O TRABALHO COMO PRINCÍPIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL

Resumo: A educação profissional é a modalidade de ensino que assume de forma explícita o seu objetivo de preparar para o trabalho, tendo como uma de suas características, desde a sua origem, a dualidade estrutural do ensino: propedêutico versus profissional. Para a compreensão dessa dualidade é necessário o entendimento de que tal fato deriva de relações conflituosas de uma sociedade que, dividida em classes, é marcada pela divisão técnica e social do trabalho. Situa-se nesse estudo, a análise do desenvolvimento das relações entre as categorias trabalho e educação na sociedade capitalista, para que se compreenda essa dicotomia entre trabalho intelectual e trabalho manual, bem como os limites e possibilidades de sua superação, tendo como foco o trabalho como princípio educativo.

Palavras chave: educação; educação profissional; trabalho.


A grande maioria dos animais, desde o seu nascimento, tem inscritos em sua carga genética os mecanismos de adaptabilidade à natureza, denominados de instintos e reflexos. Tais mecanismos determinam o grau de especialização da espécie e lhe são repassados geneticamente por seus antepassados. Quanto mais adaptado à natureza se encontra o animal, maior é seu nível de especialização.

Todavia, esses atos animais não têm história, não se renovam e permanecem os mesmos ao longo do tempo, salvo no que se refere às modificações determinadas pela evolução da espécie e as decorrentes de mutações genéticas. Mas ainda que ocorram essas alterações, elas continuam valendo para todos os indivíduos da espécie, passando a ser transmitidas hereditariamente (ARANHA E MARTINS, 2003, p. 22).

Diferente da ideia de perfeição que possa transparecer o significado dessa particularidade, tal situação carrega uma rigidez na sua adaptação às mudanças no mundo natural, pois,

conforme a natureza se altera impondo mais modificações morfológicas ao organismo, este entra num caminho sem volta acarretando: 1 – a diminuição da possibilidade de sua espécie gerar novas espécies, pois o seu organismo se torna cada vez mais especializado; e 2 – por conseguinte, a sua espécie se dirige a um beco chamado extinção (LOPES, 2011, p. 5).

Já o ser humano é um ser cuja especialização para viver no mundo natural se faz incompleta, pois seus ancestrais percorreram um processo evolutivo diferente: a não-especialização. Tal incompletude, ao invés de ser um problema, revelou-se positiva no processo evolutivo do ser humano visto que, ao contrário dos outros animais que agem de forma instintiva, o ser humano age de forma consciente executando seus atos com maior plasticidade, escolhendo os meios necessários para atingir os fins propostos. Assim, de acordo com Aranha e Martins (2003), o fazer humano é carregado de finalidades.

O ser humano como ser biológico não-especializado, ser natural, dependente da natureza, possui necessidades físicas imediatas a serem supridas para sua existência e reprodução. Para consumar tais necessidades, ele interage com o mundo natural transformando-o e, assim, produzindo sua subsistência. Nesse sentido, Marx e Engels (2006) afirmam que

o primeiro pressuposto de toda a existência humana e, portanto, de toda a história, é que todos os homens devem estar em condições de viver para poder fazer história. Mas, para viver, é preciso antes de tudo comer, beber, ter moradia, vestir-se e algumas coisas a mais. O primeiro fato histórico é, portanto, a produção dos meios que permitam que haja satisfação dessas necessidades, a produção da própria vida material, e de fato esse é um ato histórico (MARX E ENGELS,p. 53).

Segundo Saviani (2007), a ação de transformar a natureza para suprir as necessidades humanas é o que conhecemos com o nome de trabalho. Para o autor, a essência do homem é o trabalho.

Podemos compreender, na fala de Saviani, que o trabalho não é inato ao ser humano, e sim, algo que necessita ser construído pelo próprio homem, diante do surgimento de novas necessidades materiais. Assim, ao agir sobre o mundo natural, por meio do trabalho, tal ação desencadeia nexos causais (sequência de causas e efeitos), pois ao passo que transforma a natureza, o homem também se modifica.

Para Engels (2004), o trabalho é a condição básica fundamental para a existência humana. Há uma relação metabólica de mútua transformação entre o ser humano e o mundo natural no qual o ser humano se naturaliza e a natureza se humaniza. Pelo trabalho o ser humano é capaz de interagir com a natureza, modificá-la, subsistir e reproduzir-se por meio dos produtos gerados nas modificações realizadas.

Nesta mesma perspectiva, Lukács (2004) conceitua trabalho como atividade humana que transforma a natureza a fim de obter os bens necessários à reprodução social.

Ao agir sobre a natureza, o ser humano, também, se modifica desenvolvendo novas funções em sua estrutura física (cérebro, mãos etc.). Nesse processo, ele descobre novas formas de utilização dos instrumentos de trabalho e altera a sua forma de relação com os outros homens. Segundo Engels (2004),

em face de cada novo progresso, o domínio sobre a natureza, que tivera início com o desenvolvimento da mão, com o trabalho, ia ampliando os horizontes do homem, levando-o a descobrir constantemente nos objetos novas propriedades até então desconhecidas [...] o desenvolvimento do trabalho, ao multiplicar os casos de ajuda mútua e de atividade conjunta [...] tinha de contribuir forçosamente para agrupar ainda mais os membros da sociedade (ENGELS, 2004, p. 15).

Dentro das formas societais, da mais simples a mais complexa, o desenvolvimento do trabalho tem papel importante no surgimento das inter-relações dos homens. Segundo Antunes,

no seu sentido primitivo e limitado, por meio do ato laborativo, objetos naturais são transformados em coisas úteis. Mais tarde, nas formas mais desenvolvidas da práxis social, paralelamente a essa relação homem natureza, desenvolve-se inter-relações com outros seres sociais, também em vistas à produção de valores de uso”. (ANTUNES, 2009, p. 139).

A passagem do ser biológico ao ser social ocorre no processo dialético entre o ser humano e a natureza, mediado pelo trabalho. Um exemplo desse salto consiste na comparação da mão do macaco com a mão do ser humano, desenvolvida por Engels ao destacar a

grande a distância que separa a mão primitiva dos macacos, inclusive os antropóides mais superiores, da mão do homem, aperfeiçoada pelo trabalho durante centenas de milhares de anos. [...] O número das articulações e dos músculos, sua disposição geral são os mesmos nos dois casos; mas a mão do selvagem mais atrasado pode realizar centenas de operações que nenhum macaco pode imitar. Nenhuma mão de macaco jamais produziu a mais rústica faca de pedra” (ENGELS, 2004, p. 13).

Assim, apoiado nos trabalhos de Marx e Engels, Lukács (2004) deixa claro que o trabalho é a pedra fundante do homem como ser social e, nessa perspectiva teórica, não seria exagero assegurar que o trabalho é uma atividade específica do ser humano. Assim, concordo com Marx (2004, p.30), quando afirma que o trabalho, em relação ao mundo objetivado, é uma forma exclusivamente humana e o elemento fundante do ser social, ou seja, sua protoforma ou sua forma originária. Constitui a primeira forma de atividade humana: “um processo entre o homem e a natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo com a natureza” (MARX, 2004, p.30). De acordo com o fundador do Materialismo Histórico Dialético,

pode-se distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião ou por tudo que se queira. No entanto, eles próprios começam a se distinguir dos animais logo que começam a produzir seus meios de existência, e esse salto é condicionado por sua constituição corporal. Ao produzir seus meios de existência, os homens produzem, indiretamente, sua própria vida material (MARX E ENGELS, 2006, p. 44).

No processo de trabalho, a forma de intervenção do ser humano na natureza se dá pela mediação dos objetos de trabalho que requerem do homem, em relação à sua utilização, o desenvolvimento de habilidades não só práticas, mas também reflexivas. Todo esse procedimento é realizado de forma planejada e orientada a um determinado fim.

Nesse sentido, diferente dos outros animais, que operam de forma instintiva, ou seja, ignoram a finalidade de sua ação, o homem ao agir sobre a natureza, o faz de forma intencional. Essa intencionalidade é fruto da consciência, da subjetividade humana (conhecimento, habilidades, emoções, etc.) para antever, de modo abstrato, todo processo de criação (escolha dos materiais, utilização dos instrumentos de trabalho), bem como o resultado de uma nova realidade (objeto pronto) antes de sua concretização. Os atos humanos são voluntários e conscientes da finalidade pretendida. Tal processo de idealização é bem exemplificado por Marx na diferenciação do arquiteto e da abelha. Para ele,

o que distingue, de antemão o pior arquiteto da melhor abelha é que ele construiu o favo em sua cabeça, antes de construí-lo em cera. No fim do processo de trabalho obtém-se um resultado que já no início deste existiu na imaginação do trabalhador, e portanto, idealmente. Ele não apenas efetua uma transformação da forma da matéria natural; realiza, ao mesmo tempo, na matéria natural seu objetivo, que ele sabe que determina, como lei, a espécie e o modo de sua atividade e ao qual tem de subordinar sua vontade (MARX, 2004, p. 30).

Ao projetar os resultados de sua práxis, o ser humano está exteriorizando sua subjetividade, ou seja, ele está confrontando seus conhecimentos e suas habilidades em uma relação dialética com o mundo natural, o que o faz conhecedor do mundo exterior, ao mesmo tempo em que interage com as causalidades da natureza modificando-a. Esse “agir sobre” desenvolve novas habilidades e conhecimentos em uma causalidade posta, criada pelo homem, a qual podemos chamar de “produto do trabalho”, ou seja, a ideia objetivada, que altera uma realidade já existente. Tal processo leva a novas determinações que, por sua vez, criam novas necessidades que só poderão ser supridas com outros conhecimentos e habilidades a serem adquiridos. Disso resulta uma acumulação social que tem a finalidade de atender às necessidades humanas em uma ação teleológica, ou seja, uma atividade adequada a um fim.

É importante salientar que o acúmulo social desses novos conhecimentos e habilidades se deve principalmente à transmissão, de geração em geração, do desenvolvimento e fixação das técnicas de meios de trabalho.

O uso e a criação de meios de trabalho, embora existam em germe em outras espécies de animais, caracterizam o processo de trabalho especificamente humano [...]. A mesma importância que a estrutura de ossos fósseis tem para o conhecimento da organização de espécies de animais desaparecidos, os restos dos meios de trabalho têm para a apreciação de formações socioeconômicas desaparecidas. Não é o que se faz, mas como, com que meios de trabalhos se faz, é o que distingue as épocas econômicas. Os meios de trabalho não são só os medidores do grau de desenvolvimento da força humana, mas também indicadores das condições sociais nas quais se trabalha (MARX, 2004, p. 32–33).

Frente à hostilidade do mundo em que vivia, o ser humano não tinha outra alternativa a não ser agrupar-se e, coletivamente, produzir sua existência, garantindo sobrevivência para si e para os seus pares, por meio da transformação da natureza. Nessa época, o trabalho tinha o caráter de socialização e cooperação social entre os seres humanos. Por meio dessa cooperação, dessa convivência grupal, dessa interação social, os homens sentiram a necessidade de uma comunicação, diferente da comunicação gestual, que os levassem a uma coordenação múltipla do trabalho: surge a linguagem por meio de sons. Assim,

[...] o desenvolvimento do trabalho, ao multiplicar os casos de ajuda mútua e de atividade conjunta [...] tinha de contribuir forçosamente para agrupar ainda mais os membros da sociedade. Em resumo, os homens em formação chegaram a um ponto em que tiveram a necessidade de dizer algo uns aos outros. [...] Primeiro o trabalho e, depois dele e com ele, a palavra articulada, foram os dois estímulos principais sob cuja influência o cérebro do macaco foi se transformando gradualmente em cérebro humano – que apesar de toda sua semelhança, supera-o consideravelmente em tamanho e perfeição. E à medida em que ele desenvolvia o cérebro, desenvolvia-se também seus instrumentos imediatos: os órgãos do sentido (ENGELS, 2004, p. 15-16).

A partir do desenvolvimento da linguagem falada, dos órgãos dos sentidos e da convivência em grupo, surge o homem como ser social. Como todos esses itens são atributos que se desenvolveram a partir do trabalho, como uma ação transformadora da realidade, pode-se dizer que “o trabalho é a atividade humana por excelência, pela qual o homem intervém na natureza e em si mesmo. O trabalho é condição de transcendência e, portanto, é expressão da liberdade” (Aranha e Martins, 2003, p. 25).

A transformação da natureza mediada pelo trabalho possibilita ao ser humano satisfazer suas carências. À medida que tais carências são saciadas, porém, surgem outras que o levam a novas relações históricas. Assim, a história humana, construída por meio da organização do trabalho na sociedade, se desenvolve de formas diferentes no decorrer do tempo.

O homem é, de fato, um ser em permanente construção, que vai se fazendo no tempo pela mediação de sua prática, de sua ação. Ele é, assim, um ser histórico, que vai se criando no espaço social e no tempo histórico. Portanto, o homem não é apenas uma realidade dada, pronta e acabada, mas fundamentalmente um sujeito que vai construindo aos poucos sua própria realidade. É por isso que se diz que o homem é também aquilo que ele se faz. E essa construção histórica que o homem faz de si mesmo começa a partir de seu relacionamento imediato com a natureza. Como todos os demais seres vivos, os homens precisam da natureza para se construírem fisicamente, para sobreviverem e para se reproduzirem biologicamente. Enfim, são os elementos naturais que asseguram a existência material dos homens. (SEVERINO, 2007, p. 150)

Refletindo sobre as relações sociais que o ser humano teve que construir para garantir sua sobrevivência e sobre as que ele vem construindo historicamente, é possível perceber que as diferenças que marcam as configurações de vínculo social do homem, ao longo do tempo, residem na constituição do arcabouço que o trabalho recebe no processo de transformação da natureza.

Por meio desse processo de interação coletiva, os homens desenvolvem novas formas de relacionamento com a natureza, como a domesticação de animais e o desenvolvimento de técnicas e instrumentos para cultivar a terra,

já que, ao contrário dos demais seres vivos, para retirar da natureza os elementos que necessitam, eles criam meios e instrumentos, prolongam, agilizam e versatilizam os seus órgãos de sentidos e os membros do seu corpo. Essa é a origem da técnica, pela qual os homens criam ferramentas e instrumentos mediante os quais vão interferir na natureza para transformá-la em seu benefício. (SEVERINO, 2007, p 143)

O domínio dessas novas técnicas resultou numa mudança na forma de viver dessa sociedade, posto que elas deram aos seres humanos a possibilidade de serem produtores de alimentos e criadores de animais, o que viria a garantir sua subsistência. Deixando sua condição de sujeito nômade, o homem fixou-se à terra, visto que não era mais necessário promover a busca por alimentos.

A partir do domínio da técnica, o ser humano começou a desenvolver maiores conhecimentos a respeito da natureza. Tais conhecimentos levaram-no a planejar e a executar de forma mais eficiente suas ações e isso alterou não só sua forma de interação com a natureza, mas também o seu relacionamento com os outros seres humanos.

Partindo desse pressuposto, podemos afirmar que o ser humano, ao interagir com meio social, ao mediar suas relações com a natureza ou com outros indivíduos, torna-se um ser produzido e produtor de sua própria história, bem como de sua cultura. É nesse processo que ocorre a produção e a transmissão do conhecimento construído nas situações por ele vivenciadas em seu cotidiano.

Esse processo, junto com o trabalho, foi, sem sombra de dúvidas, um dos responsáveis pelo salto ontológico do ser biológico ao ser social. Aranha e Martins (2003) chamam de conhecimento o conjunto dos saberes acumulados e repassados por tradição, pelos quais o homem socializa com seus pares sua experiência adquirida nas muitas e diferentes situações vividas. Dessa forma, ocorre a transmissão das normas e costumes do grupo.

Nesse sentido, Saviani (2007) afirma que a existência do ser humano não é algo dado, presenteado, mas sim produzido pelo próprio homem, como fruto de seu trabalho. Ele necessita aprender a produzir sua própria existência, a se fazer homem. Esse processo de formação se dá por meio de um processo educativo em que, na sua fundação pelo trabalho, o homem dá origem à educação.

Com o transcorrer das épocas, o modo de transmissão de conhecimentos dos seres humanos às gerações futuras, denominado educação, vai assumindo novas conformações. Do mesmo modo, o objetivo final desta educação vai tomando contornos, de acordo com o interesse da sociedade, em geral e, mais especificamente, daqueles que detêm o poder.

Kuenzer (1991) observa que o espaço da produção do saber se desenrola no interior das relações sociais. Para ela, o saber resulta da ação coletiva dos homens, na sua relação com a natureza na produção de suas condições objetivas de vida, ou seja,

o processo de produção do saber, portanto, é social e historicamente determinado, resultado das múltiplas relações sociais que os homens estabelecem na sua prática produtiva. Os "locus", portanto, da produção do conhecimento, é o conjunto das relações sociais; são inúmeras as formas de produção e distribuição do saber, resultantes do confronto cotidiano do homem com a natureza e com os seus pares, que lhe apresenta questões que o obrigam a desenvolver formas próprias de pensar e fazer, experimentando, discutindo, analisando, descobrindo (KUENZER, 1991, p. 21-22).

Com a divisão da sociedade em classes e a divisão social do trabalho, constrói-se, também, uma desigualdade em relação aos conhecimentos a serem aprendidos pelos grupos. Criam-se diferentes formas de educação a fim de garantir o local específico de cada um na sociedade.

No modo de produção capitalista, mais especificamente, foi indispensável operar mudanças na forma de ensinar. Tais mudanças se fizeram necessárias em razão das transformações ocorridas na estrutura da sociedade ao longo de séculos, quando, no período conhecido como Idade Moderna, se estrutura a sociedade burguesa. Processo emblemático desta realidade, a Revolução Francesa, em que um dos lemas era a igualdade entre todos, não cabia mais a escravidão ou a servidão. Dentro de uma concepção burguesa ideal, todos os homens deveriam ser livres e, como tal, membros da sociedade.

Como bem retrata Enguita (1989), a burguesia se encontrava em um dilema, pois era necessário oferecer ao povo uma educação que lhes possibilitasse a aceitação do novo sistema, mas que não fosse suficiente para proporcionar-lhe ideias que viessem a colocar em risco a nova ordem estabelecida. Assim, era importante educar os trabalhadores, mas não muito, ou seja, apenas

o bastante para que aprendessem a respeitar a ordem social, mas não tanto que pudessem questioná-la. O suficiente para que conhecessem a justificação de seu lugar nesta vida, mas não ao ponto de despertar neles expectativas que lhes fizessem desejar o que não estavam chamados a desfrutar (ENGUITA, 1989,p. 112).

Assim, o trabalho, nessa nova situação, deixou de ser algo que floresce naturalmente no desenvolvimento do homem. Ele passou a existir de maneira artificial e condicionado pelas convenções do modo de produção capitalista e da nova divisão social do trabalho.

O modo de produção capitalista necessitava de um novo arquétipo de homem. O modelo preconizado pelo capital seria aquele que, além de conformado com sua precária situação de vida, também fosse subjugado a vender sua força de trabalho a outro homem, subordinando-se às condições que este impusesse, pela necessidade de sua sobrevivência materializada no salário. O elevado grau de desenvolvimento das máquinas, cujo funcionamento exigia poucas possibilidades de operação do trabalhador, limitava-o a apenas repetir procedimentos em sequência, o que não dependia de um conhecimento técnico aprofundado. Para tanto, tornou-se necessário construir um meio de transformar aqueles homens “rudes e ignorantes” – que na visão dos detentores do capital, em sua maior parte, sempre traziam desordem ao meio social – em homens educados e principalmente dóceis que fossem capazes de aceitar as normas e regras da nova sociedade capitaneada pela produção fabril.

Para tal finalidade, a escola aparece como o instrumento capaz de modelar esse ser humano, adequando seu comportamento às novas relações sociais de produção objetivadas pelo capital. O sistema escolar que, nessa época já existia, precisou ajustar-se às exigências da ordem capitalista.

Dentro dessa realidade, a escola tomou para si a responsabilidade de formar os futuros trabalhadores em benefício da produção capitalista. Com essa nova função atribuída à escola, o olhar dos detentores do capital voltou-se para uma parcela da sociedade que vivia à margem dos lucros e da distribuição da riqueza. Essa parcela da sociedade era formada por mendigos, vagabundos, ladrões e também por órfãos que passaram a merecer um “cuidado especial” por parte das autoridades.

Para as classes dominantes, essa modelagem de comportamento era necessária por que, ao se tornarem adultos, essas crianças e jovens já estariam formados para os requisitos básicos dos regulamentos fabris:  o cumprimento dos horários estabelecidos, o respeito e a obediência às ordens de seus superiores hierárquicos seriam facilmente estabelecidos.

Diferente das sociedades em que o ensinar-aprender acontecia de forma natural, descentralizada, sem espaço ou tempo fixo e de forma comunal pelo exemplo dos mais sábios – o aprendiz e seu mestre, de comum acordo, é que determinavam o que aprender, como aprender e quando aprender –, o que se tem agora dentro da escola, e na vida escolar,  é também uma divisão do trabalho. Nas palavras de Brandão (2007), isso se dá na medida em que as relações sociais de produção se complexificam.

Quando um povo alcança um estágio complexo de organização da sua sociedade e de sua cultura, quando ele enfrenta, por exemplo, a questão da divisão social do trabalho e, portanto, do poder, é que ele começa a viver e a pensar como problema as formas e os processos de transmissão do saber. É a partir de então que a questão da educação emerge à consciência e o trabalho de educar acrescenta à sociedade, passo a passo, os espaços, sistemas, tempos, regras de prática, tipos de profissionais e categorias de educandos envolvidos nos exercícios de maneira cada vez menos corriqueiras e menos comunitárias do ato, afinal, tão simples, de ensinar-e-aprender (BRANDÃO, 2007,p. 15-16).

Fato é que se passou a exigir da escola um controle sobre o ensino, padronizando-o e fragmentando-o em conteúdos que seguem uma sequência determinada pela racionalidade do capital. Foram determinados espaços físicos específicos para o ensino-aprendizagem, bem como o tempo a ser gasto para a realização de cada atividade proposta, ou seja, um tempo para a teoria e outro para a prática.

Além da divisão do trabalho imposta à escola, outra consequência importante advinda da inserção do conceito de eficiência no ambiente escolar, foi a divisão estrutural do ensino: um modelo para classe dirigente, aquela que detém o capital, e outro para a classe trabalhadora. Tendo em vista a atuação do indivíduo na divisão técnica e social do trabalho, criaram-se escolas diferentes para classes diferentes.

Longe de aceitar a escola como um local de reprodução e reforço das desigualdades sociais, acreditamos que a educação tem um papel importantíssimo na formação do homem como ator das transformações do mundo em que vive. Nesse sentido, Machado (1989, p. 123) afirma que, “mesmo enfrentando condições adversas, a nova educação, na concepção de Marx e Engels, deve começar já no capitalismo”.

Marx (apud Machado, 1989, p. 125) advoga que, “por um lado, é preciso uma mudança das condições para criar um sistema de instrução novo; por outro lado, é preciso um sistema de instrução já novo para poder mudar as condições sociais. Por conseguinte, é preciso partir da situação atual”.

Assim, para a construção de uma educação que sirva aos interesses daqueles que vivem do trabalho, é fundamental a ruptura com o modelo de escola compromissada com a lógica do capital e que aposta na formação unilateral com apenas um objetivo: a preparação para o mercado de trabalho, com vistas a contribuir para a acumulação do capital. A essa concepção alienadora da educação, contrapõe-se a defesa de uma escola que vá além das demandas do mercado de trabalho, que tenha a intenção de atender às necessidades da classe trabalhadora, isto é, de uma escola que forme para o mundo do trabalho e na qual a omnilateralidade seja objetivo central da formação desse homem.

A omnilateralidade tem por finalidade o desenvolvimento integral do ser humano nas suas múltiplas dimensões por meio da integralização dos aspectos cognitivo, físico, moral, afetivo e social, com vistas à emancipação do homem multifacetado. Ela se contrapõe à formação unilateral fragmentada, gestada pela sociedade capitalista e assentada sob a ótica da qualificação para o mercado de trabalho e que tem como consequência a reprodução do trabalho alienado, a divisão do trabalho, da reificação do homem e a degradação do trabalho.

A superação da formação reducionista unilateral por uma formação omnilateral requer mudanças na estrutura organizacional do ensino. Marx (2011) propõe um novo modelo de educação que compreende três pontos:

  1. Educação intelectual.
  2. Educação corporal, tal como a que se consegue com os exercícios de ginástica e militares.
  3. Educação tecnológica, que recolhe os princípios gerais e de caráter científico de todo o processo de produção e, ao mesmo tempo, inicia as crianças e os adolescentes no manejo de ferramentas elementares dos diversos ramos industriais (MARX, 2011, p.85).

Assim, Marx (2011) lança as bases de uma nova concepção de educação, nomeada por um grande número de autores de “politecnia”, que traz como principal novidade sua articulação com o trabalho. Segundo Saviani (2003) “a noção de politecnia se encaminha na direção da superação da dicotomia entre trabalho manual e trabalho intelectual, entre instrução profissional e instrução geral”.

Nessa nova proposta de educação, tem-se a troca do principio pedagógico humanista, de caráter enciclopédico, por outra em que o princípio educativo se encontra no trabalho. Essa concepção se assenta no entendimento de que, como o trabalho é que constitui o homem como ser social, o correto é que ele passe a ser o centro do processo educativo. 

Marx (1996), já na sua época, cita como exemplo desse processo de transformação da educação as escolas politécnicas e agronômicas onde os

filhos de trabalhadores recebem alguma instrução de tecnologia e de manejo prático dos diferentes instrumentos de produção. Se a legislação fabril, como primeira concessão penosamente arrancada ao capital, só conjuga ensino elementar com trabalho fabril, não há dúvida de que a inevitável conquista do poder político pela classe operária há de conquistar também para o ensino teórico e prático da tecnologia seu lugar nas escolas dos trabalhadores (MARX, 1996, p. 116).

Assim, na tentativa de superar as contradições do capital, bem como o próprio sistema capitalista, é importante retornarmos à proposta de escola única, tendo como conteúdo a politecnia, em que teoria e prática se coadunam em prol de uma práxis sempre ligada aos interesses da classe que vive do trabalho.

Como bem coloca Marx (2008),

uma sociedade jamais desaparece antes que estejam desenvolvidas todas as forças produtivas que possa conter, e as relações de produção novas e superiores não tomam jamais seu lugar antes que as condições materiais de existência dessas relações tenham sido incubadas no próprio seio da velha sociedade. Eis porque a humanidade não se propõe nunca senão aos problemas que ela possa resolver, pois, aprofundando a análise, ver-se-á que o próprio problema só se apresenta quando as condições materiais para resolvê-lo existem ou estão em vias de existir (MARX, 2008, p. 48).

Machado (1989) acrescenta que,

o desenvolvimento de uma nova forma implica o esgotamento da antiga, fazer exaurir todas suas energias, o que se obtém pelo desenvolvimento máximo das contradições existentes. Esta perspectiva de superação implica, portanto, passar, também, pelo modelo liberal de escola unificada, não como objetivo final da luta, mas como forma de acirramento das contradições, de maneira a preparar o terreno para o amadurecimento das condições de desenvolvimento de uma escola radicalmente diferente (MACHADO, 1989, p. 130).

Assim, romper com o dualismo que assola a educação brasileira, de uma trajetória educacional que direciona para o trabalho aos filhos das classes menos favorecidas e uma educação propedêutica aos herdeiros do capital, é superar não só as estruturas organizacionais da escola, mas vencer as limitações impostas por uma estrutura de classes estabelecida pelo capital.

Superar tais contradições em uma sociedade capitalista não é tarefa fácil, principalmente em um país como o Brasil, onde o trabalho manual ainda sofre forte discriminação pelo fato de ainda estar relacionado ao ranço da escravidão que, durante tantos anos, foi a principal força de trabalho no país.

É necessária a compreensão de que a formação educacional de quem vive da venda de sua força de trabalho deve ocorrer de maneira integral. Ter no trabalho produtivo o princípio básico da educação é romper com a unilateralidade de uma sociedade de classes, libertando o homem para alcançar seu pleno desenvolvimento em todas as dimensões, isto é, a omnilateralidade.

Para que isso ocorra, o primeiro passo a ser dado é a democratização do ensino, com a constituição da escola única e com a superação dos limites que separam a formação dos que planejam dos que executam; é romper com dualidade na educação e recuperar a essência do trabalho humano como algo indissociável, concebendo-o como atividade que unifica a prática e a teoria, a reflexão e a ação; é negar a subsunção do trabalho ao capital transmutado no mercado de trabalho. A proposição de um ensino politécnico é o caminho a ser trilhado.

REFERÊNCIAS

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