ENTRE O AUTORITARISMO E A GESTÃO DEMOCRÁTICA NO CONTEXTO DA PRÁTICA DO PROGRAMA MAIS EDUCAÇÃO: A EXPERIÊNCIA DE SÃO JOÃO DE MERITI
Resumo: A política indutora à Educação Integral proposta e apoiada pelo Governo Federal através do Programa Mais Educação alcançou abrangência inéditos na história do Brasil. Um dos grandes desafios percebidos a partir de sua implementação está relacionado à aceitação do Programa pelos atores escolares. Aqui identificamos, na origem da resistência, questões ligadas à exclusão dos sujeitos na tomada de decisão sobre o Programa. Este artigo faz uma análise sobre a experiência de adesão e implementação do Programa Mais Educação na rede municipal de São João de Meriti e a influência de uma gestão democraticamente organizada (ou não) no interior das instituições de ensino.
Palavras-chave: Políticas Públicas; Política Educacional; Educação Integral.
Embora a discussão acerca da Educação Integral não seja recente no contexto brasileiro e experiências isoladas não sejam raras na retrospectiva de nossa história, a entrada da Educação Integral enquanto política pública na agenda governamental em nível nacional foi instituída apenas em 2007.
O Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), uma política de governo instituída no ano referenciado anteriormente, unificou programas já existentes e criou outros sob a égide de um único plano com o objetivo precípuo de, em última instância, ampliar a qualidade da educação oferecida pelas escolas públicas do país. O PDE, por meio uma perspectiva sistêmica da educação, apresenta mais de 40 programas dentre os quais o Programa Mais Educação ocupa posição de destaque tanto por sua abrangência quanto por seu alto investimento no que tange aos recursos financeiros apregoados.
O lançamento do Programa Mais Educação surge como estratégia de indução à Educação Integral no país e inspirou-se em diversas experiências de ampliação de jornada escolar em execução em âmbito local (municípios e/ou estados).
Entretanto, muitas destas experiências não poderiam ser enquadradas como educação de tempo integral, tendo em vista que a permanência do aluno na escola ou sob sua responsabilidade era inferior a 7 horas diárias durante 5 dias na semana indo de encontro à definição constante no art. 4º do Decreto 6253/2007.
Pesquisa coordenada pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad/MEC), realizada em 2008, cujo objetivo consistia em mapear as experiências da jornada escolar ampliada em andamento no país, entre outros, revelou que: (a) essas experiências concentravam-se prioritariamente nas regiões Sudeste, Sul e, secundariamente, na região Nordeste, e, (b) embora algumas experiências apresentassem mais de dez anos, a maioria contava com, no máximo, dois anos de implantação, sendo que (c) um percentual significativo delas não poderia ser classificado como de “tempo integral”, haja vista que não atendia ao Decreto n° 6.253/2007 [...] (MEC/SECAD, 2010, p. 25).
A implementação nacional do Programa modificou as experiências de extensão de horário existentes até então. Em pesquisa ainda não publicada pelo Ministério da Educação, foram detectadas 144 experiências, das quais 11,1 % foram substituídas pelo PME, 17,4% optaram pela coexistência, separadamente, de suas experiências próprias e do PME e 11,8% pela criação de uma terceira opção de jornada integral. A maioria, no entanto, um número de experiências correspondente a 59%, articulou a experiência adquirida em seus projetos locais ao PME, fortalecendo ambos neste processo (MEC, 2013).
A possibilidade do apoio técnico e financeiro do MEC para a implementação de experiências em horário ampliado através do Programa Mais Educação desencadeou um avanço significativo no número de municípios/estados participantes, assim como no número de escolas.
Ano | Número total de escolas públicas |
Número de escolas com PME |
% de crescimento relativo ao ano anterior |
% de crescimento acumulado |
% de escolas em relação ao total de escolas |
2008 |
164.623 |
1.380 |
------------- |
------------------- |
0,8% |
2009 |
161.783 |
5.002 |
262,46% |
262,46% |
3,0% |
2010 |
158.650 |
9.995 |
99,82% |
624,27% |
6,3% |
2011 |
156.164 |
14.995 |
50,02% |
1086,59% |
9,6% |
2012 |
154.616 |
32.075 |
213,90% |
2224,27% |
20,7% |
2013 |
151.871 |
49.410 |
54,04% |
3480,43% |
32,5% |
No que tange às matrículas, no ano de 2008, quando entrou em funcionamento, o Programa reunia 386.763 matrículas. No ano de 2014, este número alcançou o patamar de 4.371.298 de alunos, um aumento percentual acumulado de pouco mais de 1000% no período e de 37,8% do ano de 2013 para o ano de 2014.

Fonte: INEP: 2008 - 2013
Embora o número de escolas tenha tido grande adesão, o percentual de matrículas tem caminhado a passos mais lentos. Tal fenômeno pode ser compreendido levando-se em conta variáveis como a infraestrutura física das escolas, a dificuldade de consolidar parcerias na comunidade e com a sociedade civil em geral.
Veja que, no ano de 2011, o número de escolas que aderiram ao PME obteve crescimento de 50,02%, percentual este bem abaixo do que o percentual de crescimento observado no que tange ao número de matrículas que ficou em 33,38%. Os anos de 2012 e de 2013 reafirmam a tendência apontada com percentuais de crescimento de 194,50% e 50,90% nas matrículas frente à 213,90% e 54,04% no percentual de adesões das escolas. Em suma, o número de escolas que aderiram ao PME apresenta crescimento percentual acumulado bem maior do que o apontado em número de matrículas.
Mesmo com a proposta de utilização dos espaços ociosos da cidade, o investimento é alto. No ano de 2008, era de pouco menos de R$ 57 milhões e em 2013 passou de R$ 1,2 bilhões (MEC, 2013), o que corresponde a um aumento de 2105,26%.
Atualmente, o Programa Mais Educação está presente em quase todos os estados brasileiros e chega a 87% de abrangência quando a referência são os municípios.

Fonte: Construído pelos autores com dados do MEC, 2013.
É possível inferir algumas conclusões no que tange ao desenvolvimento do Programa Mais Educação através dos dados apresentados. Dentre elas a de que o programa teve uma expansão bem maior em abrangência do que em relação aos investimentos e ao número de alunos atendidos.
O panorama de atendimento do PME demonstra que, ao passo que o número de escolas participantes obteve crescimento de pouco mais de 3000%, o número de matrículas no PME no período acendeu em torno de 1000%.
Embora a progressão no número de matrículas não tenha acompanhado o crescimento proporcional observado no número de escolas participantes, é possível inferir, em virtude dos altos investimentos feitos pelo Governo Federal e do esforço elencado na expansão do PME em estados e municípios, que o caminho para o cumprimento da legislação no que tange à Educação Integral está, de fato, aberto na agenda política do país.
Entretanto, é de suma importância que se atente para a realidade do Programa em cada estado, município e escola, tendo em vista que aumentar o tempo de escolarização sem que se modifique a perspectiva educacional em nada favorecerá o aumento da qualidade da educação, que se configura, em última instância, no objetivo precípuo do Programa.
Nesta perspectiva a análise que segue adquire relevância social, possibilitando que a observância do macro não ofusque nem generalize as experiências de Educação Integral nos aspectos meso (aqui considerados como a implementação e execução do PME nos municípios) e micro (aqui representados pela realidade das escolas), buscando evitar a dicotomização entre estas estruturas. Para tanto é necessário
evitar a desconsideração do “micro” em favor do “macro”, mas também de não deixar de levar em conta a mútua determinação de ambos e, mais importante, não deixar de colocar no mesmo nível de importância a concretude do chamado “micro”, até porque, sem a apreensão dessa concretude, não é possível esclarecer aquela determinação (PARO, 2001, p.32).
Educação Integral em São João de Meriti – Imposição ou Escolha?
No município pesquisado, a expansão do Programa deu-se de forma bastante similar, apresentando números ascendentes de matrículas e abrangência. O PME foi implantado na rede municipal de ensino a partir do ano de 2009, e, no ano de 2013, alcançou 37% dos alunos do ensino fundamental I Alunos do 1º ao 5º ano de escolaridade e 15% das matrículas do ensino fundamental II Alunos do 6º ao 9º ano de escolaridade totalizando, no ano de 2014, um número absoluto de atendimento de 8.289 matrículas atendidas. São João de Meriti conta com 100% de escolas de ensino fundamental funcionando em horário integral para parte de seus alunos.
Tal abrangência imputa desafios de diferentes origens dentre os quais destacamos neste artigo a implementação do PME nas escolas e sua aceitação pelos atores escolares.
A discussão que se faz a seguir, em um contexto micropolítico da ação educacional, aponta para a necessidade da apropriação, pelos partícipes do processo educativo, de um conceito de gestão democrática que ultrapasse a disposição legal desta enquanto Princípio Constitucional e se legitime enquanto processo de construção contínua dentro do ambiente escolar. Princípios que preconizem
[...] uma educação emancipadora, como exercício de cidadania em uma sociedade democrática. [Estes princípios] São resultado de um processo instituinte do novo fundamento de gestão democrática da educação a desfazer o paradigma patrimonialista. Mas esses dispositivos legais, por si só, não mudam cultura e valores. Somente as práticas iluminadas pelo novo paradigma podem mudar culturas e valores. (Bordignon, 2005, p. 05-06).
As falas transcritas a seguir foram coletadas no ano de 2014 entre diretores escolares e professores comunitários de escolas municipais da rede de São João de Meriti A relação de entrevistados encontra-se na tabela abaixo. A pesquisa de que nos valemos neste artigo levanta questões como a relação entre a gestão democrática da escola pública e o processo de adesão e implementação do Programa Mais Educação.
Cargo |
Função |
Formação |
Experiência Profissional |
Diretor Escolar 1 |
Professor 1º segmento |
Superior Completo |
Regência de turma |
Diretor Escolar 2 |
Professor 1º segmento |
Superior Completo |
Regência de turma, Orientação Pedagógica e Educacional, Auxiliar de Secretaria |
Diretor Escolar 3 |
Professor 1º segmento |
Pós Graduação lato sensu |
Regência de turma |
Professora Comunitária 1 |
Professor 1º segmento |
Pós Graduação lato sensu |
Regência de turma |
Professora Comunitária 2 |
Professor 2º segmento |
Superior Completo |
Regência de turma |
Interlocutora dos Programas Federais |
Professor 1º segmento |
Pós graduação Lato sensu |
Regência de turma |
Secretária de Educação |
Secretária de Educação |
Pós Graduação Loto Sensu |
Regência de turma, Subsecretária de Educação |
O processo de adesão das escolas do município de São João de Meriti ao Programa Mais Educação foi, segundo relatos de duas das três diretoras entrevistadas, voluntária A Diretora II não se pronunciou quanto à esta questão.. O programa foi apresentado em uma reunião de gestores e houve, após este primeiro momento, uma outra reunião, também para gestores, no município de Nova Iguaçu, também na Baixada Fluminense, com representação do Ministério da Educação para maiores esclarecimentos em relação ao PME.
A decisão de aderir ou não ao PME ficou a cargo exclusivo da direção da escola:
“Bom, foi assim: eu já conhecia o projeto e como ele acontecia em outras escolas e, embora a gente seja CEMEI Centro Municipal de Educação Infantil, nós já tínhamos algumas turmas de ensino fundamental. Então eu ficava perturbando a Interlocutora aqui, que queria o Mais Educação, Mais Educação, Mais Educação [...] era uma vontade nossa enquanto equipe. Assim essa vontade partiu de nós enquanto direção e da equipe pedagógica, né? A equipe diretiva da escola” (DIRETORA III).
A fala da Diretora III mostra que ela, num movimento que tem a ver com a sua percepção de escola como algo seu, como coisa particular, própria de seu domínio, e por conhecer a proposta do Programa, julgou que a implantação do PME era necessária em sua Unidade Escolar. Não houve consulta à comunidade escolar nesse sentido.
O mesmo processo repetiu-se com a Diretora I, que, após a reunião em Nova Iguaçu, manifestou a vontade de aderir ao PME:
“E aí lá, nessa reunião em Nova Iguaçu, que foi com representantes do MEC, do FNDE, é que foi passado pra gente né, de que forma seria, e eu como sou uma pessoa assim, te confesso, é... me assusta o novo? Me assusta, mas eu sou mais curiosa do que medrosa, entendeu? Aí eu fui... voltei já falando eu quero, eu quero... “(DIRETORA I)
A partir dos relatos, pode-se perceber que a decisão da implementação coube à Diretora ou, no máximo, à equipe diretiva, não se dando à comunidade escolar o direito à escolha. Nenhum dos entrevistados mencionou a participação do Conselho Escolar na tomada de decisão nem tampouco uma consulta aos funcionários de apoio (cujo trabalho é influenciado diretamente pela implementação do PME). A apresentação do PME à comunidade escolar revelou-se, através das falas, um movimento meramente informativo.
Percebe-se, através deste contexto de decisão exclusiva, os papéis bem delimitados de cada ator escolar e da exclusão da maioria destes atores das modificações que estariam por vir a partir de tal escolha.
Sobre a prevalência da vontade do Diretor escolar, atentamos para o processo histórico de hierarquização do trabalho escolar e que, embora as discussões acerca da descentralização das gestões escolares estejam em voga na academia, o que se encontra de fato, no chão das escolas é
a prevalência de uma organização que privilegia relações verticais, de mando e submissão, em detrimento das relações horizontais, de cooperação e solidariedade entre as pessoas. No topo dessa hierarquia, encontra-se o diretor como responsável último pela observância da Lei e da Ordem, exercendo, por isso, independentemente de sua vontade, o papel de preposto do Estado diante da escola e da comunidade. (PARO, 1992, p. 42)
Analisando as falas das Diretoras é perceptível a exclusão dos demais atores escolares na tomada de decisão no interior das escolas pesquisadas trazendo à tona uma clara oposição a uma concepção crescente no meio acadêmico de que a construção de uma escola democrática, exigida social e constitucionalmente, passa necessariamente pela superação desta relação hierarquizada e autoritária.
É importante analisar, ainda, que todos os atores que foram excluídos na tomada de decisão possuem importante influência na implementação da política em questão e que, portanto, sua ação no contexto da prática representa grande influência na trajetória que o Programa percorre e, consequentemente, em seus efeitos.
os profissionais que atuam no contexto da prática [escolas, por exemplo] não enfrentam os textos políticos como leitores ingênuos, eles vêm com suas histórias, experiências, valores e propósitos (...). Políticas serão interpretadas diferentemente uma vez que histórias, experiências, valores, propósitos e interesses são diversos. A questão é que os autores dos textos políticos não podem controlar os significados de seus textos. Partes podem ser rejeitadas, selecionadas, ignoradas, deliberadamente mal entendidas, réplicas podem ser superficiais etc. Além disso, interpretação é uma questão de disputa. Interpretações diferentes serão contestadas, uma vez que se relacionam com interesses diversos, uma ou outra interpretação predominará, embora desvios ou interpretações minoritárias possam ser importantes. (Bowe et al., 1992, p. 22)
Nesta perspectiva de disputas, buscando legitimação da tomada de decisão, as Diretoras iniciaram um discurso de convencimento dos demais atores escolares acerca da importância da execução do PME para a escola.
Em movimento oposto, a Secretaria de Educação de São João de Meriti, através da Resolução nº02/09 – SEME, legitima a ação hierárquica das direções no momento em que especifica em seu art. 3º que:
Após aprovação do PAGC pela SECAD as Unidades Escolares em tela irão organizar um Subprojeto contendo a metodologia de atividades no programa com carga horária e locais selecionados;
§ 1º - A organização de que trata o art. 3º far-se-á mediante participação e compromisso da equipe técnica pedagógica da U.E. para fins de avaliação e acompanhamento (SÃO JOÃO DE MERITI, 2009) (grifos nossos).
A postura das direções demonstra o que o próprio município emana nas suas diretrizes em relação ao processo de adesão ao PME e corrobora a percepção do papel do diretor escolar explicitado por Paro. A origem da hierarquização nas tomadas de decisão é interpretada aqui, dentre outros fatores, como fruto da própria forma de provimento dos cargos de direção escolar.
Este poder verticalizado lhes conferiu a prerrogativa de decidirem, sozinhas, uma mudança paradigmática para a instituição a qual dirigem. Mudança esta que busca em sua gênese a transposição do caráter prioritariamente cognitivo das instituições escolares para uma perspectiva educacional mais ampla de Educação Integral.
Nesse sentido, Paro nos faz refletir sobre os objetivos educacionais de cada escola e da vontade coletiva em torno de seu alcance:
[...] a cooperação recíproca entre homens, deve ter como meta a constituição, na escola de um novo trabalhador coletivo que, sem os constrangimentos da gerência capitalista e da parcelização desumana do trabalho, seja uma decorrência do trabalho cooperativo de todos os envolvidos no processo escolar, guiados por uma ‘vontade coletiva’, em direção ao alcance dos objetivos educacionais da escola (PARO, 1995, p. 19).
A tomada de decisão por parte da gerência de teor capitalista, sem a observância da vontade coletiva, isolando os atores escolares em seus nichos, no contexto investigado, trouxe revezes na aceitação do Programa influenciando a política no contexto da prática.
Segundo relatos coletados ao longo desta pesquisa, a aceitação do PME se configura em um dos mais resistentes problemas na execução do programa dentro das unidades escolares.
O envolvimento, ou melhor, a falta dele, por parte de diversos atores escolares e o seu comprometimento com o Programa, causa uma série de consequências na sua execução. O trecho abaixo demonstra a angústia da Professora Comunitária em relação à problemática e sua perseverante luta para a mudança na forma de legitimação do programa dentro da U.E. na qual atua.
PCI Professora Comunitária.: “[a maior dificuldade] no segundo momento, foi a aceitação da comunidade escolar. Os funcionários, os demais funcionários abraçarem o programa como os alunos pertencendo à escola, não são alunos da escola separada da outra, essa foi a minha maior dificuldade.
E Entrevistadora.: Com relação só aos funcionários ou aos professores também?
PCI: Não... toda a escola teve uma resistência em aceitar o programa, é mais trabalho, mais perturbação ... é isso
E: Isso hoje está diferente?
PCI: Melhorou muito. Assim, há uma aceitação muito melhor, há uma outra visão em relação ao programa até porque eu venho batendo nessa tecla desde então. Mas não tem 100% da aprovação porque ainda existe aquela mentalidade de alguns funcionários de que representa mais trabalho pra eles. Mas melhorou bastante.
E: A tua equipe pedagógica, a equipe pedagógica na escola, interfere no programa?
PCI: Não” (PROFESSORA COMUNITÁRIA I).
O discurso recorrente nas escolas é o de que com o PME, e o consequente aumento da carga horária diária dos alunos, a escola produz demandas maiores. Em termos práticos, há mais merenda para servir, mais sujeira para limpar, mais barulho produzido durante todo o dia, ou seja, mais trabalho para todos.
Nesse sentido, percebe-se o isolamento do PME dentro das escolas, ficando a cargo da Professora Comunitária todo o trabalho de orientação pedagógica, direcionamento dos aspectos burocráticos e suprimento de eventuais carências de monitor.
“Os professores... tudo bem, né? Todos entenderam. Agora no que diz respeito ao pessoal de apoio, aí já teve um pouquinho de resistência. Porque é mais trabalho... é criança o tempo inteiro. Então, por exemplo: o primeiro turno termina 11 horas, o segundo começa 1, nesse meio tempo era uma paz né? Que agora não é, entendeu? Então é comida o tempo inteiro, é lanche... é criança o tempo inteiro. Então isso inicialmente, para eles, foi um transtorno.[...]” (PROFESSORA COMUNITÁRIA II).
O aumento da demanda não se configuraria em problemática de tamanha monta caso o quantitativo de funcionários fosse proporcionalmente aumentado, entretanto, a contrapartida do município no que tange ao PME se restringiu ao oferecimento de Professor Comunitário com carga horária de 40 horas semanais Tal contrapartida foi retirada em meados do ano de 2015..
Quanto à participação dos profissionais de apoio (merendeiras, serventes, funcionários administrativos) e dos pais e responsáveis, o isolamento é ainda mais marcado tendo em vista que normalmente esses atores são naturalmente excluídos de qualquer atividade de cunho pedagógico sendo esta última circunscrita aos professores e pedagogos. (NAJJAR, 2000, p. 28).
É importante ressaltar que a perspectiva da Educação Integral pressupõe a formação do homem completo em sua multidimensionalidade e que os processos educativos que se dão no interior da escola não se restringem apenas aos de cunho pedagógico. Neste sentido, o aluno é educado através das relações que se dão também fora da sala de aula, no recreio, no refeitório, na secretaria da escola e na relação com o outro e que envolve a potencialização de habilidades de cooperação e intervenção. Assim sendo, é preciso que os sujeitos envolvidos neste processo não destoem na tônica que se objetiva em um projeto de formação humana.
Na tentativa de fazer com que os atores escolares se apropriem de um Programa decidido inicialmente de forma autoritária, a figura do Diretor alia-se a do Professor Comunitário, amparados pela permanência e consolidação do Programa em âmbito nacional.
A aceitação ocorre, em maior ou menor grau, em decorrência da trajetória do Programa dentro de cada U.E., da forma como ele foi apresentado e da maneira como é conduzido.
“Então nós tivemos que provar por A mais B que o programa funcionava e que dava resultados. Então nós tivemos sim esse primeiro momento uma... não foi uma resistência, mas tinha aquela visão antipática em relação ao programa. Uma visão de que o programa não dava certo. E nós tivemos que fazer uma conscientização e mostrar que o programa não era somente do monitor da coordenação e da direção, o programa era da escola e a coisa tem que funcionar, tem que acontecer” (DIRETORA III).
“Aí num primeiro momento nós fizemos um apanhado de opiniões de quais eram as oficinas né, que eles queriam participar, muita gente foi contra... é normal isso, a gente lida com opiniões diferentes, mas a gente conseguiu sensibilizar a maior parte dos funcionários, professores e a gente foi... e começamos por aí mesmo (risos)” (DIRETORA I).
Percebe-se, ao compararmos os discursos transcritos das duas diretoras, que a Diretora III coloca-se de uma forma mais incisiva. No trecho grifado afirma que o programa tem que acontecer e tem que funcionar, desconsiderando o sentimento de rejeição inicial. Por outro lado, o relato da Diretora I demonstra um movimento diferente. Apesar da imposição da presença do PME na escola, a implementação do mesmo se deu de forma mais democrática, concedendo aos atores escolares a possibilidade de participação na implementação do programa e na configuração que ele tomaria dentro da U.E. Nesta perspectiva, a resistência inicial foi progressivamente sendo desmistificada e a comunidade escolar apropriou-se do PME:
“Foi aí que nós ganhamos a comunidade. Aqueles que eram mais resistentes viram que a coisa era assim, democrática, então se sensibilizaram, e hoje a gente vê através de números. Porque os alunos realmente melhoraram” (DIRETORA I).
A progressiva diminuição do isolamento do PME na escola é, segundo o relato da Diretora I, conseqüência do trabalho de convencimento acerca da pertinência da ampliação de horário no contexto da escola pública e da legitimação do programa.
Através das falas das Diretoras escolares e das Professoras Comunitárias acerca do processo de adesão e implementação do Programa Mais Educação no município de São João de Meriti, foi possível observar que em nenhum dos casos analisados a comunidade escolar foi consultada em relação à adesão das escolas ao PME cabendo tal decisão única e exclusivamente à Direção da escola.
Tal postura desconsidera a necessária contribuição dos diversos atores escolares na construção de uma escola que sirva aos objetivos precípuos de uma educação que se propõe integral. Neste contexto, como conseqüência direta, houve uma clara rejeição ao PME e o seu isolamento dentro das unidades de ensino demonstra a ação dos sujeitos na interpretação da política a eles imposta.
Por outro lado, ainda que a decisão sobre a adesão tenha sido tomada de unilateralmente, a possibilidade de participação democrática na implementação do PME pode ressignificar o sentimento de rejeição inicial e fazer com que emirja um sentimento de pertencimento ao Programa. Ao constatar que o sentimento inicial pode ser modificado a partir de uma prática gestionária democraticamente organizada, é possível inferir também que esta prática democrática, se adotada desde a sua adesão, poderia trazer às escolas um Programa mais integrado ao cotidiano escolar, beneficiando não apenas os alunos matriculados no PME, mas a todos os envolvidos no processo educativo.
Em última instância, afirmamos que a consolidação de uma educação integral (e não apenas de horário ampliado) deve estar intimamente ligada a um projeto de formação humana no qual a democracia seja um de seus pilares essenciais. Nesta perspectiva, embora a gestão democrática da escola pública seja discurso socialmente recorrente e hegemônico, ainda na atualidade é necessário o alargamento de dispositivos capazes de garantir que tais práticas sejam efetivadas no interior das instituições educativas.
BIBLIOGRAFIA
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