenção, as crianças mostraram, após o programa, maior preparo para o enfrentamento do estresse. Elas também passaram a perceber os companheiros como mais solidários, ou seja, ampliou-se a rede de apoio entre colegas. Os benefícios da experiência, aparentemente, generalizaram-se para aspectos não diretamente trabalhados, como o envolvimento nas atividades acadêmicas (BORGES, 2007) (BORGES; MARTURANO, 2009) (BORGES; MARTURANO, 2012).

RELATO DA EXPERIÊNCIA DE APLICAÇÃO DO PROGRAMA

Na formação continuada de professores de uma escola de educação infantil, de um município do interior do Estado de São Paulo

A primeira autora percebeu ao longo do tempo que os mesmos problemas comportamentais e de relacionamento surgidos no ensino fundamental surgem na educação infantil, gerando inúmeros problemas dentro da unidade.

Tendo inúmeras restrições estruturais para organizar um treinamento modular, o referido programa foi apresentado e oferecido em reuniões pedagógicas às professoras da unidade, como um treinamento para lidarem com as crianças de uma maneira mais pontual, mais técnica e menos baseada no senso-comum. Ninguém se interessou.

Ao longo do tempo, à medida que os problemas com as crianças de relacionamento mais difícil foram se acentuando, a gestora começou a perceber oportunidades de intervenção que seriam passíveis de gerarem resultados mais imediatos e assim, despertar o interesse das professoras para as técnicas de intervenção.

Ao longo de quatro anos, foram muitas as oportunidades e lentamente, com o surgimento dos resultados, as professoras passaram a se interessar, tornando proveitoso esse período de sensibilização.

Inicialmente, orientações foram fornecidas às professoras que demonstravam interesse, sempre diante das outras professoras que, percebendo que o clima da sala de aula alvo da intervenção tornava-se melhor, passaram a se interessar pelos diálogos em torno das técnicas utilizadas. Esses diálogos aconteciam preferencialmente na sala das professoras que fica sempre aberta a todo corpo docente da unidade, justamente com o objetivo de despertar interesse.

Posteriormente, ao observar que já havia um número razoável de professoras interessadas em conversar sobre as técnicas de intervenção, as orientações passaram a ser dadas, não só diante do surgimento das necessidades diárias específicas, mas em reuniões pedagógicas e de organização, que são periódicas e reúnem praticamente, todo o corpo docente.

Assim, segue abaixo, uma breve descrição do caminho de orientações percorrido ao longo dos quatro anos e que foi se delineando à medida que foram surgindo as necessidades e não de acordo com a linearidade sugerida nos módulos do programa. Ressalta-se que nunca houve uma imposição de trabalhar com a metodologia, mas, existe uma sensibilização e uma motivação constante para que todas possam aderir, para sermos coerentes com o princípio da “legitimação da ação”.

A conscientização, por parte das professoras, de que o desenvolvimento da criança se faz nas interações tornou-se um aliado importante na mobilização do corpo docente. À medida que novas técnicas iam sendo sugeridas, pequenos textos, descrevendo a técnica e suas justificativas, foram sendo enviados ao corpo docente por e-mail; sempre que uma técnica era acrescentada, esse texto era atualizado. Foram trabalhados os seguintes componentes do Programa:

Polidez (Módulo de habilidades sociais) - surgiu após a observação de que as crianças tinham uma dificuldade efetiva de se relacionar sem se tocar (cutucões, empurrões, cócegas, entre outros) e isso era fonte constante de confusões.

Autorregulação das emoções negativas (Módulo de autorregulação) - trabalhamos a não agressão dentro das salas de aula. Eram constantes as ocasiões em que as professoras traziam as crianças para a sala da diretoria por resolverem os seus conflitos interpessoais, através da agressão. Nesta fase da intervenção, foi necessário trabalhar a questão da imposição do respeito pela professora, igualmente de maneira não agressiva e que não caracterizasse um castigo àqueles que agrediam, mas um auxílio ao desenvolvimento da regulação das emoções negativas.

Cantinho da raiva (Módulo de autorregulação)

– ainda dentro da autorregulação das emoções negativas, as professoras foram orientadas a observar as crianças e incentiva-las, antes de elas perderem o controle e baterem em alguém, a se recolherem em um canto da sala, isoladas das outras, até a raiva passar, e elas mesmas saem do isolamento quando se sentem mais calmas.

Assertividade (Módulo de habilidades sociais) - percebeu-se um condicionamento das crianças em buscar o auxílio da professora em pequenas situações de estresses diários. Ensinamos as crianças a se posicionarem e a serem assertivas, expressando para o colega e não para a professora aquilo que elas não estão gostando. A assertividade é uma habilidade social importante porque ensina a pessoa a se colocar, sem medo de retaliações e sem colocar-se em posição de agressor ou de submisso.

Conhecimento das emoções básicas (Módulo de habilidades sociais) – diante da desestabilização emocional das professoras frente aos conflitos em sala de aula, trabalhamos o reconhecimento das emoções básicas, tanto na criança como na própria professora e, posteriormente, os recursos que precisamos adquirir para lidar com essas emoções; procurou-se dar ênfase aos detonadores das ações: “quais são as ocorrências que despertam as emoções, tanto positivas quanto negativas, em mim?”.

Entendimento da diversidade entre as pessoas (hábitos, gostos, vivências, emoções, entre outras) e treino de empatia (Módulo de habilidades sociais e Discussão de valores humanos) – percebendo a dificuldade das professoras em entender que o comportamento das crianças não é uma aberração, mas, fruto das interações com as pessoas ao seu redor, passamos a explicitar processos de desenvolvimento com foco na empatia. Também foram incentivadas a fazer o mesmo com as crianças, incentivando-as a se colocarem no lugar do outro.

Explicitação dos valores embutidos em nossas ações (Módulo de discussão de valores humanos) – todas as nossas ações trazem mensagens embutidas, carregadas de valores. Ao perceber as atitudes inadequadas de algumas professoras em sala de aula, procurava-se explicitar junto a elas qual era a mensagem que estava sendo transmitida, sempre fugindo da situação de punição e crítica e adotando a conscientização.

Ao longo de todo esse processo, algumas posturas docentes que claramente desestruturam as crianças e, consequentemente, pioram o clima em sala de aula, precisaram ser discutidas, como por exemplo, dirigir-se às crianças aos gritos, entre outras.

Progressiva e claramente o clima de convivência na creche vem melhorando. Professoras mais tranquilas, quase não trazem mais crianças para a sala da direção e sim, procuram a direção para se orientar, em uma clara demonstração de confiança, inclusive, trazendo ocorrências e as atitudes tomadas em busca de se informarem se a atitude tomada foi a correta ou não. Segue parte do diálogo entre a professora de uma criança, com sérios problemas para dominar a própria agressividade, e a diretora, após a professora ser questionada quanto ao comportamento da criança: “- A maior parte das vezes ele procura o ‘cantinho da raiva’ sozinho, mas, às vezes ele se irrita demais, é quando ele parte para cima dos colegas. Quando eu percebo o que vai acontecer, eu me adianto, chamo o nome dele e mando ele ir dar uma volta lá fora! Ele vai, xinga, esmurra o ar, chuta a parede e quando ele se acalma ele volta e continua a tarefa.”

Conscientização, oportunidade, motivação e resultados poderiam resumir esse período de trabalho com as professoras nesse processo de treinamento em serviço. No processo de motivação, procurou-se modificar a visão da professora em relação à criança de difícil convivência, como sendo uma “criança de inclusão”; se nós não agirmos, muito provavelmente ela será excluída da sociedade com as suas atitudes antissociais.

Em suma, a opinião de que a formação moral é tarefa apenas dos pais é um equívoco; todos que interagem com uma criança tão pequena têm responsabilidade na sua formação moral, na formação da sua personalidade. A principal tarefa é dos pais, mas nós, que convivemos com ela nas escolas, não temos como nos isentarmos da nossa responsabilidade. Estamos todos interagindo, o tempo inteiro e nos modificando à medida que convivemos uns com os outros.

Na formação inicial de professores de educação infantil e ensino fundamental I e de psicólogos escolares em uma instituição de ensino superior, de um município do interior do Estado de São Paulo

Em seu trabalho “As tarefas de desenvolvimento na meninice e a transição para o ensino fundamental” para obtenção do título de Doutora, a segunda autora verificou que as crianças na transição para o ensino fundamental percebiam como estressantes as situações vivenciadas no contexto escolar, com destaque para as que envolviam relacionamento com seus pares e ou professores. O estudo revelou que as crianças que frequentaram a pré-escola apresentavam melhores condições de enfrentamento às situações estressantes no início do primeiro ano do ensino fundamental (TRIVELLATO-FERREIRA, 2005).

Atuando como docente, observou que a queixa de conflitos interpessoais na sala de aula da educação infantil e do ensino fundamental estava sempre presente nas discussões.

Responsável pelas disciplinas de Habilidades Sociais (HS), um dos módulos do programa de treinamento e de estágio supervisionado em Psicologia Escolar respectivamente, oferecidas no último ano dos cursos de Pedagogia e Psicologia, percebeu-se a oportunidade de oferecer aos futuros profissionais da educação uma ferramenta a mais a ser utilizada em sua prática, com o objetivo de minimizar, melhorar e prevenir os conflitos na sala de aula de educação infantil e ensino fundamental I, o PAVH, descrito em seus três módulos (BORGES; MARTURANO, 2012).

Primeiramente, será relatada a experiência no curso de Pedagogia, por meio da disciplina HS. Para as duas primeiras turmas que cursaram a disciplina, esta foi ministrada a partir da introdução do tema, conceituando-o, apresentando seus componentes, evidenciando como ocorre o seu desenvolvimento e a história de desenvolvimento do seu treino. Neste momento, justificava-se a disciplina, compreendendo que o desenvolvimento das HS está intimamente relacionado ao desempenho escolar e à prática docente.

Após a introdução do tema, os discentes realizaram leituras de trabalhos científicos sobre o desenvolvimento de HS em crianças em contexto familiar e escolar, que incluíam as pesquisas realizadas utilizando o programa “EPRP” (SHURE, 2006). Durante as discussões, os discentes eram enfaticamente questionados sobre seu papel e função como promovedores de HS no cotidiano escolar, principalmente durante os conflitos interpessoais em sala de aula.

Tanto na parte introdutória como na de leitura e discussão de textos, foram oportunizadas discussões sobre sua prática como estagiários ou assistentes de salas de aula da educação infantil e ensino fundamental I, com exemplificação de conflitos interpessoais e possíveis resoluções destes.

Perante o objetivo da disciplina de formar professores comprometidos com desenvolvimento de HS em sala de aula, para a conclusão da disciplina, os discentes deveriam elaborar individualmente um projeto para desenvolver as HS ou na educação infantil ou no ensino fundamental I. O projeto deveria estar fundamentado nos pressupostos do PAVH e nas discussões em sala de aula. Sua execução não era exigida, visto que a disciplina era realizada em um semestre com carga horária de 40 horas. Assim os discentes deveriam pensar em um projeto que trabalhasse os três módulos do programa: (a) habilidades de solução de problemas interpessoais; (b) iniciação aos valores humanos; (c) a autorregulação de emoções negativas.

Os resultados dos dois primeiros anos de realização da disciplina salientaram a dificuldade dos discentes em compreenderem a temática e de se reconhecerem como agentes importantes na promoção do desenvolvimento das HS em seus alunos. De um universo de 40 discentes, a maioria relatou dificuldades na elaboração do projeto, tanto do ponto de vista estrutural, como conceitual percebendo-o como algo distante de sua prática, sendo esta, restrita aos conceitos pedagógicos pertinentes aos conteúdos exigidos pelos currículos vigentes. Nota-se dificuldade dos discentes em compreenderem que o projeto de desenvolvimento de HS é plano de ação que deve permear toda interação em sala de aula, e que isso implica em mudanças, desenvolvimento e exercício de suas próprias HS.

Apesar de nas discussões em sala de aula, os discentes referirem que para desenvolver as HS nos seus alunos, precisavam desenvolver as suas próprias, na elaboração do projeto eles demonstraram dificuldades em se incluírem nas ações e de mencionarem as HS básicas aos docentes para desenvolverem as HS nos alunos, em uma clara cisão entre prática e teoria.

Em meio às dificuldades de atingir os objetivos da disciplina, encontramos alguns relatos motivadores para a continuidade e aperfeiçoamento desta, como, por exemplo, o de uma aluna que mencionou que havia compreendido que, quando duas crianças estão brigando por um brinquedo, não basta esconder o brinquedo e dizer que, já que não conseguem brincar vão ficar sem o brinquedo, mas, que é preciso ensinar as crianças, por meio do diálogo, a refletirem sobre as próprias ações, aumentando suas possibilidades de pensar em ações mais positivas de resolução do problema, indagando o aluno sobre sentimentos e sobre outra forma de brincarem com o brinquedo sem conflitos.

Assim, durante os dois anos subsequentes, a disciplina é realizada seguindo a mesma subdivisão: 1)Introdução; 2) Debate de trabalhos científicos sobre desenvolvimento de HS no contexto escolar e familiar; 3) Elaboração de projeto para desenvolver HS em sala de aula. Mas, com o objetivo de suprir as dificuldades encontradas nos anos anteriores, optou-se por enfatizar o uso de dinâmicas de grupo, além de aulas expositivas dialogadas. Já na primeira aula, os alunos responderam a um questionário sobre HS aplicado a professores, que tinha como objetivo chamar a atenção para o conceito e componentes das HS.

Muitos relataram dificuldades no preenchimento do questionário, referindo-se a falhas na interpretação do texto e também, à falta de familiaridade com a temática. No terceiro ano foi proposto, ainda durante a introdução da disciplina, que os discentes se subdividissem em duplas e apresentassem a compreensão da dupla sobre os componentes das HS, por meio de uma descrição de uma cena envolvendo interação social, em que o componente de HS ficasse explicitado.

No quarto ano, a parte introdutória do curso foi composta de três momentos: 1) a aplicação do questionário aos discentes, obtendo-se resultados mais positivos; 2) realizou-se uma dinâmica sobre gestão emocional, com o intuito de conduzir o discente a uma reflexão sobre a gestão emocional e as dificuldades na autorregulação do comportamento; 3) os alunos individualmente explicaram a sua compreensão sobre os componentes e em grupo de três a cinco pessoas representaram situações em que os componentes de HS estavam presentes ou ausentes, discutindo o quanto a ausência destes componentes compromete as relações humanas.

A segunda parte da disciplina aconteceu da mesma forma que nos anos anteriores. Ainda não temos resultado do quarto ano da disciplina, mas no terceiro ano, encontramos as mesmas dificuldades citadas quando relatamos os resultados dos dois primeiros anos. Pudemos observar maior apropriação dos alunos sobre a necessidade de atuarem em sala aula, apoiados em atividades que discutam explicitamente os valores humanos. Neste sentido, o trabalho com valores humanos foi explorado pelos discentes, por meio de histórias, dinâmicas de grupo, músicas e danças.

Para exemplificar o paradoxo da disciplina quanto à sua simplicidade e complexidade de conteúdo, destacamos um relato de uma discente que atuava como professora assistente de primeiro ano do ensino fundamental: “Nossa, agora percebi o quanto é importante e necessário olhar para a criança, quando ela se dirige a mim”.

Com referência à experiência na formação de psicólogos escolares, a segunda autora supervisiona quintanistas no estágio em Psicologia Escolar. O estágio atende à proposta da Psicologia Institucional, que sugere minimizar as ações do psicólogo, sob o ponto de vista clínico (SOUZA, 2013). O estagiário trabalha em dupla e é orientado a atuar junto às relações interpessoais do contexto escolar, envolvendo pais, professores e alunos, em sua ação.

Objetivou-se formar os estagiários para atuarem como possíveis multiplicadores de professores aptos a praticar o programa referido em suas salas de aula.

Os estagiários são orientados a levarem o programa até os professores, perante as queixas destes de conflitos interpessoais na sala de aula de crianças acima de quatro anos.

A prática de assessoramento aos professores se dá em dois planos. Em encontros periódicos, semanais ou quinzenais, os estagiários conduzem dinâmicas, que enfatizam o autocontrole do comportamento e a discussão sobre valores humanos, além de leitura e estudo do EPRP (SHURE, 2006). Além dos encontros, os estagiários também atuam como modelos em sala de aula para realização do programa em seus três módulos: a) autorregulação; b) habilidades sociais; c) a discussão de valores humanos. A atuação dos estagiários em sala de aula ocorre uma vez na semana, durante 40 minutos.

Algumas dificuldades foram encontradas para a efetivação do estágio nas escolas. Nos dois anos de estágio (o terceiro está em vigência), das seis escolas contatadas, apenas três instituições de educação infantil e uma de ensino fundamental aderiram à proposta. As demais referiram não ser possível devido à disponibilidade de tempo exigido pelo programa, alegando ser muito tempo, podendo haver prejuízo ao programa curricular da turma.

Na realização das práticas, com exceção de uma instituição de educação infantil, em que o apoio da gestão e a receptividade das professoras foram efetivos, nas demais, apesar de o gestor se prontificar a apoiar as estagiárias, o apoio não se mostrou realmente presente, visto que foi escassa a permissão para a participação das estagiárias na formação continuada por meio de encontros. Já a proposição de atuar como modelo descaracterizou-se visto que as professoras não permaneciam na sala de aula, não se observando nenhum pronunciamento do gestor, quanto ao fato.

Na escola de educação infantil, em que o programa proposto foi realizado com aproveitamento, na sala da Etapa II, com 22 crianças de cinco anos, uma professora e uma estagiária, a gestora participou da formação continuada e sugeriu que a execução do programa na sala de aula fosse intercalada entre as estagiárias e as professoras.

Após dois meses, a professora relatou queda na incidência dos conflitos interpessoais e mencionou uma situação vivenciada com uma criança caracterizada por ela, com dificuldades no gerenciamento da agressividade, estando sempre presente na maioria dos conflitos da sala:“Ele começou a correr pela sala igual a um doido, eu imediatamente precisei retirá-lo da sala, e a gestora então lhe perguntou o que estava acontecendo, ele disse que uma criança havia lhe batido, e que ele sabia que não era uma boa ideia bater de volta, então ele começou a correr”.

Evidencia-se que o PAVH pode contribuir com a qualidade da convivência escolar e o desempenho acadêmico dos alunos, mas para tanto, faz-se necessária a compreensão e o apoio dos professores e gestores na formação continuada de profissionais da educação.

CONCLUSÃO

O presente relato teve como objetivo apresentar a experiência de duas profissionais na área da educação, que frente à alta incidência de estresse em crianças na fase escolar (TRIVELLATO-FERREIRA; MARTURANO, 2008) (CORREIA-ZANINI; MARTURANO, 2015) (CREPALDI, 2016), preocuparam-se em implementar práticas mais efetivas na melhoria da convivência, que proporcionem à criança uma vivência com enfrentamentos mais saudáveis, através do PAVH (BORGES; MARTURANO, 2012). As ações se deram através da preparação dos docentes para atuarem de forma mais consciente frente aos conflitos interpessoais em sala de aula.

Na visão da gestora, evidenciou-se a importância do papel da gestão na sensibilização, motivação, conscientização e estruturação de um programa de treinamento em serviço. No relato de experiência do programa na formação acadêmica, notamos as dificuldades de compreensão dos discentes, ao apresentarem um estranhamento em se compreenderem como agentes formadores da competência social de seus alunos. Concluímos que a inserção do PAVH nos programas das disciplinas ministradas proporcionou aos discentes a experiência de evidenciarem que as ocorrências da sala de aula não são apenas influenciadas pelas características da criança e seu meio familiar, mas resultam de uma diversidade de fatores que afetam as interações dentro da escola, tais como a participação do professor, a gestão e até mesmo influências socioculturais mais remotas.

Nos dois trabalhos de formação de profissionais, tanto na formação em serviço quanto na formação acadêmica, evidencia-se o estranhamento da relação entre desempenho social e desempenho acadêmico, bem como, a equivocada percepção dos discentes e profissionais de que o comportamento do aluno é independente do meio em que ele está inserido, inclusive na sala de aula. É mais do que necessária a sensibilização e a conscientização dos profissionais da educação para o fato de que o desenvolvimento da personalidade do aluno ocorre nas relações que ele vivencia e, sendo assim, todos que convivem, precisam assumir a sua co-responsabilidade na construção do desempenho social da criança sob a sua responsabilidade.

Consideramos ser necessário práticas imediatas para que a formação dos docentes privilegie também, a formação dos mesmos para a melhoria da convivência.

REFERÊNCIAS

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