GESTÃO DEMOCRÁTICA: A PARTICIPAÇÃO DAS CRIANÇAS NAS ELEIÇÕES DE DIRETORES EM VITÓRIA-ES
Resumo: A gestão democrática é um processo de aprendizagem política na construção da cidadania que favorece as práticas sociais e viabiliza o surgimento de canais efetivos de participação e aprendizagem no jogo democrático. Este estudo é uma pesquisa qualitativa que teve como objetivo analisar, a partir dos diferentes sujeitos que compõem o contexto escolar, a participação das crianças de oito e nove anos no processo eleitoral para provimento da função de diretor nas Unidades de Ensino. A discussão dos dados produzidos se deu à luz da Sociologia da Infância, bem como de autores que discutem a gestão democrática. Observamos que os sujeitos participantes desta pesquisa sinalizam a importância da participação como um processo de aprendizagem permanente de cidadania.
Palavras-chave: gestão democrática; criança; participação
INTRODUÇÃO
A Constituição Brasileira de 1988 estabeleceu a gestão democrática como um dos princípios para a educação brasileira. Ela é regulamentada por leis complementares como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB nº 9.394/96 que, em seu artigo 3º - VIII, disciplina, como um dos princípios da educação escolar, a “[...] gestão democrática do ensino público, na forma desta Lei e da legislação dos sistemas de ensino”. Ao analisarmos este princípio, compreendemos que o exercício democrático é recente em nossa atuação política e, daí, podemos depreender os desafios na sua implementação.
A gestão democrática precisa ser compreendida não apenas como um princípio legal, mas também como um objetivo a ser alcançado e aprimorado cotidianamente. A forma como se realiza a gestão qualificará a dimensão da participação e a sustentabilidade do ambiente democrático educacional. É uma via de múltiplos caminhos que deve ser sempre construída no coletivo, considerando os distintos pontos de vista e constitui-se como um processo que se estabelece no exercício cotidiano de decisões pautadas no diálogo entre os diferentes sujeitos do espaço escolar.
Na rede municipal de ensino de Vitória – ES, um dos mecanismos para assegurar a gestão democrática é a qualificação da participação dos diversos sujeitos do espaço escolar através da eleição direta do(da) diretor(a) escolar. A eleição direta para gestores das unidades de ensino, teve início, em Vitória, em 1992, constituindo-se em importante experiência de gestão democrática e configurando-se como fator de mobilização da comunidade escolar.
A partir de 2008, o processo passou a ser normatizado pelo COMEV (Conselho Municipal de Educação). Uma das mudanças do processo de eleição para o triênio 2015/2018, em relação aos anteriores, foi a inclusão de crianças com 8 e 9 anos entre os eleitores, conforme o art. 32, inciso III da Resolução COMEV nº 07/2014.
No ano de 2015, após a ocorrência das eleições, foi instituída uma Comissão Especial à qual caberia um estudo sobre a inclusão dos estudantes com 8 e 9 anos, como votantes, no processo de Eleição para Diretores nas Unidades de Ensino da Rede Municipal de Vitória. Essa Comissão Especial deliberou por realizar uma pesquisa com o objetivo de analisar, a partir dos diferentes sujeitos que compõem o contexto escolar, a participação das crianças de oito e nove anos neste processo eleitoral.
Inicialmente, foram definidas como questões problematizadoras: como aconteceu o processo de escolha de diretores com a participação de estudantes a partir de 8 (oito) anos; qual a percepção do segmento de estudantes sobre a redução da idade de 10 (dez) para 8 (oito) anos; qual a percepção dos demais segmentos em relação à participação das crianças nessa faixa etária e qual a percepção das crianças da faixa etária de 8 – 9 anos que participaram pela primeira vez da eleição de diretores.
Esta pesquisa buscou fundamentação na Sociologia da Infância, bem como em autores que discutem a gestão democrática para a realização de estudos sobre a temática infância e crianças e, também, sobre processos de participação com suas potencialidades e limitações para essa faixa etária.
A escolha pela pesquisa qualitativa deu-se pelo fato dessa modalidade ser baseada na flexibilidade, tanto no que diz respeito aos instrumentos, quanto aos procedimentos da produção de dados, pois os vários dados produzidos qualitativamente demandam dos/as pesquisadores/as ou grupos de pesquisa, conhecimento e/ou experiência no sentido criativo e intuitivo para dialogar com o material produzido no campo de pesquisa.
Foram definidos como instrumentos para a pesquisa: entrevista semi estruturada – com Conselheiros da Comissão de Legislação e Normas/COMEV e Comissão Eleitoral Central; grupo focal com as crianças 8 (oito) e 9 (nove) anos; questionário on line para os demais estudantes e segmentos da comunidade escolar.
As entrevistas foram realizadas com 04 participantes do processo eleitoral; o grupo focal foi realizado com os estudantes da faixa etária entre oito e nove anos de idade. Para a condução do grupo foi adotado como disparador de conversa a contação da história Ah Cambaxirra, se eu pudesse... de Ana Maria Machado; os questionários, disponibilizados no site do COMEV, foram respondidos por 554 estudantes, 15 profissionais das Unidades de Ensino e 16 familiares dos(das) estudantes. Através de todos esses instrumentos de pesquisa descritos, foram alcançados 638 sujeitos.
ESPAÇOS DE PARTICIPAÇÃO NA GESTÃO DEMOCRÁTICA
Nos espaços escolares existem experiências diversas de participação, pois não são vias de mão única e sua construção sempre ocorre nos embates das ideias e decisões pautadas no interesse coletivo, ponderados pelas necessidades das pessoas e diferentes pontos de vista dos que compõem o contexto escolar. Tendo como pressuposto básico a participação, ela é relacional, dialógica, situada no tempo e no espaço e requer tomada de decisão política.
A gestão democrática é a expressão de um aprendizado de participação pautado pelo dissenso, pela convivência e respeito às diferenças em prol do estabelecimento de espaços de discussão e deliberação coletivos (DOURADO, 2006, p. 67).
Nesse contexto, a gestão democrática possibilita o diálogo na escola e necessita constar no rol das práticas sociais de forma a proporcionar espaços de aprendizagem política na construção da cidadania. É nesse tecer de modos de realizar gestão educacional que se viabiliza a experiência da participação na intenção de implantar novas possibilidades de culturas escolares que se traduzam em aprendizagens, diálogos, autonomia e participação.
De acordo com Dourado (2006), a gestão democrática é um processo de aprendizagem política que não fica restrita apenas ao fazer pedagógico, mas favorece possibilidades de prática social na perspectiva da autonomia, em que viabiliza o surgimento de canais efetivos de participação e aprendizagem no jogo democrático, repensando estruturas de poder autoritário. Assim, pressupõe a participação efetiva dos vários segmentos da comunidade escolar e essa participação incide diretamente nas mais diferentes etapas da gestão escolar (planejamento, implementação e avaliação), tanto no que diz respeito à construção do projeto e processos pedagógicos, quanto às questões de natureza burocrática.
Para que a tomada de decisão seja partilhada e coletiva, é necessária a efetivação de vários mecanismos de participação, tais como: o aprimoramento dos processos de escolha ao cargo de dirigente escolar; a criação e a consolidação de órgãos colegiados na escola (conselhos escolares e conselho de classe); o fortalecimento da participação estudantil por meio da criação e da consolidação de grêmios estudantis; a construção coletiva do Projeto Político Pedagógico da escola; a redefinição das tarefas e funções da associação de pais, na perspectiva da construção de novas maneiras de se partilhar o poder e a decisão nas instituições.
Com a aprovação do Plano Municipal de Educação, através da Lei 8.829/2015, ficou garantida a normatização das eleições dos(as) diretores(as) escolares municipais como prerrogativa do Conselho Municipal de Educação, conforme redação aprovada para a meta 19 que está assim exposta:
Aperfeiçoar o processo de gestão democrática, garantindo a eleição dos(as) diretores(as) escolares municipais e ampla participação da comunidade escolar, conforme norma emanada do conselho municipal de educação (grifo nosso) e fortalecimento dos Conselhos de Educação, de Escola, de Acompanhamento e Controle Social do FUNDEB, Conselho de Alimentação Escolar e outros.
Após vinte e dois anos da primeira eleição e do sétimo pleito, o Conselho Municipal de Educação discutiu a necessidade de aprimorar e ampliar o processo democrático de escolha dos gestores escolares. Com base em muitos debates foi aprovada a alteração da norma, ampliando a participação estudantil na eleição dos diretores, garantindo o direito de voto a partir de oito anos de idade.
APRENDIZAGEM E EXPERIÊNCIA DE CIDADANIA NA GESTÃO DEMOCRÁTICA
Quando falamos em participação infantil temos muitos desafios para a sua efetivação, pois as crianças ainda são consideradas como alguém menor ou o não adulto. O reconhecimento das crianças como sujeitos de direito, que necessitam ser escutadas e ter as suas falas consideradas é recente em nosso processo histórico. Nesse contexto, podemos apontar que nossas instituições ainda são permeadas por práticas que as julgam “[...] desprovidas de vontade ou racionalidades próprias e como portadoras de imaturidade social [...]” (SARMENTO, FERNANDES e TOMÁS, 2007, p. 187).
Assim, podemos entender que a participação das crianças envolve muitos elementos e não é suficiente abrir possibilidades para que sejam eleitores(as), pois o não reconhecimento das mesmas como interlocutores válidos para o diálogo presentificado nas estruturas de nossos espaços escolares, pode tornar as eleições algo exclusivo para o universo adulto, caso não seja trabalhado como um espaço para o exercício permanente de aprendizado de cidadania para todas as gerações.
Diversos autores defendem que chegou o momento de dar visibilidade às posições das crianças e assinalam que elas foram esquecidas dos espaços de participação e contribuição e, a partir desse entendimento, novas posturas emergiram nos diversos estudos sobre essa temática. Poderíamos entender que, com esses avanços, o impasse estaria resolvido. Entretanto, Dominique Colinvaux (2009, p. 45) sinaliza que:
[...] o que me aparece como dilema: de um lado a criança como um ser pleno, potente, inteiro, cuja voz e ação devem, por isso mesmo ser reconhecidas e respeitadas e, de outro, práticas adultas e institucionais que negam esta mesma completude e capacidade para estar no mundo, (re)afirmando as crianças como sujeitos de falta […].
Nesse aspecto, ao falarmos sobre participação infantil em processos decisórios nos deparamos com argumentos contrários que podem ser compreendidos no contexto de nossa sociedade adultocêntrica, conforme apontam diversos estudiosos da sociologia da infância. Os estudos realizados sobre essa temática colocam-nos frente a um novo paradigma: as crianças necessitam ser ouvidas e consideradas nos contextos sociais dos quais participam.
As crianças demonstram que têm compreensão dos aspectos da gestão escolar “[...] tecendo um 'olhar de dentro' das relações escolares, que pode já ter sido 'naturalizado' pelo adulto” (ANTUNES, 2007, p. 131). Isso ficou evidenciado quando, no percurso da pesquisa, uma criança afirmou que “[...] a gente precisa de alguém para organizar as coisas importantes da escola, mas também passeios, diversão e lanche […]”, outra criança sinalizou que o atual gestor:
[…] melhorou o parquinho, trocou as cadeiras da sala de vídeo que tava quebrada, pintou e reformou as portas, colocou ar condicionado em algumas salas, trocou o quadro em algumas salas, melhorou o aprendizado na nossa leitura, matemática, português, artes, educação física... a biblioteca melhorou... tivemos aula no Convento da Penha […] (estudante participante do grupo focal).
Ao falarem sobre a escola demonstraram que têm conhecimento de que a escola precisa de um gestor e que essa pessoa necessita estar atenta ao currículo que atenda aos anseios do seu universo. Nesse sentido, uma criança disse que “[…] é importante um diretor ajudar as crianças, ser gentil, conversar e ter diálogo com os alunos para que eles possam aprender e desenvolver, assim, aprender ler e escrever, para ser alguém quando crescer... ter dinheiro para ter casa.” (estudante participante do grupo focal). Outro estudante também apresentou a seguinte fala sobre a ex-gestora:
Tinha uma diretora que era tão chata que escondia um montão de coisa no armário dela e quando ela foi embora e que abriram o armário tinha giz de cera e um montão de coisa assim, ela escondia os matérias pedagógicos […].
Entretanto, as crianças ainda podem ser invisibilizadas e adjetivadas como “[...] aquela que não sabe, não pode, que não tem” (COLINVAUX, 2009, p. 46). Nesse aspecto, a criança pode ser percebida com base no senso comum, e são entendida como um ser incompleto, que precisa das experiências pedagógicas por meio de atividades planejadas para se “adultizarem”, que as levem a solucionar suas falhas e incompletudes. Por isso, alguns teóricos em um passado recente relacionavam a criança com os índios, os colonizados, ou seja, o incapaz e impossível de se constituir autônomo.
A infância possui um status ambíguo, uma espécie de indeterminação entre a identidade e a diferença, entre a igualdade e a desigualdade, principais categorias que, como o assinala Todorov, estruturam a relação como Outro durante a conquista da América. Esse status está dado pelo fato de as crianças serem, ao mesmo tempo, “um de nós”, no sentido de terem nascido de nós e de prolongarem nossa existência depois da morte, e diferente de nós, na medida em que não falam nossa língua e desconhecem nossos costumes. Desse modo, a meio caminho entre o próprio e o alheio, entre o mesmo e o Outro, entre a identidade e a diferença, a infância revelou-se como um conceito-chave na construção de uma nova tecnologia de controle social: o colonialismo (LÓPEZ, 2008, p. 26).
Corroborando com essa perspectiva, um profissional, quando foi questionado sobre a participação dos estudantes a partir de oito anos de idade no processo eleitoral de diretores das Unidades de Ensino, apontou que as crianças “[...] são muito imaturas e podem ser facilmente estimuladas por um adulto [...]”. Continuando o pensamento de participantes desse segmento na pesquisa, outro profissional argumenta que: “Acho precoce. Penso que a iniciativa é boa, mas precisamos melhorar a abordagem, pois são influenciáveis e a qualquer promessa se encantam. O voto é sério [...]”. Essa compreensão em relação à imaturidade das crianças menores para tomarem decisões também se estende às crianças maiores e adolescentes, quando um deles argumenta que “Eles não deveriam votar porque são pequenos e não sabem de nada”.
Sarmento, Soares e Tomás (2016) destacam que a Sociologia da Infância tem trilhado a consolidação da infância como um construto social e as crianças como atores sociais plenos e competentes. Ressalta que, quando se coloca em análise a cidadania, a discussão ainda está sustentada em conceitos e modelos tradicionais que reduzem o seu exercício à fase adulta.
Nesse contexto, salienta que é necessário rever o conceito de cidadania, alargando a sua compreensão a partir de novos parâmetros que incluam distintos grupos sociais, dentre os quais a infância, que tem como um dos fatores que justificam a sua não participação associada à questão da idade, vinculada a padrões que definem a infância como um tempo em que é essencial o controle e a proteção.
Podemos compreender que, em nossa sociedade, o espaço ocupado pelas crianças, em grande parte, permanece à margem dos processos decisórios instalados no contexto da vida pública. Isso é evidenciado quando alguns participantes da pesquisa argumentam que crianças são sujeitos imaturos. Essa informação apareceu tanto nos questionários semiestruturados online, quanto nas entrevistas e apresentaram uma defesa, ora por serem facilmente influenciáveis pelos adultos, ora sob uma perspectiva protecionista, por entender que as crianças seriam colocadas frente a uma responsabilidade que as deixariam fragilizadas, tendo em vista a sua pouca capacidade de análise crítica para votar conscientemente. Um dos entrevistados pontuou que não percebeu avanços e nem fragilidades nesse processo eleitoral realizado em 2014 e afirmou que “[...] pode ser que as crianças votem apenas porque gostam de uma pessoa”, entretanto, esse mesmo entrevistado conclui que “[...] isso também pode acontecer com o adulto.” Assim, evidenciou-se que as mesmas argumentações utilizadas para defender a não participação das crianças, no caso desse entrevistado, apareceu também como possibilidade de fragilidade para os adultos. Entretanto, outro entrevistado ressaltou que “[…] essa criança hoje é uma criança que atua, pensa, age e entendo que essa criança é capaz, sim! […] elas estão conectadas, antenadas em tudo o que se passa na vida, na escola, então, por isso, é importante a sua participação.”
Ao visualizarmos as questões que dizem respeito aos pontos positivos dos estudantes votarem, observamos que a maioria dos(as) respondentes, acredita ser positiva a inserção das crianças de 8 e 9 anos no processo de escolha de diretores. Quando juntamos os dados dos questionários com os do grupo focal, fica evidenciado que o segmento de estudantes acredita na importância e validade deste voto como processo de cidadania. Dentre os aspectos positivos apresentados, justificam que é um processo de aprendizagem, que é um processo democrático, que as crianças têm maturidade e que a escolha é um direito, pois elas também fazem parte do contexto escolar.
Ao analisamos os dados, percebemos que a margem entre os profissionais que concordam e os que discordam de que os estudantes, a partir de oito anos, sabem votar, ficam muito próximas e quando a investigação se aprofunda nesta pergunta para que os profissionais possam esclarecer as suas opiniões acerca do sim ou do não, fica evidente a consideração de que, ao mesmo tempo em que os estudantes podem ser manipulados por uma certa imaturidade, o voto é um importante avanço no sentido da aprendizagem da cidadania. Nesse sentido, a maioria dos respondentes acredita ter sido importante a inserção das crianças de oito e nove anos no processo de escolha de diretores.
Quando analisamos a opinião das famílias, observamos que 50% acredita que foi importante a inclusão das crianças de oito e nove anos e 50% posicionam-se contrários. No entanto, quando justificam as suas opiniões, fica evidenciado, também, o entendimento da importância do voto enquanto aprendizagem da cidadania.
Ao analisarmos os dados podemos afirmar que os três segmentos concordam que o processo de eleição de diretores é um importante espaço de aprendizagem para toda a comunidade escolar.
Percebemos que, ao cruzarmos os dados, a tese de manipulação torna-se muito frágil, pois os adultos envolvidos na pesquisa admitem que a manipulação não ocorre apenas com as crianças, mas em todas as faixas etárias, pois a participação é um processo de aprendizado permanente, que se exerce na prática e que os adultos, também, configuram-se nesse processo de participação. Dessa forma, na análise do contexto geral da pesquisa, podemos indicar que a ideia da imaturidade não é aceita pelos participantes desta pesquisa como exclusividade da infância.
Sarmento, Soares e Tomás (2016) defendem um conceito de cidadania ativa e crítica que:
[…] concebe as crianças e jovens como agentes sociais imprescindíveis e participativos na sociedade, implicando não só o reconhecimento formal de direitos mas também as condições do seu exercício através de uma plena participação e de um real protagonismo, em todas as esferas da vida social.
A participação apresenta-se, então, como condição absoluta para tornar efectivo o discurso que promove direitos para a infância e, portanto, a promoção dos direitos de participação, nas suas várias dimensões – política, econômica e simbólica – assume-se como um imperativo da cidadania da infância. (p. 1)
É na condição de participante que a criança se constitui como sujeito crítico do contexto social, percebendo que as relações são tecidas e a gestão da escola ocorre de forma processual. Em seus relatos, elas demonstram ter uma noção temporal e fazem análises a partir de suas vivências. Nesse sentido, podemos concordar com os referidos autores quando sinalizam que é no exercício da participação que as crianças experimentam um real protagonismo.
Soubemos porque todo mundo tinha 9 anos e eu tinha só 8 anos e eu sabia em quem ia votar, eu tinha noção! Ai eu coloquei sim, que eu queria votar na tia ...; eu, desde os 4 anos, já tinha juízo para votar! Porque eu já me interessava, eu via propaganda política essas coisas assim... pra mim, aos 8 anos, as pessoas que assistem propaganda política, essas coisas assim, pode votar! ( criança participante do Grupo Focal).
Com os argumentos apontados por essa criança, podemos perceber que elas têm interesse em participar e clareza do que seja um espaço decisório. Elas afirmam que têm vontade e condições para contribuir no processo de gestão da escola, demonstrando, assim, o seu compromisso com a escola pública. Desse modo, por um lado poderia ser até perverso negar esse espaço de participação a essa geração ansiosa em contribuir com as decisões da vida pública e, por outro lado, ainda reafirmamos, a partir dos dados levantados nesta pesquisa, a importância dessa experiência da participação como um processo de aprendizagem e exercício de cidadania que se faz nas vivências cotidianas.
Para exemplificar a discussão aqui levantada, trazemos a fala de uma criança no encontro do grupo focal, quando diz: “Eu votei na tia... porque ela sempre me ajudou aqui na escola. Eu fazia muita coisa errada e ela conversava comigo, agora eu sou uma criança melhor. Ela é muito legal, ela ajuda cada um aqui, ela tem dialogo, como os outros falaram”. Nesse sentido, podemos apontar que as crianças têm, como concepção, que a gestão da escola deve ser baseada no diálogo, e que este princípio norteia a gestão democrática.
O desafio de ouvir as vozes das crianças nos espaços escolares coloca-se para além do estabelecimento de metodologias, como um princípio político. Dessa forma, a participação infantil abarca uma concepção de criança investida de força, mesmo que essa atuação possa ocorrer com efeitos e intensidades distintos nas diferentes instâncias. Nesse contexto, as condições promovidas para que se torne possível a escuta das crianças necessitam de análises e problematizações permanentes no intuito de evitar as armadilhas de uma pseudo participação e fortalecer a participação com um caráter político e vinculada a uma concepção de criança cidadã.
A escola, enquanto instituição organizada para atender às crianças, jovens e adultos é um espaço socializador que exerce um importante papel na formação política e cidadã dos que dela participam, contribuindo no conhecimento de mundo e na construção de relacionalidades, atravessadas pelas diferentes gerações e entre os seus próprios pares. Podemos afirmar que as crianças se constituem em contextos híbridos, perpassados por crianças, jovens e adultos que, em suas singularidades, influenciam e são influenciadas mutuamente, em um processo de constantes negociações e, nesse exercício, reconhecem-se em suas potencialidades e em seus limites e, assim, desenvolvem sua capacidade de argumentação e constroem suas identidades pessoal e coletiva.
Entendemos que o diálogo entre os diferentes sujeitos é fundamental, pois não há gestão democrática sem participação, entretanto, não é uma prática simples, não deve ser utilizada como uma técnica de gestão e controle, pois precisa ser concebida como um pressuposto, como um princípio de liberdade e igualdade, como um direito político instituído em que sua objetivação torna-se possível a partir de uma relação dialógica, que considera as situações concretas da realidade, constituída na diversidade de pensamentos e interesses, diferenças geracionais, étnicas, religiosas, sexuais e, portanto, um espaço afeito de tensões.
Na medida em que estamos diante de novos construtos legais e conceituais que reconhecem a crianças como sujeito de direito, que têm voz e direito de manifestarem seus pensamentos e suas necessidades, precisamos de um modelo de escola que esteja atenta às demandas apresentadas pelas mesmas a fim de tornar o ambiente escolar um lugar habitado por esse grupo geracional.
Os autores Sarmento, Fernandes e Tomás (2007) apontam, ainda, a importância das propostas educativas contemplarem uma participação infantil que supere a dimensão dogmática, que se dá apenas no plano formal, pois é esvaziada de sentido e fica restrita a um caráter didático. Sinalizam que esforços têm sido empreendidos no sentido de provocar mudanças nas formas estruturais de como a escola se organizou na modernidade, a fim de habilitá-la com uma perspectiva política e cumprir com o seu papel primordial frente aos direitos das crianças e adolescentes, quer seja na aquisição e construção de saberes e conhecimentos, quer seja no respeito e reconhecimento à diversidade cultural e individual, quer seja no exercício dos direitos políticos que envolve a participação nas decisões coletivas.
[…] Neste sentido, torna-se importante considerar questões de acesso ao estatuto de cidadania a partir de diferentes pontos de vista, que possam incluir grupos e pessoas excluídas – é aqui, então que as crianças são maioritariamente incluídas na discussão uma vez que têm acesso aos direitos sociais de cidadania, mas permanecem sem acesso por exemplo, a direitos políticos, nomeadamente de participação e de processos de co decisão.
Tal como diferentes autores têm vindo a sugerir, as questões de exclusão assumem-se como centrais quando aplicadas à cidadania e participação infantil, tornando-os no único grupo social sem acesso formal à participação política (TREVISAN, 2016, p. 2 e 3).
Entretanto, essa questão não pode ser analisada de forma generalista, ou seja, precisa ser compreendida a partir de cada contexto com suas características e nuances. Alguns marcos legais tendem a desmontar a argumentação do paradigma protecionista da infância e inaugura oportunidades de participação para as crianças nos seus processos de vida coletiva. Esse movimento contrapõe-se à perspectiva de manifestação das vozes das crianças como ilegítimas e insignificante no que diz respeito à participação política.
Nesse sentido, a escola é um espaço privilegiado, um lugar onde se desenrolam “ensaios” para o exercício da vida em coletividade e deve ser compreendido como um local educativo, viável para a promoção da participação política dos sujeitos. É importante pautar a participação infantil em suas potencialidades e em seus limites e registrar que afloram experiências nas nossas escolas ancoradas em propostas educativas que se alicerçam na compreensão das crianças como seres com capacidades diferenciadas dos adultos, entretanto, em uma perspectiva válida e necessária para a renovação de conceitos e paradigmas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao analisar, a partir dos diferentes sujeitos que compõem o contexto escolar, a participação das crianças de oito e nove anos no processo eleitoral para Diretor nas Unidades de Ensino da Rede Municipal de Vitória/ES, observamos que a participação infantil é influenciada por elementos que estão vinculados às relações de poder estabelecidas pelas gerações adultas sobre as infantis, embora tenhamos um reconhecimento da criança como sujeito de direitos, amparados em estatutos legais, que precisam ser respeitados e colocados em pauta, pois a sua implementação fica, muitas vezes, restrita ao nível das discussões ou esses direitos são exercidos de forma superficial. Sendo assim, é importante reconhecer e dar visibilidade a essas limitações, pois esses fatores podem criar empecilhos para a efetivação de espaços de participação política das crianças.
Nesse sentido, Sarmento, Soares e Tomás (2016, p. 190) aponta que :
[…] podemos afirmar que a participação das crianças no espaço restrito das relações com os outros que lhe são significativos, sejam eles adultos ou crianças, é afectada por factores que decorrem das relações de poder e hierarquia que existem entre adultos e crianças. Assim, considerar a participação das crianças no espaço público exige que tenhamos em conta a influência das estruturas e instituições que as envolvam – sejam elas educativas, econômicas, jurídicas ou sociais –, que frequentemente se apresentam, como estruturas desconhecidas e fechadas, que funcionam como obstáculos para a construção de espaços de participação infantil.
As condições objetivas de participação das crianças e possibilidades de exercerem sua cidadania confrontam-se com a constituição de nossa sociedade, colocando em pauta a necessidade de instituir ações que contribuam para desconstruir as estruturas fundamentadas em arquétipos que se contrapõem a uma visão pluralista de infância, de crianças como seres competentes e com capacidades de contribuir em processos decisórios que envolvam suas vidas.
Nesse contexto, este estudo aponta que, tanto estudantes quanto profissionais e familiares sinalizaram a importância da participação das crianças a partir de oito anos no processo eleitoral para escolha de diretores, visto que elas compõem a comunidade escolar e trazem considerações singulares para o processo de gestão democrática. Desse modo, é fundamental a criação de espaços de participação pautados em relações intergeracionais solidárias, de sujeitos que se reconheçam como distintos, todavia potentes, válidos e com capacidade de influenciar em processos decisórios, exercendo os seus direitos políticos, como um processo de aprendizagem permanente de cidadania.
REFERÊNCIAS
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