PEDAGOGIA: UMA ORAÇÃO SUBORDINADA

Resumo: Este trabalho utiliza-se da ferramenta genealógica de Michel Foucault para mostrar que condições históricas possibilitaram que o curso de Pedagogia no Brasil apresentasse sua atual configuração. Analisando as relações da Pedagogia com os acontecimentos sociopolíticos e econômicos, e com os discursos da ciência moderna, pode-se ver que a Pedagogia, a partir de 1930, aspirava uma educação que modernizasse o sujeito e o país, conforme o modelo de capitalismo recém-instaurado. Para isso, o uso das ciências sociais e da psicologia foi fundamental como estratégia de normatização e de adequação da educação aos princípios liberais, e, apesar das transformações do país, tais ciências continuam a ser a base da Pedagogia para atender aos princípios neoliberais, incluindo aí o fracasso escolar.

Palavras-chave: Curso de Pedagogia; Genealogia; Currículo.


QUESTÕES INICIAIS

Este trabalho apresenta, sinteticamente, a tese defendida que propõe um olhar crítico a respeito das bases teóricas que configuraram os currículos do Curso de Pedagogia no Brasil. É proposto um convite para problematizar a forma como usualmente pensamos o curso, o que nos faz sair de uma zona de conforto, de uma forma “encastelada” de saberes que se tornaram soberanos na Pedagogia. Proponho submeter a forma de pensar os saberes que hoje constituem o Curso a novas regras, a um pensar crítico, portanto, ainda que este possa produzir algum “incômodo”.

Para isso, e inspirada em Michel Foucault, uso a genealogia como ferramenta epistemológica, a fim de analisar os discursos que, historicamente, constituíram o currículo atual do curso. Eles são pensados, aqui, como estratégias políticas de dispositivos de governo da população escolar.

Ao analisar a estrutura curricular do curso de forma ampla, não tive a intenção de comparar diversos currículos, buscando suas especificidades e diferenças. Examinei, inicialmente, o currículo do curso ao longo do tempo, em suas semelhanças e generalidades. Um currículo é uma prática discursiva e, portanto, produtiva, isto é, produz um determinado modo de ser sujeito. Não é visto, assim, como um rol de disciplinas que são alteradas conforme o desenvolvimento científico ou tecnológico. Ao contrário, diz respeito a uma determinada política de governo, que requer uma determinada política de formação. Portanto, as mudanças curriculares, a inclusão ou exclusão de disciplinas, é vista, aqui, como mudança de política governamental.

A partir de pesquisas atuais sobre o curso de Pedagogia, principalmente a liderada por Bernadete Gatti, entre 2007 e 2009, intitulada Formação de professores para o Ensino Fundamental: instituições formadoras e seus currículos, vários foram os problemas partilhados sobre a formação de professores e que geraram e empreendimento genealógico da Tese. Dentre eles, o caráter fragmentado dos currículos trabalhados nesta formação, a falta de disciplinas mais específicas de formação profissional, a ausência de referências diretas sobre a escola nas ementas das disciplinas da Pedagogia, e, sobretudo, a predominância de disciplinas de caráter psicológico e sociológica, em detrimento de disciplinas referentes à didática e práticas de ensino.

Além disso, em avaliações como o Enade (Exame Nacional de Desempenho de Estudantes) de 2011, as notas dos estudantes de Pedagogia não são nada satisfatórias. No entanto, paradoxalmente, tanto estudantes quanto gestores do curso consideram sua formação adequada e satisfatória. Embora o curso tenha um desempenho “fraco e duvidoso”, como mostram as pesquisas e avaliações, o que faz com que seus estudantes e gestores o considerem satisfatório?

DA CRIAÇÃO DO CURSO

O processo de industrialização e urbanização que se expande a partir de 1930, no Brasil, pressionou a democratização do ensino. Mesmo sem condições de atender a toda população, o Estado elaborou estratégias de controle sobre a escola pública que então surgia, criando, além da instrução, importantes mecanismos de regulação e disciplinamento necessários ao desenvolvimento social, controlando, assim, o tipo de educação e para quem ela era ofertada.

Nesse cenário, o curso de Pedagogia foi regulamentado pela primeira vez no Brasil no ano de 1939, junto à Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil, tendo como objetivo formar técnicos em educação através do “estudo da forma de ensinar”. No padrão federal da época, as licenciaturas deveriam fazer parte do chamado “esquema 3+1”, com a formação de bacharéis na área das ciências humanas em três anos de estudos. No caso da Pedagogia, seria a de fundamentos e teorias educacionais. Para obter o título de licenciado, deveriam cursar mais um ano de estudo dedicado à Didática e Práticas de Ensino. Este esquema durou 23 anos (até 1962). Na Pedagogia, essa dissociação não parecia fazer muito sentido, já que a formação do bacharel era composta por diversas outras ciências e sua função no mercado de trabalho não fôra devidamente esclarecida. Já os licenciados em pedagogia atuavam como professores da Escola Normal e, com o princípio de que “quem pode o mais, pode o menos”, estavam também habilitados a lecionar no ensino primário. Para Brzezinski (2012) havia, contudo, um problema que persiste até hoje: a falta de conhecimentos sobre os conteúdos a serem trabalhados no Ensino Primário. Já neste primeiro currículo nota-se a forte presença de disciplinas como a sociologia e a psicologia (presente em todos os anos), mesmo nas disciplinas de Didática. 

A PEDAGOGIA E SUAS RELAÇÕES COM O SOCIOPOLÍTICO

Com o processo de estatização da educação, na década de 1930, a escola se via  responsável pela formação e institucionalização do nacionalismo e de uma educação moral, com a imposição de uma ordem, sem que fosse necessária a repressão. Reproduz-se, entre nós, o mito salvacionista que atribui à educação escolar o progresso da nação. Nóvoa (1998) aponta essa crença como um erro fundamental que acompanha o pensamento educacional até os dias de hoje. Faz parte desse mito:

[...] supor que as nações são grandes porque a sua escola é boa: certamente que não há grandes nações sem boas escolas, mas o mesmo deve-se dizer de sua política, da sua economia, da sua justiça, da sua saúde e de mil coisas mais. A escola cresceu nesta crença. E os professores acreditam que lhes estava cometida a missão de arautos do progresso. (NÓVOA, 1998, p. 20)

Estamos, então, enquadrados por um discurso que coloca a educação em uma posição paradoxal: é vista como responsável pela regulação e ordenação da sociedade e, portanto, pela sua salvação, mas tem dificuldade em pensar sua própria constituição e finalidade como dependentes de condições políticas e sociais.

Nesse período, o saber sobre o social dos escolanovistas (responsáveis pelo Manifesto dos Pioneiros da Educação, de 1932), conferia uma legitimidade aos discursos desses intelectuais e atraíram o Governo de Getúlio que via, na cientificidade desses discursos, um importante instrumento para a modernização do país. Daí solicitar ao Movimento a formulação de uma política educacional. A formação em nível superior dos professores, proposta nesse período, pretendia fazer destes agentes de uma modernização que acomodasse as questões socioeconômicas e os interesses políticos.

Ocupantes de cargos públicos, principalmente como políticos, o tripé dos grandes representantes da Escola Nova no país – Fernando de Azevedo, Lourenço Filho e Anísio Teixeira – tinha o poder de colocar e defender suas próprias posições educacionais nos projetos governamentais. Sem essa reparo, corre-se o risco de pensar que havia um certo “brilhantismo” neutro nos discursos pedagógicos que vigoraram então. Aliás, o escolanovismo produziu estratégias heterogêneas e flexíveis que lhe permitiram circular com tranqüilidade da formação de professores aos projetos socializantes e liberais da época, ganhando, ao mesmo tempo, a simpatia de governos autoritários.

No período do Estado Novo (1937-1945), a formação para o magistério é investida de caráter profissionalizante, incluindo o curso de Pedagogia instaurado nesse período. A cultura universitária profissionalizante tinha como objetivo aliar os estudos culturais e científicos aos estudos mais profissionalizantes, para formação dos quadros técnicos, científicos e literários de que o país precisava. Contudo, o único objetivo do “espírito universitário” que realmente se efetivou no curso de Pedagogia foi a formação de professores para o ensino secundário. Nesse momento, já circulava o discurso de que a pedagogia não tinha autonomia científica. Tal “vazio” epistemológico deu condições para que o campo da educação ficasse aberto às demais ciências humanas. Daí que a estrutura curricular desse primeiro curso, segundo Pagni (2000, p. 128), vem em consonância com os princípios do “Manifesto”, que se embasava “numa sociologia da educação (calcada nos princípios do positivismo) e numa psicologia da educação (baseada na psicologia empírica nascente)”. Aliás, uma estrutura que muito pouco se modificaria nos anos posteriores.

Com o fim do Estado Novo e a volta da democracia, tanto os discursos do escolanovismo quanto os dos movimentos de esquerda retornam com maior intensidade à arena política. No Curso de Pedagogia, algumas mudanças também ocorreram. O Decreto-Lei n. 9.092, de 1946, tenta modificar o esquema 3+1 do Curso, mas não altera o dualismo na formação entre bacharelado e licenciatura. Além disso, foi acrescido, o cargo de orientador educacional.

O golpe militar de 1964 se constituiu numa ruptura política, ainda que não socioeconômica. No campo educacional, foram várias as reformas ao longo dos 21 anos de ditadura, quando a relação de dependência com os Estados Unidos se acentuou e incidiu diretamente sobre a educação. A legislação educacional desse período balizou-se principalmente pela reforma universitária (Lei n. 5540/68) e pela reforma dos ensinos de 1º e 2º graus (Lei n. 5692/71). A vigilância e controle de resistências à ditadura se davam em vários níveis de ensino, crescendo, nesse período, a atuação das Secretarias de Educação e das Divisões Regionais de Ensino e, consequentemente, a demanda por especialistas em gestão da educação formados pelo curso de Pedagogia, o que vai exigir de sua configuração.

Por serem um perigoso núcleo crítico e contestador, as Faculdades de Filosofia foram desmembradas, na Reforma Universitária. Com isso, a criação das Faculdades de Educação resultou da divisão e redistribuição das disciplinas já existentes, e não necessariamente da criação de uma nova concepção para a Pedagogia. A perda da autonomia das universidades impôs-lhes um modelo de racionalidade administrativa e burocrática que, mesmo passados 30 anos da redemocratização do país, ainda permanece intacta.  

No curso de Pedagogia, criam-se as habilitações técnicas específicas para a gestão escolar, surgindo aí os chamados especialistas em educação: Supervisor Pedagógico, Orientador Educacional e Administrador ou Gestor. Além disso, há a extinção do título de bacharel, fazendo da licenciatura o título que contemplaria toda a formação desses pedagogos. Assim, haveria uma parte comum de disciplinas básicas, e uma parte mais profissionalizante no curso.

Os pedagogos assim habilitados tinham como função inspecionar o trabalho realizado nas escolas pelos docentes, podendo, inclusive, delatar qualquer conduta considerada subversiva. Mas o que gerou muitos embates nas escolas foi a falta de conhecimentos para supervisionar e orientar o trabalho dos professores. Esse é um dos momentos mais “significativos” da formação de professores no país, quando os conteúdos a serem ensinados deixaram de ser a prioridade da escolarização, que se centrou, abertamente, no disciplinamento de condutas sociais desejáveis. Como os princípios de gestão técnica foram simplesmente acrescentados ao Curso, sem alterar sua estrutura, o currículo pôde manter aquelas mesmas bases teóricas assentadas pelos renovadores, já que o tecnicismo é uma faceta do discurso liberal presente na educação.

Em 1971, com a instituição do 2ª grau profissionalizante, o curso de Magistério passou a ser uma das habilitações das escolas de ensino médio, desativando a exclusividade e o status das Escolas Normais. No entanto, o engessamento da educação profissionalizante acaba se mostrando problemático, ao tentar conter o acesso ao ensino superior. Com a crise econômica da década de 1970, a ditadura perde os seus apoios e passa a encaminhar o “cronograma de abertura política”, que culminou com a lei da Anistia em 1979. O período ditatorial, no entanto, deixava como herança um país com extrema desigualdade social, resultando em muitos milhões de brasileiros em situação de miséria. As taxas de repetência e evasão escolar entram na pauta política e na formação de professores.

Na década de 1980 eclodiram as entidades e organizações de professores. Acreditava-se numa formação política dos educadores, e a crença numa educação que pudesse acabar com as desigualdades sociais voltou com um vigor renovado. Nessa esteira, três correntes pedagógicas se destacam: a crítico-social dos conteúdos (ou conteudistas), o construtivismo pedagógico e a pedagogia libertadora de Paulo Freire. Os cursos de Pedagogia, passaram a reformular seus currículos. Na UFRGS, o curso passou a oferecer habilitações em Séries Iniciais, Pré-Escola e Magistério. Essas remodelações curriculares foram afetadas pelo discurso construtivista, principalmente o de matriz piagetiano, e pelo discurso da educação popular na leitura “freireana”.    

Na década de 1990, no entanto, diante do persistente quadro de repetência e evasão escolar, surgiu a necessidade de se ajustar os discursos democráticos com a qualidade técnica da educação, o que interessava de perto ao governo já que as agências internacionais tomavam a avaliação dos indicadores educacionais como parâmetro para investimentos no país.

A mais recente reforma do curso de Pedagogia no Brasil se deu em 2006, tendo como objetivo a formação do pedagogo apto ao “exercício da docência na Educação Infantil e nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, nos cursos de Ensino Médio, na modalidade Normal, e em cursos de Educação Profissional na área de serviços e apoio escolar, bem como em outras áreas nas quais sejam previstos conhecimentos pedagógicos.” (BRASIL, 2006, p. 19).  Também foi ampliada a carga horária do curso para 3.200 horas, no entanto, pouco mais de 10% da carga horária do curso (400 horas) é destinada a estágios e atividades práticas. O predomínio teórico do curso é, portanto, incontestável.

DAS RELAÇÕES COM O SOCIOECONÔMICO

No Brasil, a instauração de um capitalismo “aligeirado” e dependente dos modelos externos já em vigor, não demandava uma urgência na formação de mão de obra especializada. Bastava saber ler e escrever para “deixar de varrer o chão da fábrica”. Mesmo assim, o Estado criou uma educação profissionalizante, que formava técnicos no ensino secundário para as indústrias nascentes, ainda que “o tempo despendido pelo sistema educacional nesse tipo de formação seja maior do que aquele que o mercado de trabalho pode esperar” (Xavier, 1990, p.155). Por tudo isso, o país ficou mais suscetível à penetração de empresas internacionais que tinham o domínio da tecnologia e da organização do trabalho. O país pagou pela demora na formação pelo conhecimento que não produzia.

O Curso de Pedagogia que emerge nessa conjuntura, produz um pedagogo de vasta formação geral que irá tanto disseminar a “alta cultura” no ensino secundário, quanto servir ao aparelho burocrático do estado. No caso do curso de Pedagogia, a colocação destes profissionais no mercado não se constituiu em motivo de preocupação, já que o exercício do magistério era possível e conveniente para a grande maioria de seu público feminino, que via nele não só a vantagem de ser conciliável com as atividades domésticas, como principalmente a própria expressão de sua “vocação”.

Com o crescimento industrial brasileiro, no governo JK, o país se abre amplamente ao capital estrangeiro. Seu Plano de Metas investiu pesado na infraestrutura do país, mas não na educação, falhando na qualificação da mão-de-obra. Já a instabilidade política do governo de João Goulart culminou com o golpe civil-militar de 1964, e com os conhecidos acordos MEC-USAID, produziu-se o discurso do subdesenvolvimento, que colocou o país numa condição inferior, de onde só sairia seguindo os modelos das sociedades capitalistas modernas. Com isso, criava hábitos de consumo nas camadas mais altas e oferecia um baixo nível de escolaridade para as massas, produzindo uma mão-de-obra sem qualificação e, portanto, mais barata.

O curso de Pedagogia foi o que mais cresceu entre os ofertados pelo ensino privado em franca expansão desde a década de 1940 pelo discurso liberal do empresariado . E isto por um simples motivo: é o mais “barato” para se montar e manter, dava um retorno financeiro bastante vantajoso. Tanto que na década de 1970, 61% dos cursos de Pedagogia já eram privados e atualmente, correspondem a 75% da oferta.

Durante o regime militar, além da desvalorização salarial que provocou arrocho nos salários do magistério, houve um aumento significativo da demanda de professores já que, a partir da Lei 5.692/71, se estendeu de 4 para 8 anos a escolaridade obrigatória no chamado 1º grau. A consequência disso foram as formações “aligeiradas” para atender a essas necessidades. É nesse período que ocorre o que Ferreira Jr. e Bittar (2006) chamam de “proletarização dos professores”, não só pelos salários aviltantes, mas também por sua origem social: as “normalistas” que antes vinham das classes médias e altas passam a vir das classes populares, devido à crescente desvalorização salarial. A formação em nível superior é impulsionada pela expectativa de um salário melhor. Consequentemente, o interesse pelos cursos de magistério declinou, ao mesmo tempo em que cresceu a oferta de cursos de Pedagogia pelo ensino privado. 

Em 1985, último ano da ditadura militar, o país estava quebrado, sendo mal visto pelos seus credores e motivo de preocupação por parte das instituições de crédito. O foco do BIRD (Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento), na educação, concentrou-se nos anos iniciais de escolarização, mantendo a lacuna histórica entre um tipo de educação rudimentar para as massas, caracterizada como a “gestão da pobreza”, nos termos de Fonseca (1998), enquanto para as camadas que têm acesso a níveis maiores de escolaridade se aplica a “gestão do trabalho”, e a formação de professores para o nível inicial de escolaridade deveria acompanhar tal lógica da desigualdade. Resumindo, a manutenção das desigualdades sociais, fundamental para o modelo capitalista que se desenvolveu no país desde a década de 1930, depende também da produção de um fracasso escolar (para manutenção e legitimação da desigualdade social), que envolve a falta de qualificação adequada para o ensino (o que justifica os baixos salários dos professores dos anos iniciais) que, por sua vez, envolve os modos de configuração do curso de pedagogia (um curso de baixo custo e de baixo prestígio social).

A partir de 1990, uma série de reformas educacionais na América Latina passaram a atingir todos os níveis de ensino através das diretrizes, referenciais e parâmetros curriculares nacionais, que só foram implantados no governo de FHC (1995-2002). Ao longo desse período, o governo adotou uma política neoliberal, com a valorização do mercado. Toda essa legislação teve uma fundamentação construtivista, que correspondia plenamente à formação exigida pelo mercado: a de um sujeito individual ativo, flexível e autônomo. Como o mercado valoriza a heterogeneidade, pois a demanda de produção deve atingir a todos os públicos, fazendo de todos consumidores, a educação precisa ser diferenciada para que cada segmento da população possa se afirmar como um público distinto, para o qual o mercado direcionará a oferta de produtos específicos. Coube ao curso de Pedagogia formar professores capazes de trabalhar com essa diversidade (de alunos e de disciplinas), através das mais variadas habilitações. E ao incorporar as Diretrizes Curriculares do curso, estabelecidas em 2006, assumiu não apenas os fundamentos dados pela Psicologia Genética, mas também o empreendimento que ela propõe: a produção de um sujeito autônomo, que não depende dos outros para construir o seu conhecimento.

SOBRE OS DISCURSOS CIENTÍFICOS DA SOCIOLOGIA E DA PSICOLOGIA

A valorização da racionalidade científica possibilitou o surgimento das ciências humanas no século XIX. Essa tomada do homem como objeto de estudo não se deu por um “aprimoramento” das ciências modernas. Muito pelo contrário: a ‘transposição’ do discurso científico para entender o homem se fez através de outras exigências, de outros problemas, que os acontecimentos históricos apontam. Segundo Foucault (1999):

[...] Foram necessárias novas normas impostas pela sociedade industrial aos indivíduos para que, lentamente, no decurso do século XIX, a psicologia se constituísse como ciência; também foram necessárias, sem dúvida, as ameaças que, desde a Revolução, pesaram sobre os equilíbrios sociais e sobre aquele mesmo que instaura a burguesia, para que aparecesse uma reflexão de tipo sociológico (p. 476).

Se tais ciências foram “convocadas” pelas necessidades sociais e econômicas surgidas num determinado momento histórico, isto se deve ao fato de que serviam como instrumento político, isto é, como instrumento de governo. O grande diferencial das ciências humanas estaria, então, na visibilidade que dá às representações produzidas pelo próprio homem para as suas relações, abrindo, a possibilidade de se evidenciar e normatizar modos de ser.

A presença da Sociologia na educação, se deu principalmente através de  Fernando de Azevedo, adepto da sociologia francesa de Émile Durkheim, para quem a Sociologia seria necessária a todos os educadores, que precisam ampliar sua visão da sociedade antes de poder transformá-la. Ao lado de Anísio Teixeira, fez da Escola Progressista norte-americana de John Dewey o seu catecismo. A educação que eles propõem, transpondo Dewey, deveria considerar as aprendizagens da vida cotidiana, dando à escola a tarefa de educar para a vida em sociedade, o que corresponde às necessidades do governo instalado em 1930.

Na década de 1950, a sociologia vai voltar a fazer uma ponte com o Estado, dessa vez através do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), fundado em 1952, e do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE), criado em 1956. Assim, e após um período de “afastamento” da sociologia das políticas educacionais, no Estado Novo, Anísio Teixeira tenta atrair novamente os sociólogos para a área educacional, principalmente pelos financiamentos do CBPE. Além disso, Anísio convocou intelectuais prestigiados para atrair jovens cientistas sociais, como Gilberto Freyre, mesmo que esse não tenha produzido pesquisas para a área educacional. O CBPE, por sua vez, formou um quadro de pesquisadores prestigiados, mas com um vago interesse pela educação. Assim, as ciências sociais não se vincularam, por desinteresse, à prática pedagógica. Ao contrário dos renovadores, os sociólogos não viam a escola como um espaço de transformação social, e passam a considerar a educação como sinônimo de socialização. Essa herança pode ser vislumbrada nos currículos do curso de pedagogia, que mantiveram uma diversidade vasta de temáticas não necessariamente ligadas a práticas pedagógicas escolares.

Nos anos 70, surgem as teorias crítico-reprodutivistas e a escola passa a ser duramente criticada, e não só é alvo de desinteresse, mas motivo de certo repúdio pelas teorias sociológicas desse período. Desinteresse esse que não se dá em função de uma questão “científica”, mas, devido a uma questão política. Assim, a predominância dos saberes sociológicos no curso de Pedagogia acaba mostrando que, mesmo que a sociologia não tenha mais como prioridade a educação, a educação sempre teve como prioridade a sociologia.

Na década de 1980, a emergência de múltiplos organismos formuladores de políticas públicas em educação acabaram por não mais se valer das ciências sociais para acompanhar tais dinâmicas. No entanto, é intrigante como a Pedagogia ainda atribui a essa área o poder de falar sobre “a educação” num contexto educacional que nem ela mesma (a sociologia) conseguiu acompanhar. O olhar “privilegiado” atribuído à Sociologia da Educação, presente no curso de Pedagogia, é de tão longo alcance, que faz a Pedagogia perder a capacidade de enxergar o que está diante dela. No entanto, essa hipermetropia é bastante conveniente à manutenção dos modos de organização da sociedade brasileira atual.

Já sobre a Psicologia, Lourenço Filho foi seu principal precursor no Brasil, com destaque ao seu trabalho na área da psicometria. Por sua atuação na formação de professores, é considerado o grande responsável por disseminar a psicologia como disciplina no Brasil. Através de seus Testes ABC (de 1933), apresentava uma proposta racional e científica para a organização das emergentes escolas públicas brasileiras, classificando os alunos alfabetizandos em entre fracos, médios e fortes.

Lourenço Filho, ao ocupar importantes cargos públicos no governo, inclusive como diretor do INEP (a partir de 1938), em muito colaborou para que se acentuasse o caráter “psicologizante” das políticas públicas em educação e, consequentemente do curso de Pedagogia.

No Rio Grande do Sul, principalmente através do trabalho de Graciema Pacheco na Faculdade de Educação da UFRGS, a partir de 1946, a teoria construtivista de Jean Piaget foi altamente valorizada no curso, tomada até mesmo como o “fundamento da didática”.

Enquanto o construtivismo piagetiano ganhava adeptos entre boa parte do professorado brasileiro, no governo militar emerge a tendência behaviorista tecnicista.  A centralidade dessa proposta é a racionalização dos meios, ou seja, um ensino planejado e executado através de métodos e do uso de tecnologias que o tornem mais produtivo. Na UFRGS trabalhos de destaque nacional como o da Profª Louremi Saldanha, chegava a usar  Piaget para embasar pressupostos tecnicistas na didática. A rejeição dessa tendência só se acentua com o declínio do regime militar.

Na década de 1980, a Psicologia teve a preocupação de se adaptar ao movimento de politização da sociedade. Em relação à educação, o foco, tanto do governo quanto dos educadores, era a população mais pobre, e o que veio a ancorar o pensamento pedagógico a partir daí foi uma interessante alquimia entre a teoria de Piaget (acrescida de outros autores) juntamente com os trabalhos de educação popular de Paulo Freire. A teoria construtivista usava a seu favor, como usa até hoje, o discurso do “científicamente comprovado” como blindagem a eventuais questionamentos. Assim, apresentou uma proposta sedutora para resolver o maior problema da educação: a alfabetização (a partir da obra Psicogênese da Língua Escrita, de FERREIRO & TEBEROSKI), acreditando compreender o que se passa na mente das crianças, e nada era tão sofisticado quanto a teoria construtivista. A pedagogia que não fosse centrada na criança, que não partisse das experiências dessa, era acusada de não se importar com a sua “realidade”. No discurso do professorado, palavras como cartilha, método e ensino passaram a ser cada vez mais “cerceadas” e interditadas.

O que de fato possibilitou a aproximação de Paulo Freire e o construtivismo foi a proposta de um método ativo na alfabetização. Uma proposta em que o educador deve se colocar como mediador, um facilitador do processo.  Partir da experiência do aluno se torna uma prática altamente refinada, pois pressupõe o reflexo do seu mais íntimo pensamento.

Tais mudanças presumiam uma reformulação curricular no curso de Pedagogia, na década de 1980. O que percebe-se é a manutenção das disciplinas de caráter psicológico, com ênfase na psicologia do desenvolvimento e teorias afins, que encaminhassem as práticas pedagógicas (principalmente as de alfabetização) para um viés construtivista.

No ano de 1995, além de um pequeno grupo de professores de São Paulo encarregado pelo MEC o professor espanhol César Coll, foi convidado para formular os PCNs. Coll teria ajudado a realizar a reforma educativa espanhola, de caráter construtivista e, a partir daí, percorrido diversos países latinoamericanos prestando assessorias. A vinda de Coll ao Brasil ocorreu por influência direta de Beatriz Cardoso, filha do então presidente da república Fernando Henrique Cardoso.

PEDAGOGIA: UMA ORAÇÃO SUBORDINADA?

As ciências sociais e psicológicas constituíram-se, historicamente, em disciplinas dominantes nos currículos dos Cursos de Pedagogia no Brasil. Certamente essa posição tem a ver com o fato de normatizarem comportamentos, via escola. As diversas correntes dessas ciências, que se alternaram como discursos hegemônicos nos cursos superiores de formação de professores, estiveram sempre voltadas à (con)formação dos sujeitos requeridos pelo projeto liberal de sociedade que, na sua trajetória, sofreu algumas inflexões, sem, contudo, alterar substancialmente sua estrutura.

A Psicologia se tornou científica e passou a embasar a Pedagogia no século XX, fortalecendo os ideais liberais das sociedades capitalistas, ao centralizar no sujeito o processo de conhecimento, tirando de foco e minimizando muitos dos fatores sociais que pudessem interferir em seu sucesso/fracasso. A formação de professores absorveu essas verdades principalmente pelo respaldo das ciências humanas, que submeteram seus objetos ao método científico. Enquanto verdades científicas, suas produções foram de tal forma generalizadas, que muito do que se valorizou em matéria de teorias foi produzido em países com realidades bem diferentes da brasileira, sendo aqui transplantadas acriticamente, por serem consideradas conhecimentos “universais”. 

Pensar as aprendizagens individuais tendo que fazer uma prática de ensino coletiva – eis uma equação de difícil solução para os professores. Por ter elaborado uma proposta “científica”, aliada às aspirações da sociedade redemocratizada (invocando os conceitos de democracia, liberdade, cidadania, etc.), o construtivismo pedagógico teve força para se impor não só entre as esquerdas, como nas políticas educacionais do governo federal desde a metade da década de 1990 até os dias de hoje. Como isso foi possível? É preciso destacar como as práticas construtivistas foram massivamente incorporadas pelas políticas voltadas à escola pública e não ganhou muitos adeptos (pelo menos por muito tempo) nas escolas particulares, que atendem às classes sociais mais altas. O respeito aos ritmos individuais acabou se dando, portanto, na esteira da pobreza, pois o que continuou a pautar a educação das outras classes foi um ensino de conteúdos que, reconhecidamente, são usados em vários processos de seleção que levam a uma ascensão social e econômica. Dessa forma, a manutenção da desigualdade se dá no interior dos sistemas educativos, capacitando alguns para se inserirem numa sociedade competitiva e outros para serem disciplinados minimamente para conviver nessa sociedade, mas sem dar-lhes muitas condições de mobilidade ascendente. Privilegiando uma corrente pedagógica que, paradoxalmente, ainda não solucionou os problemas do seu público-alvo - as classes populares - não estaria o curso de Pedagogia envolvido na continuidade de uma oferta desigual de educação? Não estaria assim contribuindo para um fracasso escolar que reproduz a desigualdade social necessária às políticas neoliberais? Afinal, por que um governo neoliberal adotou oficialmente o construtivismo como parâmetro dos currículos da escola pública brasileira?

O curso de Pedagogia projetado pelas Diretrizes Curriculares de 2006 ao englobar cada vez mais “as diferenças” (os surdos, os afro-descendentes, os indígenas, etc.), não deixa de seguir uma lógica neoliberal. Em todos esses casos, trata-se, sobretudo de submetê-los a um processo de socialização na escola, para permitir sua entrada no mercado de trabalho e torná-los, assim, menos dependentes da assistência do Estado.

Ao longo desse trabalho, pude evidenciar que o curso de Pedagogia foi seguidamente transformado pelas condições sociais, muito mais do que as transformou. A formação de professores acabou se tornando um território de conceitos abstratos, sendo alguns bastante pretensiosos, pleiteando uma formação integral dos alunos, uma consciência crítica e uma educação capaz de transformar a sociedade. Esse discurso salvacionista tem sido confortável, tanto para os professores como para os gestores e dirigentes educacionais, para contornar o insucesso permanente dos alunos das escolas públicas. Ainda mais que ele é balizado, cientificamente, pela Psicologia e pela Sociologia. O discurso que fala da educação como promotora de transformações, só não completou sua sentença... a educação é transformadora: transforma o aluno no sujeito requerido pela sociedade e o professor no agente dessa transformação.

REFERÊNCIAS

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