GESTÃO E QUALIDADE: SIGNIFICAÇÕES DO GOVERNO FEDERAL E ESTADUAL PAULISTA

Resumo: O texto analisa as significações atribuídas aos temas gestão e qualidade em documentos publicados pelo governo federal e estadual paulista. Compreendemos que essas significações atravessam os sentidos construídos na escola, assim como também são influenciadas por eles. Analisamos, respectivamente, as significações construídas nos documentos dos governos federal e estadual paulista e identificamos algumas contradições nas significações sobre gestão e qualidade, especialmente, no que diz respeito à iminente possibilidade de a escola construir uma gestão democrática, que pense a qualidade para além de metas externas, constantemente ameaçada pelo exercício de uma gestão empresarial motivada por alcance de objetivos pré-determinados.

Palavras-chave: Gestão escolar; Qualidade de ensino; Avaliação em larga escala.


Introdução

O texto é fruto do desenvolvimento de pesquisa vinculada ao projeto em rede do Observatório de Educação (Edital n. 38/2010, CAPES/INEP). Especificamente, a pesquisa que originou a produção deste texto teve como objetivo analisar as concepções de educação, gestão escolar e qualidade de ensino veiculadas nos âmbitos dos governos (federal, estadual de São Paulo e dos municípios integrantes da pesquisa) – após a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional –, da mídia (com prioridade à Revista Nova Escola entre os anos 2005-2010) e dos periódicos qualificados (2000-2010) e as concepções vivenciadas pelos integrantes das escolas públicas de educação básica (pais, alunos, funcionários, professores e equipe de gestão).

Subsidiamo-nos em autores (LIMA, 2008; NÓVOA, 1995; BALL, 1989) que procuram dar visibilidade às ações dos integrantes da escola, concebendo-a como organização especificamente educativa, que faz política, toma decisões e utiliza de espaços de autonomia para agir.

Embora cada realidade escolar apresente particularidades, partindo dos achados de pesquisas que se desenvolvem nas abordagens centradas no Estado, essas particularidades aparecem inscritas em um macrocontexto, numa totalidade cujas regras estão postas de modo que pouco restaria àqueles que estão envolvidos neste processo. As margens de autonomia e as diferentes interpretações que os sujeitos vivenciam em suas práticas não seriam suficientes para transpor ao modelo educacional vigente. Resta à teoria prescrever o que e como a escola deve fazer para ser democrática e de qualidade.

Buscando encontrar outros subsídios teórico-metodológicos, compreendemos o processo de materialização das políticas públicas educacionais como um exercício científico que deve levar em conta as múltiplas causas e a pluralidade de atores envolvidos. Trata-se de uma perspectiva que alguns autores têm denominado de pluralista. Segundo esta perspectiva, a política não é compreendida como uma instância determinada basicamente pela economia e pelas relações de classes, mas por um conjunto de fatores de diversas origens. Sendo assim,

[...] os pluralistas tendem a ver um conjunto não articulado de ‘focos de poder e influência’ dos quais o Estado é apenas um. Assim, onde o marxismo se refere a classes, os pluralistas enxergam ‘grupos de pressão e de interesses constituídos de múltiplas maneiras’; onde o marxismo concebe as políticas governamentais como explicáveis a partir de uma lógica imanente ao próprio capitalismo, os pluralistas irão considerá-las como decorrentes de um ‘jogo de causas mais complexo e original’. (MAINARDES, FERREIRA e TELLO, 2011, p. 160)

A abordagem requer a compreensão desses múltiplos fatores no sentido de mapear os diversos discursos que formam o campo das representações e dos fenômenos sociais que influenciam a ação dos indivíduos neste jogo permanente de conflitos e consensos constitutivos da realidade, sempre provisória, em que nos encontramos.

Neste texto, temos como objetivo analisar as significações atribuídas aos temas gestão e qualidade em documentos publicados pelo governo federal e estadual paulista. Consideramos importante explorar tais significações porque, na perspectiva teórica delineada, compreendemos que elas atravessam os sentidos construídos na escola, assim como também são influenciadas por eles.

Significações sobre gestão e qualidade nos documentos do governo federal

Na década de 1990, motivados pela reestruturação do sistema econômico mundial, vários países ao redor do mundo passaram a realizar reformas educacionais, entre eles o Brasil. Neste contexto, o Estado substitui o modelo de administração burocrática pelo modelo gerencialista, dando corpo a uma série de projetos difundida em âmbito nacional para ser executada por dezenas de estados e milhares de municípios em todo o país. (BRASIL, 1995).

Na esfera educacional, propôs-se um conjunto de reformas que incluíram a elaboração de documentos, diretrizes, parâmetros e referenciais curriculares, projetos de elaboração de materiais didáticos, projetos e programas de financiamento, projetos e programas de ampliação de parcerias público/privado, entre outras medidas em que se destaca o aumento da eficiência da gestão institucional – via programas de formação continuada – açulada por um rigoroso processo de avaliação externa, cujos resultados, constituídos, sobretudo, pelo nível de desempenho dos alunos em testes de língua portuguesa e matemática, passaram a compor o nível de qualidade do ensino.

No bojo das reformas supracitadas conferimos destaque à promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) n° 9.394/1996, por ser ela considerada o marco inicial do processo de implementação da política de avaliação em larga escala no país.

No artigo 9º (inciso VI), a LDBEN transfere para a União a função de “assegurar processo nacional de avaliação do rendimento escolar no ensino fundamental, médio e superior, em colaboração com os sistemas de ensino”, visando à “definição de prioridades e a melhoria da qualidade do ensino”. No artigo 87 (§ 3º, inciso IV), a lei dispõe que o Distrito Federal, os Estados e Municípios e, supletivamente, a União devem “integrar todos os estabelecimentos de ensino fundamental do seu território ao sistema nacional de avaliação do rendimento escolar”. Estas prerrogativas demonstram o esforço de fortalecimento de um Sistema Nacional de Avaliação que permita visualizar o contexto educacional do país e a sua qualidade.

Concomitante a este processo de reformas, como resultado de uma ampla mobilização envolvendo entidades representativas Com destaque para a União Nacional de Dirigentes Municipais de Ensino (UNDIME) e o Conselho de Secretários de Estado de Educação (CONSED). e membros dos governos, estimulou-se a elaboração do Plano Nacional de Educação (2001) que uniu diversas propostas discutidas em fóruns nacionais e influenciou a elaboração de planos estaduais e municipais para guiar ações de longo prazo por meio das chamadas metas educacionais.

Em consonância com estas propostas, foram desenvolvidos, em âmbito nacional, outros programas como o Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE), o Plano de Desenvolvimento da Escola (PDE), e o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), visando a articular os recursos investidos ao alcance de metas firmadas em planos institucionais que, em tese, garantiriam um padrão mínimo de qualidade às escolas públicas.

Criado em 2007 pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), o IDEB se constitui a partir da combinação de dois fatores referentes à qualidade da educação: indicadores de fluxo (taxas de aprovação, reprovação e evasão), medidos pelo Censo Escolar e indicadores de desempenho em exames padronizados, como o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica – SAEB – e a Prova Brasil A Prova Brasil e o SAEB são avaliações em larga escala aplicadas aos 5º e 9º anos do Ensino Fundamental e à 3ª série do Ensino Médio, envolvendo testes de Língua Portuguesa, Matemática e questionários socioeconômicos., realizados a cada dois anos ao final de determinada etapa da educação básica.

As críticas contundentes a esses instrumentos de avaliação recaem, principalmente, sobre o fato de desconsiderarem as adversidades que afetam os sistemas de ensino brasileiros e apresentarem possibilidades iminentes de conversão de indicadores quantitativos em dispositivos de controle das ações apreendidas dentro das escolas.

Construído a partir de um modelo ideal, o sentido do trabalho se distancia da realidade concreta e passa a ser orientado por indicadores preestabelecidos que normalizam as ações dentro da escola.  Esta adesão voluntária a ideais impostos para a escola resulta de estratégias governamentais que incluem processos de formação continuada para gestores e coordenadores escolares subsidiados por cartilhas carregadas de discursos sentimentalistas que levam os membros das instituições escolares a assumirem um compromisso individual, quase missionário, na busca por uma educação de qualidade. Esta estratégia pode ser percebida em pequeno trecho retirado do INDIQUE Conquanto a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9.394/96 mencione a necessidade empreender esforços visando instituir os chamados Padrões Mínimos de Qualidade, até o momento, não foi homologado o documento de referência – Parecer CNE/CEB nº 8/2010 – que visa facilitar sua aplicação. Entretanto, no Plano Nacional de Educação, aprovado em 25 de junho de 2014, por meio da Lei nº 13.005, o governo brasileiro assume o compromisso de instituir, no prazo máximo de dois anos após a data de aprovação do Plano, os Parâmetros Mínimos de Qualidade. Diante deste impasse, elencamos como objeto de análise os Indicadores de Qualidade na Educação (INDIQUE – Ação Educativa/ UNICEF/ MEC/ INEP), por ser este o material de referência de maior acesso e menção nos discursos da política educacional atual., um amplo material desenvolvido recentemente sob coordenação da Ação Educativa em parceria com o UNICEF, PNUD, INEP e a Secretaria da Educação Básica/ MEC, com o objetivo de subsidiar processos de avaliação institucional realizados por toda a comunidade escolar, cujo objetivo é identificar e discutir resultados coletados por meio de respostas a itens que indicam como a escola se encontra em termos de qualidade.

Com um bom conjunto de indicadores, tem-se, de forma simples e acessível, um quadro de sinais que possibilitam identificar o que vai bem e o que vai mal no contexto escolar, de forma que todos tomem conhecimento e tenham condições de discutir e decidir as prioridades de ação para sua melhoria.
Vale lembrar que esta luta é de responsabilidade de toda a comunidade: pais, mães, professores, diretores, alunos, funcionários, conselheiros tutelares, de educação, dos direitos da criança, organizações não governamentais (ONGs), órgãos públicos e universidades, enfim, de toda pessoa ou instituição que se relaciona com a escola e se mobiliza por sua qualidade. Educação é um assunto de interesse público. Por isso, pretendemos que a aplicação deste instrumental envolva todos esses atores, incluindo as crianças das séries iniciais do ensino fundamental. (SÃO PAULO, 2013, p. 6)

Ao assumir essas estratégias de controle de desempenho por meio de variáveis quantitativas – como é o caso do IDEB –, as políticas buscam também meios de produzir as chamadas variáveis qualitativas no que se refere à apreensão de “indicadores de qualidade da escola” e não apenas de “indicadores de desempenho de alunos e/ou de sistemas”. No caso do INDIQUE, essas variáveis são produzidas e elencadas em dimensões constituídas por um conjunto de indicadores a serem observados pelas escolas.

Notamos que o maior objetivo desses indicadores é permitir que a própria escola, por meio de processo de autoavaliação, identifique os principais problemas que afetam a qualidade do serviço prestado e empreenda ações que permitam superar os problemas visando a alcançar a qualidade desejada. Este processo, de acordo com o próprio documento, torna-se mais significativo quando a escola, apoiando-se nos resultados da avaliação institucional – via material do INDIQUE – e nos resultados das avaliações externas – via IDEB/ Censo Escolar/ Prova Brasil –, elabora um Plano de Ação para “enfrentar cada um dos problemas em ordem de prioridade”, definir os passos para a efetivação dessas ações, elencar seus responsáveis e estabelecer os prazos possíveis para cada uma delas. Com a clara intenção de subsidiar a escola, o documento apresenta ainda diversos modelos de trabalhos que, em tese, facilitariam o trabalho da equipe escolar na elaboração dos planos e estratégias para a melhoria de cada um dos indicadores.

A partir de 2013, esses indicadores passaram também a servir de apoio na elaboração do diagnóstico da situação educacional dos estados e municípios e na elaboração coletiva dos chamados Planos de Educação que estabelecem as metas visando à garantia do direito à educação de qualidade em todo o país.

Observa-se, portanto, que os indicadores de qualidade desdobram-se em diversas políticas educacionais de implementação e controle de metas a serem observadas por toda a comunidade escolar, cujo fim último é elevar o nível da educação permitindo que o Brasil cumpra com as metas fixadas no “Termo de Adesão ao Compromisso ‘Todos pela Educação’ ” Fazemos referência ao Decreto nº 6.094, de 24 de Abril de 2007 que “Dispõe sobre a implementação do Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação”. (BRASIL, 2007) e alcance, em 2021, a média 6,0, aproximando-se da média dos países desenvolvidos aferidas e divulgadas pelo Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA) coordenado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

As metas definidas carregam uma concepção de qualidade da educação escolar que não podemos deixar de considerar: uma boa escola é aquela capaz de desenvolver as competências e habilidades necessárias à fabricação de um sujeito criativo, polivalente, autônomo e, principalmente, flexível para que possa se adaptar às constantes modificações dos perfis profissionais que demanda o mercado de trabalho.

Observamos que, na prática, essas proposições estão longe de se tornarem efetivas, no entanto, nas representações sociais dos profissionais que atuam diretamente no espaço escolar, elas se fazem presentes. Ao questionarmos esses profissionais a respeito do que pensam ser uma educação/escola de qualidade, percebemos a imediata associação entre seus discursos e aqueles explicitados nos indicadores de qualidade oficiais Embora a ação desses mesmos sujeitos demonstre a dificuldade na concretização dessas propostas, há, sem dúvida, um discurso a respeito da qualidade que se apresenta como discurso autorizado, dificultando a construção de objetivos educacionais que caminhem em outra direção até mesmo contrária a esta que aqui apresentamos.

No próximo tópico, apresentaremos a relação entre as significações construídas a respeito da qualidade da educação apresentada e o modelo de gestão escolar construído nos documentos oficiais paulista e suas possíveis implicações na realidade das escolas públicas.

Significações sobre gestão e qualidade no governo estadual paulista

O estado de São Paulo promulgou o Estatuto do Magistério Paulista (Lei Complementar n. 444/1985), documento que trata, em suas disposições finais, do Conselho de Escola (CE) como órgão deliberativo da organização escolar, antes mesmo da publicação da Constituição Federal (BRASIL, 1988) e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei nº 9394/96 as quais trazem a gestão democrática como princípio da educação.

A referida Lei dispõe sobre a composição do CE de forma paritária (50% integrantes da comunidade e 50% integrantes da escola) que, tendo função deliberativa, deve se reunir, ordinariamente, duas vezes no semestre e, quando necessário, por convocação do diretor ou 1/3 dos seus membros. Podemos apontar vários avanços importantes trazidos pelo documento: a participação efetiva da comunidade na escola, na tomada de decisão sobre suas diretrizes e metas, projetos, prioridades, elaboração de regimento escolar, apreciação de relatórios e avaliação da escola; a escolha dos membros pelos seus pares; a clareza e transparência das decisões por meio de registros em atas tornadas públicas. No entanto, Pinto (1999) e Paro (1999) indicam que, transcorrida mais de uma década, a Lei não conseguiu alterar a forma de organização da escola pública estadual, em virtude de estar fundamentalmente ancorada na hierarquia e na autoridade do diretor de escola. Além de indicarem que se tratou de uma medida isolada, os autores destacam que não há como cumprir seu papel de indutor da gestão democrática na escola, porque “[...] os procedimentos burocráticos que dominam a administração escolar entram em choque direto com aqueles baseados na busca do entendimento por meio do diálogo, como é o caso do CE.” (PINTO, 1999, p. 239).

Nos anos de 1990, o governo estadual paulista publica as Normas Regimentais Básicas destinadas às escolas estaduais de São Paulo. O documento reitera a presença daquele órgão colegiado e atesta ainda a existência do Conselho de Classe e Série como órgão colegiado e de duas instituições auxiliares de ensino: a Associação de Pais e Mestres e o Grêmio Estudantil. Neste documento, embora se identifique um Título integral à gestão democrática, a presença de órgãos colegiados e instituições auxiliares de ensino, há também referência à composição detalhada da organização escolar por níveis hierárquicos, cujo primeiro se constitui o núcleo de direção − o diretor e seu vice.  O documento indica que o núcleo de direção é o “[...] centro executivo do planejamento, organização, coordenação, avaliação e integração de todas as atividades desenvolvidas no âmbito da unidade escolar” (SÃO PAULO, 1998, p. 1043),responsável pelo exercício de várias funções: elaboração e execução da proposta pedagógica, administração do pessoal e dos recursos, cumprimento dos dias letivos, legalidade e autenticidade da vida escolar dos alunos, entre outros.

Feita esta última ressalva, podemos dizer que os documentos valorizam e incentivam a participação, autonomia e gestão democrática, o que contribui para se vislumbrar uma perspectiva mais afinada com a abordagem considerada progressista de gestão escolar (PARO, 1986; FREIRE, 1991).

No entanto, destacamos que a avaliação de sistemas educacionais intensificou-se a partir da mudança do papel do Estado nas políticas públicas, influenciadas sobremaneira pelas construções neoliberais adotadas pelos governos em poder e financiadas pelos órgãos de regulação internacional. No estado de São Paulo, as reformas dataram, principalmente, em meados dos anos de 1990, quando o engenheiro Mário Covas esteve à frente do Estado e entregou à professora Rose Neubauer o cargo de Secretária da Educação. As principais mudanças na área educacional também se basearam em princípios gerenciais, construindo novas formas de coordenação e financiamento da educação, fortalecendo um movimento nacional e internacional de reestruturação do Estado, caracterizado, em discurso, pela busca por novos paradigmas para a administração pública, distanciamento da administração pública burocrática e aproximações a construções de administração gerencial (BRESSER PEREIRA, 1996).

O governo paulista assumiu três eixos básicos: “a racionalização organizacional; a mudança nos padrões de gestão, com ênfase na descentralização e na desconcentração do poder de decisão para órgãos locais e unidades escolares e a melhoria da qualidade de ensino.” (NEUBAUER, 1999, p. 168).Em consonância com esses princípios, várias medidas foram tomadas pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, entre elas, destacam-se a municipalização (Decreto 30.375/89), o regime de progressão continuada (instituído pela Deliberação CEE 09/97), a reorganização das escolas da rede estadual em ciclos (Resolução SE 04/98) e a definição de Matrizes Curriculares Básicas para o Ensino Fundamental (Resolução 11/2005) por estarem diretamente ligadas à criação e manutenção do SARESP, instrumento oficial de avaliação da escola básica do Estado paulista e de medição da qualidade de ensino ofertada.

O governo do estado, considerando que a repetência havia sido eliminada no interior dos ciclos por meio do Programa de Progressão Continuada Ver mais em: FREITAS (2003); FREITAS (2003b); MAINARDES e GOMES (2008)., considerou necessário exercer algum tipo de controle sobre desenvolvimento do processo de aprendizagem dos alunos ano a ano (SÃO PAULO, 2010), criando a necessidade de monitorar os resultados pedagógicos das escolas e a qualidade de ensino oferecida pelo setor público. Em 1996, chega às escolas do estado de São Paulo a primeira edição do SARESP. O documento de implantação  aponta que essa avaliação de sistema foi planejada com o objetivo de contribuir com a formulação de políticas públicas, a partir do conhecimento do desempenho dos alunos de ensino fundamental e médio. Outro objetivo do SARESP passa a ser, oficialmente, fornecer ao sistema de ensino informações que subsidiassem a capacitação dos recursos humanos do magistério, o aprimoramento da proposta pedagógica e a viabilização dos resultados da avaliação com o planejamento escolar, além da correção do fluxo escolar (SÃO PAULO, 1996).

Acrescentamos que, apesar das modificações do SARESP durante suas edições Para verificar os momentos ver em: CIARDELLA; HERNANDES; ABDIAN (2012)., seus objetivos não se distanciaram dos iniciais, apontando sempre um caráter gerencial embasado na possibilidade de mensuração do desempenho e replanejamento pedagógico em função de resultados, visando à melhoria da qualidade de ensino.

Em 2008, a Lei Complementar nº 1.078 institui a Bonificação por Resultados, “a ser paga aos servidores em efetivo exercício na Secretaria da Educação, decorrente do cumprimento de metas previamente estabelecidas, visando à melhoria e ao aprimoramento da qualidade do ensino público.” (SÃO PAULO, 2008). Em síntese, a bonificação será paga proporcionalmente às metas alcançadas pela unidade de ensino, definidas pela Administração pública e medidas no SARESP.

Dada a preocupação com o alcance de resultados de aprendizagem, no bojo dessas medidas publicam-se dois documentos legais: a Resolução SE n. 70/2010 e o Decreto n. 57.141/2011, que tratam, respectivamente, dos perfis profissionais, competências e habilidades requeridos dos educadores da rede pública estadual e da reorganização da Secretaria de Educação do estado de São Paulo. Particularmente, na Seção X, o decreto aborda as atribuições dos diretores de escolas sob a condição de gestores escolares.

Nos documentos predomina o uso de termos empresariais, com foco na hierarquia e na individualização das tarefas da organização do trabalho escolar na figura do diretor, cujas dimensões de competências passam a ser discriminadas de forma fragmentada: de resultados educacionais do processo ensino-aprendizagem; participativa; pedagógica; dos recursos humanos; dos recursos físicos e financeiros. Ao indicar ações da gestão (particularizada no gestor), destacam-se verbos como cumprir, submeter, encaminhar, zelar, fiscalizar, e substantivos/adjetivos como autoridades superiores, subordinados, superiores, hierárquicos, resultados.

Do exposto sobre as significações construídas nos documentos emitidos pelo governo paulista sobre gestão e qualidade, podemos dizer que há contradições explícitas. Por um lado, existem possibilidades, ainda não retiradas, de a escola construir a gestão democrática via conselhos escolares paritários e deliberativos, auxiliados por instituições com a participação de toda a comunidade. Por outro, dos anos 1990 em diante, com foco nos anos 2000, o governo estadual paulista vem focalizando o índice de desempenho das escolas como medida da qualidade e, para alcançá-lo, tem incentivado e cobrado o exercício da gestão empresarial, eficiente e eficaz no alcance de objetivos já determinados.

No seu cotidiano, a escola pública estadual paulista com seus integrantes está imersa nas significações construídas pelo governo estadual, mas também federal. Importante, a partir de nosso referencial, é compreender quais sentidos são construídos por ela, de que forma eles se distanciam e/ou são atravessados pelas significações aqui analisadas.

O lugar da pesquisa

Diante deste cenário de proposição de diretrizes políticas educacionais importa questionar como tais propostas têm sido traduzidas em práticas no cotidiano das escolas. Questionamos ainda o papel das pesquisas e estudos acadêmicos na produção do conhecimento da área e quais suas contribuições para aqueles que vivenciam a educação escolar.

A análise efetuada neste texto mostrou a complexidade em que se contextualizam as escolas públicas estaduais (em nosso caso, paulista), uma vez que seu cotidiano é atravessado pelas diretrizes governamentais em âmbito federal e estadual que, embora tecidas no bojo de diretrizes neoliberais em âmbito internacional, apresentam contradições.

A concepção que adotamos reconhece que, além disso, a complexidade da realidade escolar se constitui da multiplicidade de sujeitos que lá vivenciam expectativas, desejos e intenções e significações próprias. Por esta razão, direcionamos nosso olhar para a escola com um referencial que objetiva levantar elementos para discussão sem pretender prescrever aquilo que é correto fazer para que a escola seja, de fato, democrática ou de qualidade.

Neste sentido, concordamos com Certeau (2008) quando o autor indica que há uma cultura no cotidiano com “mil maneiras de caça não autorizada”, ocultadas pela racionalidade dominante, as quais rompem com os modelos pré-estabelecidos. Acrescentamos nesta concepção, o conceito cunhado por Lima (2003), “infidelidade normativa”, ao se referir às possibilidades de construir ações e regras próprias mesmo que inseridas em um contexto marcado pela cobrança e prescrição.

Nossas análises indicam as reais possibilidades de as escolas, com base em suas próprias experiências, projetarem para si outros objetivos educacionais que considerem os objetivos oficiais, mas não estejam subsumidos a eles, sendo assim, tem a principal finalidade de investigar os sentidos que tais diretrizes assumem quando são traduzidos em práticas.

Finalizamos fazendo referência à Canário (2006) quando, ao falar sobre os três pecados das ciências da educação, afirma que não é possível uma relação detransferência simples entre a pesquisa científica e a prática profissional e que “a superação desses ‘pecados’ só é possível a partir de uma concepção dasciências da educação em que estas permitem interrogar práticas, mas não permitem ditar práticas. [...]”. Neste sentido, nosso papel é o de tentar “contribuir para um acréscimo de lucidez por parte de todos os atores sociais envolvidos no campo da educação” e “renunciando à produção de um discurso fundado na previsão ou na prescrição”, buscamos construir um “conhecimento que permita ajudar os atores sociais a organizar de outras maneiras as suas interações.” (CANÁRIO, 2006, p. 155).

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