POLÍTICAS PARA A EDUCAÇÃO SUPERIOR: AS ORIENTAÇÕES DE ORGANISMOS INTERNACIONAIS
Resumo: As políticas para a educação superior brasileira, no contexto das décadas de 1990 e 2000, foram formuladas sob a orientação de organismos internacionais. Assim, partindo de uma pesquisa documental, teve-se como objetivo analisar documentos da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, Banco Mundial e Banco Interamericano de Desenvolvimento sobre a educação superior, no período de 1995 a 2002. Constatou-se que, no geral, esses organismos, com suas particularidades, desempenharam um papel político e intelectual da agenda educacional, que forneceram as matrizes para a expansão quantitativa, a diversificação de estruturas/formas e a avaliação/controle da educação superior na América Latina.
Palavras-chave: educação superior; organismos internacionais; políticas educacionais.
INTRODUÇÃO
As políticas para a educação superior, no contexto das décadas de 1990 e 2000, foram caracterizadas pelos processos simultâneos de expansão, privatização, diversificação e diferenciação institucional. Ou seja, com a necessidade de expansão da educação superior brasileira, para atender a uma crescente parcela da população carente dessa formação, qualificar e preparar a força de trabalho para o mercado e desenvolver fatores de competividade e inovação (CABRAL NETO; CASTRO, 2014), foi preciso diversificar o perfil das instituições e implementar a lógica da “flexibilização” (BARBALHO; CASTRO, 2012). Essa configuração foi orientada pelos organismos multilaterais e se fortaleceu com a construção do discurso sobre a “ineficiência” do serviço público (CASTRO, 2006).
Essa lógica de expansão é consolidada em um contexto de redefinição do Estado, sob o princípio da eficiência e efetividade o que implicou no redesenho da educação superior. Nesse contexto, a avaliação tornou-se central como instrumento para implementar uma nova forma de gestão educacional. A partir de uma agenda globalmente estruturada para a educação, os organismos internacionais atuaram e continuam desempenhando papel importante. Segundo Maués (2003):
A história desses organismos [...] juntos aos países em desenvolvimento, tem sido de assessoria na elaboração das políticas públicas, apontando as ações que, segundo a ótica das agências financeiras (BM e BID), seriam aquelas que poderiam obter um empréstimo para sua implantação. Os governos dos países alvos têm aceito a ajuda técnica e financeira internacional, elaborando uma política de acordo com os padrões determinados e [...] criando o projeto de ensino superior que esteja de acordo com os princípios defendidos por essas organizações e elaborando uma política de avaliação que passa a ser fundamental para a concretização do modelo defendido. (MAUÉS, 2003, p. 111)
Desse modo, tendo como delineamento a pesquisa documental, objetivou-se analisar publicações da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), Banco Mundial (BM) e Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID
ORGANISMOS INTERNACIONAIS COMO ATORES POLÍTICO E INTELECTUAL DA AGENDA EDUCACIONAL
A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e as diretrizes para a educação superior
Desde a sua criação, em 1945, a UNESCO, pautando-se em um discurso humanista, tem defendido a democratização dos conhecimentos produzidos historicamente. A organização é formada por uma rede de escritórios, entre eles o Escritório Regional de Educação da UNESCO para a América Latina e o Caribe (OREALC). Possui ainda institutos para níveis educacionais, como o Instituto Internacional da UNESCO para a Educação Superior na América Latina e Caribe (IESALC). Por ser a agência das Nações Unidas especializada em educação, suas recomendações impactam ideologicamente nas políticas educacionais dos países membros.
Em 1995, considerando a decisão tomada na 27ª sessão da Conferência Geral, realizada em 1993, a UNESCO publicou o documento “Política de mudança e desenvolvimento no ensino superior” (UNESCO, 1999) como uma síntese daquilo que entendia como tendências maiores para o ensino superior e também formulou uma perspectiva para a Organização referente às políticas-chave neste campo. O texto identificou três tendências principais nos sistemas educacionais de ensino superior e em suas instituições no mundo: expansão quantitativa; diversificação de estruturas institucionais, programas e formas de estudos; e dificuldades financeiras. Considerou que as respostas do ensino superior deveriam ser guiadas por três palavras-chave: relevância, qualidade e internacionalização. O documento examinou como o ensino superior poderia responder a esses pontos e qual a contribuição que a UNESCO poderia dar aos Estados Membros e instituições de educação superior (IES) para desenvolver suas políticas e facilitar o processo de mudança e desenvolvimento.
Um dos pontos destacados foi que, considerando as dificuldades na consecução de recursos e fundos públicos – especialmente nos países periféricos do capitalismo mundial, onde dificuldades fiscais, oriundas da necessidade de se controlarem os orçamentos públicos, foram mais afetadas pelas consequências das políticas de ajuste estrutural –, as IES deveriam buscar fontes alternativas. Assim, deveria se dar atenção à possibilidade de se introduzir outras formas de financiamento no ensino superior, como, por exemplo, “[...] através da introdução e/ou do aumento das mensalidades escolares e de outros custos relacionados ao estudo, e através da promoção de diversas atividades que possam gerar renda, tais como contratos de pesquisa, serviços acadêmicos e culturais e cursos de curta duração.” (UNESCO, 1999, p. 39).
No campo da avaliação, o texto explicitou que era necessária uma nova visão do ensino superior, que combinasse a demanda por esse nível de ensino com o imperativo por maior relevância, para que fosse possível dar respostas às expectativas da sociedade. Assim, destacou os princípios da liberdade acadêmica e da autonomia institucional, ao mesmo tempo em que enfatizou a necessidade de se prestar contas. Para isto, apresentou o tópico “Relações com o Estado e base para a administração institucional e gerencial” (UNESCO, 1999, p. 56). Reconheceu que é responsabilidade do Estado definir a regulamentação geral para as IES, tendo em vista principalmente o processo de diversificação institucional. Dessa maneira, defendeu os princípios da liberdade acadêmica e da autonomia institucional como condição para a existência e funcionamento das IES, mas também a avaliação de qualidade, preocupação com eficiência/custos e a prestação de contas à sociedade. Interessante notar que, possivelmente em função da pluralidade de representação que a Organização possibilita, nem tudo apareceu explicitamente na linguagem gerencial. Um exemplo disso é a afirmação de que: “[...] a avaliação de qualidade, especialmente de instituições públicas de ensino superior, não deve ser sinônimo de regulamentação externa, ou utilizada como modo de restringir fundos públicos. Ela deve funcionar como mecanismo que permita ao ensino superior assegurar seu próprio melhoramento.” (UNESCO, 1999, p. 57). Desse modo, o principal objetivo da avaliação seria o de melhorar a instituição, bem como todo o sistema. E acrescentou:
O processo de avaliação em geral e a avaliação da qualidade devem começar com os professores e pesquisadores e ativamente envolvê-los, tendo em vista seus papéis centrais nas diversas atividades das instituições de ensino superior. A participação de outros, inclusive de estudantes, nos assuntos relacionados à avaliação do ensino, deve ser organizada dando-se reconhecimento apropriado ao papel dos depositários na avaliação. (Ibid. p. 69)
Após a divulgação desse documento, consultas regionais foram realizadas no decorrer dos três anos seguintes. Em outubro de 1998, com a presença de representantes de Governos, do setor privado, de associações de professores e de estudantes, reitores, pesquisadores em educação, representantes de associações de universidades, ocorreu a Conferência Mundial sobre Educação Superior. Desse evento, resultou a aprovação de dois documentos básicos: “Declaração Mundial sobre Educação Superior no Século XXI: Visão e Ação” (UNESCO, 2003a) e “Marco referencial de ação prioritária para a mudança e o desenvolvimento da educação superior” (UNESCO, 2003b).
No Artigo 2º da Declaração Mundial sobre Educação Superior (UNESCO, 2003a, p. 23), foi reforçada a ideia de se “[...] desfrutar de liberdade acadêmica e autonomia plenas, vistas como um conjunto de direitos e obrigações, sendo simultaneamente responsáveis com a sociedade e prestando contas à mesma.”. Assim, ao tratar da avaliação, no Artigo 11, ficou entendido que a qualidade em educação superior é um conceito multidimensional que deve envolver todas as suas funções e atividades (ensino, pesquisa, extensão, pessoal, estudantes, infraestrutura, dimensão internacional etc.). Desse modo:
Uma auto-avaliação interna transparente e uma revisão externa com especialistas independentes, se possível com reconhecimento internacional, são vitais para assegurar a qualidade. Devem ser criadas instâncias nacionais independentes e definidas normas comparativas de qualidade, reconhecidas no plano internacional. Visando a levar em conta a diversidade e evitar a uniformidade, deve-se dar a devida atenção aos contextos institucionais, nacionais e regionais específicos. Os protagonistas devem ser parte integrante do processo de avaliação institucional. (Ibid., p. 29)
Interessante notar que, ao mesmo tempo em que afirmou em considerar a diversidade e evitar a uniformidade, defendeu normas comparativas de qualidade em escala internacional.
No Marco Referencial de Ação Prioritária (UNESCO, 2003b, p. 40), afirmou-se que as IES deveriam, no momento de determinar as prioridades em seus programas e estruturas, garantir a alta qualidade compatível com os padrões internacionais, tendo a obrigação de prestar contas e de fazer avaliações, tanto internas quanto externas, respeitando a autonomia e a liberdade acadêmica, e institucionalizar sistemas, estruturas ou mecanismos transparentes para esse fim. Enfim, a universalidade do ensino superior exigiria uma gestão fundamentada no princípio da autonomia responsável (baseada no mérito) e da prestação de contas transparente dos resultados (baseada na avaliação e regulação) e que a qualidade estaria dependente de uma avaliação e de uma regulação de natureza sistemática.
Na verdade, ao que parece, autonomia institucional e liberdade acadêmica se resumem a técnicas de gestão, subordinadas a uma “educação contábil” (LIMA; AZEVEDO; CATANI, 2008), isto é, uma educação orientada segundo objetivos específicos e que se torna mensurável através da ação de instâncias de contadoria, centrando-se no cálculo e na medição de resultados e favorecendo a padronização.
O Banco Mundial (BM) e as orientações economicistas para a educação superior
Outro órgão importante na configuração da educação superior é o BM, que, segundo Torres (2009), foi ocupando o espaço tradicionalmente conferido à UNESCO no campo da educação global. O BM, possivelmente, exerceu a maior liderança no processo de reestruturação neoliberal e abertura das economias dos países com uma base industrial em desenvolvimento aos novos rumos do capitalismo mundial. Conforme Pereira (2010), o Banco age, desde a sua criação, em 1944, como um ator político, intelectual e financeiro, na condição de concessor de empréstimos, formulador de políticas, ator social e veiculador de ideias, sobre o que fazer, como fazer, quem deve fazer e para quem fazer. Os Estados Unidos desempenharam papel central na criação do Banco e têm mantido o monopólio do poder de veto ao longo dos anos e a liderança política.
A partir da década de 1980, a relação entre o BM e os países de capitalismo dependente transformou-se profundamente:
Dada a situação de crise e extrema vulnerabilidade dos países endividados [...] o Banco Mundial passou a impor uma série de condicionalidades para a concessão de novos empréstimos. Mediante essas condicionalidades, o Banco Mundial (tal como o FMI) passou a intervir diretamente na formulação da política interna e a influenciar a própria legislação dos países. (SOARES, 2009, p. 21)
Através dessas condições, o Banco iniciou a implementação do amplo conjunto de reformas estruturais nos países endividados. No Brasil, a instituição configurou-se como importante interlocutor multilateral. Além de uma relação financeira, houve uma significativa cooperação técnica. No campo educacional, foi notório o papel que esse organismo exerceu na América Latina e no Caribe ao difundir através de seus documentos, entre outras medidas, a legitimação da privatização da educação superior e da mercantilização da produção do conhecimento.
Nunca é demais reafirmar, concordando com Coraggio (2009, p. 120), que não se considera nesta pesquisa “[...] que o Banco é o factotum das novas políticas educativas.”. O que se ressalta é o papel atuante desse organismo na definição de pressupostos e princípios e na formulação de políticas e programas em diversos países. Não obstante, os preceitos do Banco Mundial e de outros organismos internacionais foram e são assimilados de forma diferenciada, de acordo com a correlação de forças internas de cada país. Em outras palavras, a conjuntura política, a dimensão e organização do movimento docente e dos estudantes, assim como os blocos no poder em cada um dos países, são elementos fundamentais para que as recomendações resultem, por vezes, em políticas distintas.
Coraggio (2009, p. 95) assinala que “[...] a análise econômica transformou-se na metodologia principal para a definição das políticas educativas.”. Este autor, bem como Pereira (2010), aponta que o fundamento da política educacional do Banco Mundial tem como marco teórico-metodológico a teoria econômica neoclássica e a teoria do capital humano.
No âmbito da educação superior, o Banco Mundial (1995) reafirmou no documento “Ensino superior: as lições da experiência” o papel do conhecimento como valor econômico. No texto, o Banco expressou que a experiência dos países periféricos do capitalismo mundial revelava que as universidades não estavam promovendo o crescimento econômico com êxito. Desse modo, o Banco sugeriu quatro diretrizes a serem adotadas para reforma da educação superior: 1) maior diversificação institucional, incluindo o desenvolvimento de instituições privadas; 2) diversificação das fontes de financiamento das instituições públicas, como a participação do aluno nos custos e do vínculo entre o financiamento do governo e resultados; 3) redefinição do papel do Estado, com especial atenção para a autonomia institucional e prestação de contas; e 4) adoção de políticas que enfatizem a qualidade e equidade.
O Banco Mundial (1995) partiu do pressuposto de que o modelo tradicional de universidade europeia é de custo elevado e inadequado para os países dependentes. Logo, uma maior diferenciação no ensino superior – no desenvolvimento de instituições não-universitárias e a promoção de estabelecimentos privados – ajudaria a atender à crescente demanda social e tornaria os sistemas de ensino superior mais sensíveis às necessidades do mercado de trabalho. Outro pressuposto é o de que, para que as instituições públicas possam alcançar uma maior qualidade e eficiência, os governos deveriam implementar reformas profundas na área de financiamento, a fim de mobilizar financiamento privado adicional, criar empréstimo estudantil e otimizar a alocação e uso de recursos fiscais entre e dentro das instituições.
Um terceiro pressuposto é o de que nos países com uma base industrial em desenvolvimento o grau de envolvimento do governo no ensino superior excedeu em muito o que é considerado economicamente eficiente. Assim, em vez de exercer controle direto, o papel do governo deveria ser o de fornecer um ambiente político propício para instituições públicas e privadas e utilizar os recursos públicos para incentivá-los a atender de forma eficiente a necessidades nacionais para o ensino e pesquisa. Isto implicaria no estabelecimento de um quadro político coerente (ou seja, regulamentação, avaliação e supervisão), maiores incentivos e mecanismos de apoio para a implementação de políticas orientadas para o mercado e maior autonomia administrativa das instituições públicas – o que significa, na verdade, tratar-se de uma “autonomia apenas operacional” (FREITAS, 1992), pois a função social das IES seria definida pelo Estado e pelo mercado, sendo avaliadas pelo cumprimento desse projeto político, além de serem obrigadas a buscar alternativas. Por fim, um último pressuposto seria o de que o progresso da reforma do ensino superior seria medido pela melhoria da qualidade de ensino e pesquisa (a serviço da economia), uma maior adaptabilidade da educação superior às demandas do mercado de trabalho e uma maior equidade (BANCO MUNDIAL, 1995).
Nessa ótica, a função principal da educação superior é, portanto, o fortalecimento da economia. O desenvolvimento social ocorreria através do aumento da eficiência e da competitividade da educação superior, com amplas facilidades aos empreendimentos privados, o que possibilitaria maiores opções para os estudantes. Disso resultaria um conjunto de políticas de regulação, tais como controles de preços nas matrículas, e mecanismos de supervisão, acreditação e avaliação das instituições privadas (Ibid., p. 6). Ou seja, propôs medidas de controle da eficiência e de iniciativas que aumentem a cobertura e apresentem mais pertinência, no sentido de que atendam a necessidades urgentes dos setores econômicos locais. Organismos de supervisão independentes poderiam formular e acompanhar as políticas de ensino superior, orientar e avaliar dotações orçamentárias e divulgar o desempenho das instituições para o benefício dos futuros alunos (Ibid., p. 10-11). Outra ideia presente foi a de as instituições ter maior autonomia, porém essa seria acompanhada de critérios de avaliação e de controle (Ibid., p. 11). O texto deixa claro: “[…] el Banco apoya el establecimiento de sistemas de acreditación y de evaluación del desempeño.” (BANCO MUNDIAL, 1995, p. 16). Mas fica implícita a ideia de que é uma avaliação voltada mais para os resultados obtidos, do que às formas de fazer ou aos processos.
No documento “Educação superior nos países em desenvolvimento: perigos e promessas”, o Grupo Especial formado pelo Banco Mundial (2000) teve como objetivo principal definir estratégias para a reforma do ensino superior nos países ditos em desenvolvimento e fornecer diretrizes e princípios gerais para avaliar o desempenho dos sistemas e instituições desse nível de ensino. De um modo amplo, defendeu como prioridade esforços para ampliar a quantidade e melhorar a qualidade do ensino superior. No fundo, continuou como pressuposto, no discurso que defende quantidade e qualidade, a ideia de gerar amplo capital humano flexível adequado à economia em constante transformação. Em outras palavras, um ensino moldável ao mercado, para formar uma base de força de trabalho, orientada tecnicamente, apta para o desenvolvimento econômico rápido. Nesse sentido, a educação superior deveria ser flexível o bastante para se adaptar às alterações nas demandas por matrículas, para as variações em interesses por campos de estudo e para se ajustar às mudanças de habilidades exigidas pelo mercado de trabalho (BANCO MUNDIAL, 2000, p. 56). Tudo isso com redução dos gastos públicos. O documento sugeriu como soluções práticas um modelo de financiamento misto, a otimização dos recursos humanos, um modelo de gestão baseado no princípio da eficiência (custo mínimo para o máximo de benefício possível) e o desenvolvimento de currículos especialmente na área de ciência e tecnologia. No campo da avaliação, recomendou que os tomadores de decisão da política pública têm a responsabilidade primária, entre outras coisas, de regular o setor privado de ensino superior para encorajá-lo a alcançar bons padrões acadêmicos e, ao mesmo tempo, evitar “abusos”. Orientou, ainda, que os financiadores internacionais apoiem atividades cujos objetivos principais sejam, entre outros, o de catalisar iniciativas sustentáveis e autossuficientes, incluindo a avaliação dos sistemas e instituições de ensino superior (BANCO MUNDIAL, 2000, p. 110).
Posteriormente, a pedido de Paulo Renato Souza, na época Ministro da Educação, o Banco avaliou o cenário do ensino superior brasileiro e fez recomendações sobre adequações na sua finalidade, estrutura, objetivos, financiamento e gestão. Esse estudo resultou no documento “Educação superior no Brasil: desafios e opções” (BANCO MUNDIAL, 2002). O texto afirmou que o governo brasileiro tinha várias opções políticas para aumentar o acesso ao ensino superior. Estes incluíam: a) aumento do financiamento privado das instituições públicas; b) redução de custos por aluno em instituições públicas, e c) cobrança de taxa de matrícula em universidades públicas (Ibid., p. XIII). Partindo de elogios ao Exame Nacional de Cursos (ENC-Provão), a fim de garantir controles de qualidade e a responsabilidade institucional como contrapartida da autonomia, o Banco recomendou a continuidade do exame como uma ferramenta flexível que mudasse conforme a evolução dos currículos.
Assim, tendo como fundamento o “economicismo”, em seu conteúdo geral:
[...] o Banco estabeleceu uma correlação (mais do que uma analogia) entre sistema educativo e sistema de mercado, entre escola e empresa, entre pais e consumidores de serviços, entre relações pedagógicas e relações de insumo-produto, entre aprendizagem e produto, esquecendo aspectos essenciais próprios da realidade educativa. (CORAGGIO, 2009, p. 102)
Nesse sentido, o BM apresenta um discurso predominantemente economicista, em que o conhecimento aparece como valor econômico; isto é, a educação como mercadoria. A eficiência, a competitividade, a produtividade e a privatização, portanto, são ideias fortemente presentes.
O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e as estratégias para o ensino superior na América Latina
O BID se constitui em outro organismo atuante na reforma educativa iniciada na década de 1990. A instituição publicou o documento “Educação Superior na América Latina e no Caribe: Documento de Estratégia” (BID, 1997), que descreveu os critérios pelos quais entendia o ensino superior na América Latina e Caribe e propôs uma estratégia de ação que o Banco poderia fazer para promover a melhoria, corroborando com ideias defendidas pelo BM. Como observa Chauí (2001), o termo “estratégia” já direcionou para uma perspectiva técnico-operacional e focalizou na eficácia administrativa. O documento centrou-se em quatro funções principais que o ensino superior deveria desempenhar na região: liderança acadêmica, educação profissional, formação técnica e ensino generalista. Cada função teria atribuições específicas, autonomia institucional diferenciada, distintos mecanismos de avaliação e de fontes de financiamento.
Para a função de (1) liderança acadêmica, o ensino, pesquisa e extensão deveria ser de alta qualidade, conforme os padrões acadêmicos acordados internacionalmente, e formar, para poucos, a elite intelectual. Apenas esta necessitaria de financiamento público substancial, a instituição gozaria de autonomia e seria avaliada pelos pares. Para a (2) educação profissional, que prepara para os mercados de trabalho específicos que requerem formação superior, os mecanismos de gestão institucional e as competências dos estudantes devem ser impulsionados pelo mercado de trabalho. A avaliação seria realizada pelas associações reguladoras da profissão. O (3) ensino técnico, composto por programas curtos de treinamento prático baseados em especialidades para posições de nível médio, deveria ter os mecanismos de gestão orientados pelo mercado de trabalho e deveria ser implementada a flexibilidade na administração e gestão dos currículos. A (4) educação generalista não necessitaria de custos elevados e os principais conceitos de qualidade devem ser o de valor agregado e eficiência (BID, 1997).
O documento, em sua essência, defendeu a tese da diversificação do ensino superior e o desmonte da universidade como instituição única. Sustentou também que a expansão deveria ser feita, preferencialmente, por meio de instituições com a função de promover o ensino técnico e a educação superior generalista e deveriam estar a cargo da esfera privada. O ensino superior, organizado dessa maneira, passaria a cumprir a função de dar continuidade a um processo de desenvolvimento da força de trabalho, fornecendo a um grande contingente da população o mínimo de educação para alcançar oportunidades. A tentativa seria compensar os efeitos econômicos e tecnológicos da globalização, preparando o capital humano para ser absorvido pelos ajustes da economia.
No tópico “Aperfeiçoamento e Controle de Qualidade” (BID, 1997, p. 29), o documento expressou que a qualidade estava caindo na região em função, em parte, do fato de que se avaliava a educação de massa com critérios que se aplicavam à educação voltada para a liderança acadêmica. Mas também reconheceu que a educação na maior parte da América Latina possuía problemas de qualidade e que, em razão disso, a prioridade deveria ser a adoção de políticas públicas para corrigir essa situação. Assim:
En síntesis, la principal reserva que debe señalarse es que ningún sistema de acreditación debería tratar de establecer un conjunto general de criterios aplicables a todo el sistema. Tampoco debiera haber dos conjuntos de criterios, uno aplicable a las universidades y otro aplicable a los institutos técnicos. Encarar actividades diversas con mecanismos sumamente similares es un viejo error que se repite en una nueva forma, esto es, en experiencias recientes con sistemas de acreditación. (BID, 1999, p. 29)
Em outras palavras, o documento não sugeriu que se deveria evitar a avaliação, mas sim que houvesse uma diversidade de tipos de avaliações. A avaliação deveria ser destinada a reformar sistemas de incentivo, coletar e divulgar informações e facilitar a tomada de decisões. Para o BID, onde menos se justificaria a avaliação seria nas instituições que se concentrassem na educação técnica, uma vez que é o mercado de trabalho quem controla a qualidade. Já na educação generalista existiria uma grande necessidade de avaliação, pois é necessário restringir a proliferação de IES e a produção de informação é mais urgente. Desse modo, as autoridades educacionais deveriam informar ao “consumidor” (estudantes, empresas e outras entidades) acerca do desempenho e dos resultados da educação superior generalista (BID, 1997).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Partindo da ideia de que as políticas para a educação superior, no contexto das décadas de 1990 e 2000, foram orientadas por organismos internacionais, procurou-se, nesta pesquisa, investigar as recomendações da UNESCO, do BM e do BID, no período de 1995 a 2002. Tendo como eixo central a expansão quantitativa, a diversificação de estruturas e a avaliação/controle da educação superior, esses organismos desempenharam um papel político e intelectual que forneceu as matrizes educacionais na América Latina.
Embora convergentes em diversos aspectos, ressalta-se que o discurso desses organismos não é integralmente homogêneo. Por um lado, a UNESCO, partindo de uma visão mais prospectiva, fundamentando-se nos princípios de cooperação internacional com base na solidariedade, no reconhecimento e apoio mútuo, equidade etc. possui internamente uma correlação de forças que possibilita uma relativa concepção progressista. Por outro lado, o BM e o BID, por seu caráter de financiadores, apresentam um discurso economicista, em que o conhecimento aparece como valor econômico; isto é, a educação como mercadoria. Logo, a eficiência, a competitividade, a produtividade e a privatização são ideias fortemente presentes.
Desse modo, a configuração da educação superior na América Latina, de uma maneira geral, tem sido marcada por um reduzido número de instituições de chamada liderança acadêmica e, ao mesmo tempo, uma massiva ampliação de instituições privadas de ensino generalista. Além disso, nota-se uma linha tênue que se construiu entre a educação como bem público e direito de todos e a educação vista como serviço com fins lucrativos. Nesse sentido, tem ganhado força a mercantilização da educação superior, marcada pela transnacionalização de empresas estrangeiras que instalam filiais ou franquias de universidades (às vezes, virtuais).
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