ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE OS SABERES DOCENTES DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL TÉCNICA

Resumo: O artigo analisa os saberes mobilizados pelos professores do curso técnico em Mecânica do Ifes, campus Vitória, no exercício da docência da Educação Profissional. A metodologia caracterizou-se por um estudo de caso e a coleta de dados se deu por meio de um questionário encaminhado aos professores. Os saberes mobilizados por esses professores foram classificados em saberes da formação acadêmica, saberes disciplinares, saberes laborais e saberes pedagógicos. A ênfase dada aos saberes disciplinares e laborais pode ser entendida por meio da racionalidade técnica que impregna as redes de saberes e fazeres desses professores. O saber pedagógico reduz-se à didática de ensino, com esvaziamento do político.

Palavras-chave: Educação profissional; formação de professores; saberes docentes.


REFLEXÕES INICIAIS

Embora tenhamos uma vasta produção sobre a temática “formação docente”, poucos estudos se debruçam sobre a formação de professores para a Educação Profissional (URBANETZ, 2011) A autora realizou uma busca no site da Capes, onde se encontrou, de 2000 a 2009, apenas quatro trabalhos de pesquisa stricto sensu a respeito da formação de professores para a educação profissional, ao passo que sobre a formação de professores em geral tem-se 4.695 trabalhos, entre dissertações e teses. . Embora com significativa produção, a compreensão acerca dos saberes que fundamentam o exercício da docência é tarefa desafiadora que ainda se coloca para a pesquisa na educação básica, sendo tal reflexão ainda muito mais incipiente em relação à docência na Educação Profissional (EP).

Diante da expansão expressiva da rede federal de educação tecnológica e, por consequência, do avanço da EP, uma das questões emblemáticas nessa modalidade de ensino é “quem é esse profissional?” São profissionais oriundos de outros campos de estudo, muitos dos quais sem cursos na área de Educação, e que adentram o espaço escolar e se tornam professor por meio das ações cotidianas de sala de aula, pelos desafios impostos. No percurso da trajetória profissional, muitos tomarão gosto pela profissão; outros, no entanto, nunca se identificarão com a docência, serão apenas técnicos ou engenheiros “ocupantes” do cargo de docência. Sem formação acadêmica específica no campo da Educação, que saberes outros são necessários para a prática educativa desses professores e como são construídos?

Como a formação acadêmica de nível superior desses docentes não se identifica com a licenciatura, outra pergunta vem à tona: afinal, quando nasce um professor? Na tentativa de alguma resposta ou sinalização para a pergunta, aprecio a citação de Vasconcellos (2009):

O desejo de ensinar é a exigência constitutiva básica de ser professor (No princípio era...o desejo). Professor não é aquele que tem diploma, que prestou um concurso, que foi aprovado em estágio probatório, que está lotado numa determinada escola, mas fundamentalmente aquele que sente prazer em ensinar, em ver o outro crescer através de sua mediação. O trabalho do professor exige algo que não é mencionado em nenhum manual, mas que Platão já havia acusado como condição indispensável a todo ensino: o Eros, que é, a um só tempo, desejo, prazer e amor; desejo e prazer de transmitir, amor pelo conhecimento e amor pelos alunos (p.138).

O Eros dessa citação foi representado em dez questionários Com o sentimento de desejo pela docência, 10 de 24 professores deixaram registrados em seus textos, de forma explícita, as expressões desejo e/ou vocação, sinalizando que a docência já era desejada como percurso profissional de carreira. por meio dos quais os docentes explicitaram, literalmente, as expressões “desejo” e “vocação” pela área de Educação. A citação também resgata a importância da afetividade na prática educativa, da relação professor-aluno como condição de ensinar e aprender. Um discurso bonito que retrata o gosto pelo que se faz segue abaixo.

Eu sempre falo para os meus alunos: sou docente por escolha, porque amo o que faço, não por falta de oportunidade [...] Faço por amor e tento sempre fazer melhor, e sempre olhar para os meus alunos com atenção, carinho e respeito, acima de tudo. Agradeço a Deus todos os dias pela profissão que tenho, por acordar todos os dias para fazer o que gosto, e na escola onde estudei, pela qual tenho muito respeito e carinho (Docente 12) Os docentes foram identificados por números, definidos de forma aleatória, não tendo, necessariamente, relação com a sequência da devolução dos questionários. .

Tornar-se professor não é simplesmente começar a ministrar aulas, é um processo muito mais complexo de construção de saberes capazes de buscar caminhos e soluções para os mais variados enfrentamentos da prática docente. Por isso, duas perguntas básicas norteiam este estudo: 1) Quais são os conhecimentos, as competências, as habilidades, as atitudes e os valores que os professores mobilizam diariamente em seu trabalho a fim de realizar efetivamente suas tarefas? 2) Como esses saberes são adquiridos pelos professores?

Diante da complexidade da ação educativa, não podemos reduzir o estudo sobre os saberes dos professores da EP aos conhecimentos dos conteúdos das disciplinas que lecionam, pois a relação dos profissionais com a docência não se limita a uma função de transmissão dos conhecimentos já constituídos, uma vez que sua prática integra diversos saberes, com os quais o corpo docente mantém diferentes relações.

O presente trabalho intenciona contribuir para ampliar as redes de discussões acerca dos saberes necessários para a atuação dos professores na EP à medida que aborda aspectos de uma discussão inicial acerca dos saberes mobilizados e demandados pelos docentes da EP em suas atividades pedagógicas.

CAMPO, METODOLOGIA E OBJETIVO DA PESQUISA

O curso técnico em Mecânica do Instituto Federal de Educação Tecnológica do Espírito Santo (Ifes)O Instituto Federal do Espírito Santo foi oficializado em 23 de setembro de 1909, no governo de Nilo Peçanha, denominando-se Escola de Aprendizes Artífices do Espírito Santo. A escola foi regulamentada pelo Decreto nº 9.070, de 25 de outubro de 1911 (SUETH et al., 2009), com o propósito de formar profissionais artesãos voltados para o trabalho manual. , campus Vitória, foi criado em 21/10/1964, com o nome de Curso Técnico de Máquinas e Motores. Somente a partir de 1968, passou a se chamar efetivamente de Curso Técnico em Mecânica.

Atualmente, a coordenadoria desse curso é constituída por 30 professores, e oferece cursos técnicos nas modalidades integrada, concomitante e subsequente, nos três turnos, contabilizando 370 alunos matriculados. No início do semestre 2016/1, passou a ofertar também o curso superior de Engenharia Mecânica, cujo processo seletivo classificou 40 alunos ingressantes.

A pesquisa originou-se da necessidade de promovermos um Seminário a ser apresentado para os professores do curso técnico em Mecânica, a fim de atendermos à semana de reuniões pedagógicas nas Coordenadorias de Curso. A temática “Saberes e formação docente na EP” foi justificada pelo fato de a coordenadoria do curso de Mecânica passar a oferecer, no semestre 2016/1, o curso superior de Engenharia Mecânica. O projeto pedagógico desse curso foi uma construção coletiva, iniciada dois anos antes da oferta do curso, e os professores envolvidos nessa construção, que também lecionarão no curso superior são, em sua maioria, engenheiros mecânicos, com cursos de pós-graduação stricto sensu na área de Engenharia. Nesse contexto de ampliação de oferta de curso e da necessidade de profissionais qualificados para atendimento dessa nova demanda, cabe explicitar que:

No setor industrial, a área de Engenharia constituiu-se como uma das primeiras formações profissionais em nível superior no Brasil. O ensino, tanto na engenharia quanto nas ocupações da área industrial, deu-se por meio do conhecimento específico, sobre o qual se desenvolvia a experiência pedagógica dos profissionais que se dedicavam ao magistério. Ou seja, a qualificação desses profissionais ocorreu, historicamente, na prática, caracterizando o seu fazer pedagógico como um fazer desenvolvido com a experiência profissional específica da área, não vinculada aos conhecimentos pedagógicos propriamente ditos (URBANETZ, 2011, p.13).

A supervalorização dos conhecimentos específicos da área em detrimento dos saberes pedagógicos é uma tradição que precisa ser problematizada quando pensamos no exercício docente de professores engenheiros. Assim, a preocupação dos gestores do curso (coordenador e pedagogos) em relação aos saberes pedagógicos desses professores tomou relevância ainda na fase de elaboração do projeto pedagógico do curso de Engenharia, tendo sua discussão ampliada, sistematizada por meio da análise dos dados obtidos no questionário e socializada com o grupo docente no Seminário, ocorrido nos dias 9 e 10 de março de 2016.

O questionário foi entregue a 26 professores da Coordenadoria de Mecânica e contava com três perguntas, a saber:

1) Como você se tornou professor?

2) Que saberes (conhecimentos, competências, habilidades, atitudes, valores) são necessários para sua atuação docente?

3) Quais são os maiores desafios da docência na educação profissional?

Recebemos o retorno de 24 questionários, o que nos fez considerar a amostra como bastante satisfatória. Ao longo do artigo, os docentes serão identificados por números, já que a identificação nominal dos sujeitos no questionário foi opcional.

Assim, o instrumento de obtenção de dados foi o questionário, e a metodologia de pesquisa caracterizou-se por um estudo de caso. Como retrata Gil (2009), o propósito do questionário é “obter informações sobre conhecimentos, crenças, sentimentos, valores, interesses, expectativas, aspirações, temores, comportamento presente ou passado etc” (p.121). Quanto à metodologia do estudo de caso, Lüdke e André (1986) esclarecem que:

[...] a preocupação central da pesquisa é [...] a compreensão de uma instância singular. Isso significa que o objeto estudado é tratado como único, uma representação singular da que é multidimensional e historicamente situada. Desse modo, a questão sobre o caso ser ou não “típico”, isto é, empiricamente representativo de uma população determinada, torna-se inadequada, já que cada caso é tratado como tendo um valor intrínseco (p. 21).

As perguntas sinalizaram respostas às questões norteadoras da pesquisa, explicitadas na introdução deste artigo, e ao objetivo principal do Seminário e deste artigo: analisar os saberes mobilizados pelos professores no exercício da docência da EP. No Seminário, os saberes identificados puderam ser socializados com o grupo de professores e discutidos por eles, o que enriqueceu a pesquisa e o debate com os estudos teóricos selecionados para tal fim.

EM DIÁLOGO COM TARDIF E PIMENTA: SABERES NECESSÁRIOS À DOCÊNCIA

As pesquisas sobre os saberes docentes surgem ligadas à questão da profissionalização do ensino e aos esforços de diversos estudiosos em definir a natureza dos conhecimentos profissionais que servem de base para o magistério, pois, oriundos de diversas fontes, os saberes docentes são classificados como sendo de diferentes tipos. Para tessitura teórica deste artigo, discorro brevemente sobre as classificações a que chegaram Tardif (2002) e Pimenta (2002) acerca dos saberes necessários à prática docente, sem desmerecer outros teóricos e referenciais de contribuições inestimáveis, a exemplo de Gauthier et al. (1998) e de Cunha (2004).

Na obra intitulada Saberes Docentes e Formação Profissional, o pesquisador canadense Tardif (2002) destaca a existência de quatro tipos diferentes de saberes implicados na atividade docente: os saberes da formação profissional, os saberes disciplinares, os saberes curriculares e, por fim, os saberes experienciais. Os saberes da formação profissional incluem os saberes das ciências da educação e da ideologia pedagógica; os saberes das disciplinas específicas são os saberes reconhecidos e identificados como pertencentes aos diferentes campos do conhecimento; os saberes curriculares correspondem aos discursos, objetivos, conteúdos e métodos, a partir dos quais a instituição escolar categoriza e apresenta os saberes sociais; os saberes da experiência estão vinculados ou baseados no trabalho cotidiano do professor e no conhecimento de seu meio, os quais brotam da experiência e são por ela validados.

De acordo com o autor, é inútil pensar em classificar esses saberes sem considerar suas diversas origens e naturezas, seus usos e suas condições de apropriação e construção. O saber profissional dos professores é, portanto, na interpretação de Tardif (2002), um amálgama de diferentes saberes, provenientes de fontes diversas, que são construídos, relacionados e mobilizados pelos professores de acordo com as exigências de sua atividade profissional.

Pimenta (2002) afirma que os saberes docentes se constroem e se assentam na tríade: saberes das áreas específicas, saberes pedagógicos e saberes da experiência. É na mobilização dessa tríade que os professores desenvolvem a capacidade de investigar a própria atividade e, a partir dela, produzem e transformam seus saberes-fazeres docentes. Referente aos saberes das áreas do conhecimento, o professor encontra o referencial teórico, científico, técnico, tecnológico e cultural para garantir que os alunos se apropriem desse instrumental no seu processo de desenvolvimento humano. Os saberes pedagógicos incluem princípios e estratégias de gestão e organização da aula, necessários para se saber ensinar. Já os saberes da experiência se constituem pela experiência acumulada no decorrer da vida de cada professor – dele mesmo como estudante e das vivências como professor. Esses saberes são continuamente confrontados com outros saberes, mobilizados e reconstruídos pelas exigências específicas das mais diversas situações didáticas.

A autora visa à superação da tradicional fragmentação dos saberes da docência (saberes da experiência, saberes científicos, saberes pedagógicos) por meio do registro sistemático das experiências vividas pelo professor. Assim, a autora defende o trabalho de pesquisa da própria prática como princípio formativo na docência.

Diante da variedade de classificações dos saberes docentes, a que Tardif (2002) chama de pluralismo epistemológico, entendemos que haja significativas aproximações entre as classificações de diversos autores. Embora o contingente expressivo das pesquisas sobre formação e saberes docentes seja desenvolvido junto aos professores do ensino fundamental e médio que, em sua maioria, possuem a formação de licenciatura, entendemos que as considerações trazidas por esses estudos sejam aplicáveis também para a situação dos profissionais que se deparam com a carreira docente mesmo sem ter feito essa formação específica, como é o caso dos sujeitos desta pesquisa. Daí a importância das contribuições teóricas de Tardif (2002) e Pimenta (2002) para a compreensão dos dados deste artigo.

Em se tratando da docência na EP, a sistematização desses saberes torna-se ainda mais relevante, pois tende a ampliar as discussões que se encontram na confluência das temáticas formação docente e educação profissional, além de problematizar alguns discursos que tendem a reproduzir um ensino profissionalizante descomprometido com as questões mais amplas e críticas que envolvem as relações entre Educação e Trabalho, como exemplo: as relações de poder que envolvem a produção e seleção de conhecimentos, as relações entre ciência e técnica, as questões ambientais e de sustentabilidade planetária, as relações do mundo do trabalho, o sistema capitalista de produção, as ideologias, a manutenção do status quo, entre outras questões que enredam o cotidiano das escolas técnicas.

Além da problematização dessas relações, outros discursos recorrentes que perpassam as redes de saberes e fazeres desse professorado devem ser considerados nos estudos acerca dos saberes docente da EP. Uma dessas questões é o desprestígio da EP frente à educação propedêutica. Esse desprestígio é legado da história da educação brasileira, pois, a formação para os ofícios manuais, em sua origem, era oferecida praticamente como caridade para os setores excluídos da sociedade: órfãos, abandonados e "desvalidos da sorte". Esse aspecto também denuncia a relação de inferioridade com que o trabalho manual é percebido diante do intelectual. Nesse sentido, circulam nas redes a crença de que a EP técnica seria o correlato do treinamento e o discurso reducionista de formação profissional à esfera do mercado. Assim, há um peso na racionalidade técnica e consequente esvaziamento do político.

Soma-se a essas problemáticas a noção difundida de que para ser professor de disciplinas de áreas tecnológicas mais vale o conhecimento dos conteúdos que se vai lecionar e as experiências no mercado do que a formação pedagógica. E, por fim, a não percepção dos professores da EP como profissionais da educação contribui para o agravamento desse quadro, pois, o fato de muitos professores não se reconhecerem como docentes, mas, como técnicos ocupantes do cargo de docência, pode levá-los a uma atuação menos comprometida com a área de Educação.

A problematização desses discursos e a superação dos limites impostos pela formação cartesiana estão no incentivo ao trabalho de cooperação entre os professores. As possibilidades estão na amplitude das trocas que podem se dar no âmbito coletivo. Inseridos nesse cenário interativo que é a escola, podemos tecer um percurso de formação docente aberto à multiplicidade de saberes e de sujeitos, cada qual com suas histórias, vivências e perspectivas. Se o ofício docente é feito de saberes (Gauthier et al., 1998) o desafio da profissionalização deve motivar o docente a investigar os saberes próprios do ensino, sendo necessária, para isso, a produção de estudos que consigam revelar o contexto complexo nos quais os professores encontram-se mergulhados.

SABERES DA DOCÊNCIA NA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL

As respostas obtidas pelos questionários aproximam-se das classificações de Tardif (2002) e Pimenta (2002) acerca dos saberes docentes, mas comportam o saber laboral obtido no setor industrial como fundamental ao exercício docente na EP. É também pertinente considerar que os saberes da formação acadêmica dos professores pesquisados não são, em sua maioria, obtidos em cursos de licenciatura, mas na área tecnológica de Engenharia. Assim, fizeram-se necessárias algumas adequações nas classificações dos tipos de saberes a fim de atender às especificidades e finalidades próprias da EP e para melhor apresentação didática dos dados analisados.

É importante registrar que os professores mais antigos da coordenadoria de Mecânica que também foram ex-alunos da Instituição tornaram-se professores a convite de outros docentes ou gestores da época. Muitos foram monitores quando alunos e se destacaram pelo aproveitamento em alguma disciplina da área técnica em Mecânica. Esses professores que, na época, possuíam apenas o certificado de técnico em Mecânica e exerciam a docência, tiveram, por força da Lei nº 5.540/68, de cursar a Licenciatura em Mecânica. Essa Lei, da Reforma Universitária, determinava que a formação de todos os professores do ensino de segundo grau, tanto para disciplinas gerais quanto técnicas, deveria se dar em nível superior. A carência de professores de ensino técnico habilitados em nível superior levou o MEC, por meio do Decreto-lei 655/69, a organizar e coordenar cursos superiores de formação de professores para o ensino técnico agrícola, comercial e industrial. Foi nesse contexto que alguns professores da Coordenadoria obtiveram o diploma de Licenciatura em Mecânica. Assim, sete professores que têm a formação acadêmica inicial na área de Educação são os que cursaram essa licenciatura nas décadas de 70 e 80. Apenas uma docente, que também é formada em Engenharia Mecânica, tem a Licenciatura em Matemática. Sete professores da coordenadoria cursaram ou estão cursando pós-graduação stricto sensu na área de Educação.

No tocante à primeira pergunta do questionário - “como me tornei professor” - evidencia-se que são bastante variadas as formas pelas quais o profissional encontrou a docência. Os discursos revelam que para sete professores (os mais antigos da coordenadoria em termos de tempo de docência) a docência foi oferecida como opção de carreira profissional por professores e gestores do Instituto. Nove professores explicitaram que optaram pela carreira de professor, por meio de processo seletivo, porque estavam insatisfeitos atuando como engenheiros ou em outro cargo nas empresas. Quatro professores optaram pelo exercício docente por necessidade financeira e pela busca da estabilidade. E quatro professores pesquisados deixaram explícito que a carreira docente era um sonho desde a adolescência/juventude, alimentado por influência de familiares ou pela admiração que tinham pela docência exercida por seus professores no nível técnico ou superior.

Desde o ensino técnico, achei a profissão de professor interessante. Atuei como engenheiro e não gostei. Passei em concurso público para a docência e, desde então, trabalho como professor (Docente 18).

Após trabalhar em algumas empresas, fui buscar escolas para lecionar. Na minha família, temos vários professores e isso sempre foi um estímulo. Eu sempre atuei como professor na igreja e em outras atividades. Havia um desejo de trabalhar com a educação como professor (Docente 17).

Em relação ao repertório de conhecimentos, competências e habilidades que constituem o alicerce sobre o qual são edificados os saberes profissionais dos professores da Mecânica, apresento-o por meio de quatro dimensões, de natureza e origens distintas. As classificações utilizadas foram as que mais atenderam aos objetivos da pesquisa e à didática da apresentação dos dados. Os números correspondem à frequência com que as dimensões aparecem nos discursos.

- Os conhecimentos dos conteúdos da disciplina: 14

- Os saberes do campo pedagógico: 11

- Formação acadêmica em nível superior em área tecnológica: 10

- Os saberes laborais na área industrial / engenharia: 10

Cabe ressaltar que a formação acadêmica dos professores pesquisados é na área de Mecânica, seja por meio da licenciatura ou do bacharelado em Engenharia Apenas um professor lotado na coordenadoria do curso de Mecânica é formado em outra área, tendo titulação em Administração. .

A predominância dos saberes disciplinares sobre a área de formação deve-se ao fato do professor, no cotidiano de sala de aula, mobilizar apenas os saberes mais específicos, voltados à sua disciplina ou área No curso técnico em Mecânica, temos grandes áreas de conhecimento, a saber: Materiais, Desenho, Fabricação, Manutenção, Hidráulica e Pneumática, Máquinas Térmicas, Administração. Durante o Seminário desenvolvido com os professores, evidenciou-se que embora a formação em Engenharia os habilite para lecionar em todas as áreas do curso de Mecânica, muitos professores atuam apenas em uma área há bastante tempo, o que dificulta a ministração de conteúdos de outras áreas. Além disso, algumas disciplinas requerem habilidades práticas específicas de oficinas e laboratórios.. O domínio do campo disciplinar é condição para que o professor ensine, já que não se ensina o que não se sabe, mas há de se atentar para o risco de uma visão reducionista e parcelada da formação do técnico em Mecânica quando se perde as relações com o contexto formativo mais amplo. A fim de exemplificação, isso ocorre quando o professor de Soldagem pretende formar um “soldador” ou quando o professor de Desenho Mecânico aspira conduzir o aluno à função de “desenhista”, dispondo ambos os professores de uma carga horária reduzida e de objetivos mais abrangentes voltados à formação do técnico em Mecânica, não restritos a apenas uma área de conhecimento. A fim de problematizar o reducionismo e a parcelarização dos saberes dos currículos escolares, legados da ciência moderna A visão cartesiana-newtoniana de mundo, a compartimentalização dos saberes em áreas específicas, a busca incessante da neutralidade e da objetividade são também características de uma ciência que se pretende absoluta e universal. , Alves e Garcia (2002) afirmam que não há como derrubar todas as barreiras: as disciplinas são plenamente justificadas intelectualmente desde que elas compreendam a existência das ligações de solidariedade e não ocultem as realidades globais.

No tocante aos saberes laborais, obtidos pelas experiências na indústria ou em outros setores do mercado de trabalho, muitos professores consideram esse saber tão importante quanto à titulação acadêmica. A experiência de mercado é profundamente valorizada pelos docentes que atuam na EP técnica. Segundo os docentes, esse saber incorpora um repertório de conhecimentos e de habilidades que a academia não é capaz de transmitir aos formandos, uma vez que, as empresas, por necessidade de competição, estão sempre se atualizando. Dezoito professores afirmaram possuir experiência em indústrias.

Os discursos do professorado citam algumas contribuições desse saber: 1) articulação teoria-prática; 2) exemplos práticos de situações profissionais concretas que os alunos irão enfrentar no mundo do trabalho; 3) atualização tecnológica; 4) e a inclusão, no curso, de questões relativas à dinâmica do cotidiano de trabalho, à organização cotidiana da produção, às relações sociais de produção e ao conjunto de saberes e habilidades correlatas a tais questões.

Na educação profissional, os conhecimentos são oriundos da formação em Engenharia Mecânica, que deveria ser o requisito mínimo para lecionar para o nível técnico, somados a um curso de licenciatura em Educação. As competências advém da experiência profissional desse engenheiro, que deveria ter, no mínimo, 10 anos de profissão (Docente 2, grifo nosso).

Os conhecimentos técnicos e habilidades adquiridos durante a formação são importantes, mas, não suficientes. As experiências adquiridas na minha vida profissional em empresas fora da área docente foram importantes para o desempenho da função (Docente 6, grifo nosso).

De acordo com Kuenzer (2002), a experiência oriunda da pedagogia da fábrica forneceria um conjunto de saberes profissionais que seriam úteis ao ensino do saber técnico e que sem esses saberes seria muito difícil exercerem a profissão docente na EP técnica. O reconhecimento da competência para o ensino técnico passaria necessariamente pela incorporação de um repertório prático que seria adquirido pela experiência como trabalhador no chão de fábrica.

Entretanto, é importante ressaltar que os saberes ligados ao trabalho mostram-se restritos às demandas das empresas para a formação de mão de obra. Com isso, negligencia-se a complexidade das relações mais amplas que perpassam o mundo do trabalho e suas relações com a profissionalização do trabalhador.

Nesse aspecto há de considerar as dualidades históricas da educação brasileira, assentadas nas polarizações entre pensar e executar, entre trabalho intelectual e trabalho manual, entre ciência e técnica, entre formação geral e formação profissional, entre outras, que, de forma tão evidente, marcam os discursos e práticas de nossos professores. O desenvolvimento de aulas práticas alijadas da ciência subjacente que explica esse fazeres operacionais tende a formar profissionais pouco reflexivos, com particular prejuízo para os que vivem do trabalho.

Em relação aos saberes pedagógicos, os docentes consideram esses saberes importantes para o desenvolvimento e gestão da aula. Os discursos demonstram que a docência na EP requer, além da experiência no mercado e domínio do conhecimento tecnológico, um conjunto de habilidades pedagógicas que seriam próprias ao exercício docente. Entretanto, quase sempre, esses saberes aparecem reduzidos à didática de ensino, fortemente marcados pela lógica de uma competência técnica (saber-fazer) desvinculada de uma competência política. Planejamento de ensino, motivação de alunos, seleção de conteúdos, instrumentos e critérios de avaliação, desenvolvimento de trabalhos interdisciplinares, orientação de atividades dos alunos, manutenção da disciplina em sala de aula foram atividades citadas pelos professores que requerem a mobilização dos saberes pedagógicos a fim de assegurar a especificidade da ação docente e dar sentido ao fazer pedagógico.

Quanto à última pergunta, acerca dos desafios da EP, temos as seguintes ocorrências:

- Atualização na área industrial / Acompanhar as inovações tecnológicas – 8

- Articulação teoria-prática – 7

- Motivação de alunos – 5

- Investimento em equipamento / infraestrutura – 4

Seguem alguns discursos elucidativos dessa questão:

Atualizar-se e motivar as inovações. Fazer o aluno aplicar seus conhecimentos de forma integradora e produtiva (Docente 2).

A transmissão com clareza do compartilhamento dos conteúdos teóricos e práticos - o saber e o fazer (Docente 1).

Associar a prática (diferencial no Ifes) às teorias relacionadas (Docente 20).

Faz-se necessário um contínuo investimento em equipamentos para que não ocorra uma ruptura acentuada entre o conhecimento teórico e a prática profissionalizante (Docente 18).

Cabe a observação de que a atualização de que falam os professores refere-se a cursos na área industrial e tem por objetivo acompanhar as inovações tecnológicas, reforçando, assim, a importância do saber laboral e da pedagogia da fábrica no exercício docente da EP. Apenas três professores citaram a atualização pedagógica como necessária.

Outras respostas foram dadas à pergunta, mas, por não terem ocorrência significativa em termos de número, não foram aqui apresentadas. Ressalto, no entanto, que, em análise a todos os discursos relatados nos questionários, apenas dois professores citaram a pesquisa como desafio para a EP, o que, de certa forma, é fator preocupante nesse momento em que a coordenadoria inicia a oferta do curso de Engenharia. Esse dado foi bastante discutido no Seminário, abrindo horizontes para novos estudos e debates que envolvem os desafios a serem enfrentados pela coordenadoria e perfil do professorado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O professor é sujeito ativo de sua formação, cercado de saberes provenientes de muitas fontes e de naturezas diversas. Em seu desempenho, frequentemente, depara-se com situações problemáticas para as quais não basta a simples aplicação de conhecimentos oriundos das Ciências da Educação, ou de saberes específicos ao conteúdo que desenvolve em sua disciplina. Para solucioná-las, o docente necessita de saberes que emergem das múltiplas interações entre as fontes de seus saberes.

Os saberes experienciais dos sujeitos desta pesquisa estão relacionados às experiências nas indústrias, não figurando, neste estudo de caso, valorização das experiências adquiridas no ensino. Pode-se concluir, então, que as demandas provenientes das empresas têm peso significativo nas ações pedagógicas dos professores do curso de Mecânica. Nesse contexto de atendimento imediato às demandas de mercado, as práticas de ensino ficam reduzidas a um saber-fazer que pouco contribui para a compreensão da EP para além do treinamento e da capacitação para o mercado. As discussões acerca das relações de poder vigentes no bojo do sistema capitalista seriam favorecidas pela incorporação e valorização dos saberes pedagógicos. No entanto, esses saberes, quase sempre, estão reduzidos à didática de ensino. Na ocorrência do Seminário trabalhado junto aos professores, a redução dos saberes docentes à racionalidade técnica, dissociados de suas articulações políticas, pôde ser evidenciada nos discursos do professorado, que reforçaram a necessidade de atualização dos saberes disciplinares por meio de cursos e programas oferecidos pelas empresas, já que, no campo da Pedagogia, a ideia recorrente é que “para lecionar, basta conhecer um pouco de planejamento e técnicas de ensino”.

A produção e a sistematização de estudos acerca dos saberes docentes da EP ganham potencialidades quando investigadas, pois sinalizam as singularidades e os impasses do contexto profissional no qual esses professores estão inseridos. Por meio da problematização das potencialidades e limitações vividas por esses profissionais, podemos também avançar em discussões mais políticas que problematizem a supremacia da racionalidade técnica no contexto do ensino profissional. Assim, os discursos e práticas dos professores engenheiros são fontes inspiradoras de programas e cursos de formação inicial e continuada compartilhados com esses sujeitos, e não apenas a eles direcionados.

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