A POLÍTICA EDUCACIONAL PARA O USO PEDAGÓGICO DE TECNOLOGIAS: COMO A EDUCAÇÃO ENTRA NESTE DEBATE?
Resumo: O presente artigo focaliza a política educacional que fomenta o uso pedagógico das tecnologias digitais e o modo como a educação é inserida na pauta desta discussão. Foram analisados documentos oficiais que legitimam a política e textos científicos que abordam a temática. Como dispositivo de análises foi utilizada a arqueologia foucaultiana considerando as regularidades discursivas no contexto da formação dos objetos. Seguindo esta perspectiva teórica e metodológica, conclui-se que o desenvolvimento de políticas ligadas ao uso de tecnologias digitais nas escolas interessa muito mais aos atores da político-econômica, do que aos sujeitos da educação nas várias instâncias da gestão.
Palavras-chave: educação; tecnologias digitais na educação; discursos.
INTRODUÇÃO
O presente texto versa sobre a política desenvolvida pelo governo brasileiro para fomentar a utilização das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) nos espaços públicos escolares. Como parte de uma pesquisa maior, intitulada “O Programa Um Computador por Aluno (PROUCA) e a qualidade da educação da rede municipal de Riacho de Santana-Bahia”, o artigo descreve e analisa a política educacional que fomenta o uso pedagógico das tecnologias digitais e o modo como a Educação é inserida na pauta desta discussão, visto que a inserção desses recursos tecnológicos envolve interesses políticos, econômicos e sociais em um determinado momento histórico.
A descrição e análise partem do contexto histórico que suscitou a emergência da inserção tecnológica na educação e os debates sobre a política de informática no Brasil, realçando, para tanto, alguns dos principais programas educacionais criados para efetivar esta política. Observando os discursos que caracterizam o uso das tecnologias como estratégias que favoreçam a educação brasileira trilhar caminhos em direção à qualidade, o corpus da pesquisa envolveu um conjunto de discursos oficiais, encontrados em documentos como Leis, Decretos, Diretrizes, resultados de pesquisas e textos de orientação que formalizam os discursos em torno do uso de tecnologias digitais na educação; o corpus envolveu também os discursos científicos legitimados em livros, artigos, teses e dissertações publicadas tanto na modalidade impressa quanto online, disponível em sites oficiais e não oficiais na internet.
De posse desses recursos, utilizou-se como dispositivo de análises, os caminhos apontados por Foucault (2004) na obra A Arqueologia do Saber na qual foi considerada as regularidades discursivas no contexto da formação dos objetos. É n’Arqueologia, que Foucault descreve os caminhos que revelam as regularidades que moldam o discurso, sendo estes caminhos, a formação dos objetos, a formação das modalidades enunciativas e a formação dos conceitos. O presente texto considerou somente a formação dos objetos, cuja estratégia, incumbiu de evidenciar como o objeto apareceu e pode ser descrito.
Com base nesta perspectiva teórica e metodológica, a análise buscou dar status ao objeto e demarcar as superfícies de emergência, as instâncias de delimitação e as grades de especificação, propostas por Foucault (2004). No que se refere à formação dos objetos, a leitura d’Arqueologia foucaultiana questiona sobre as regras que condicionam ou condicionaram a existência do objeto de investigação. Assim, ao longo do texto que constitui este artigo, foram demarcadas as primeiras superfícies de emergência do objeto que significa esclarecer que “não se pode falar de qualquer coisa em qualquer época” (FOUCAULT, 2004, p. 50). Demarcar as superfícies de emergência é também considerar que o objeto não é o mesmo em diferentes sociedades, diferentes épocas e diferentes formas do discurso e, por isso, a presente análise contextualiza, brevemente e historicamente, o modo como aparecem os discursos em torno do uso pedagógico das tecnologias digitais, constituindo uma política educacional.
A descrição das instâncias de delimitação revelou que o objeto aqui analisado, o uso pedagógico das tecnologias digitais, insere-se no campo das Políticas desenvolvidas para a educação. Assim, é possível afirmar que, no campo das Ciências Humanas, a análise realizada não foi reduzida em meras descrições em um esquema linear, mas buscou relacionou discursos a partir das descontinuidades.
Delimitado o objeto, este foi conduzido para as grades de especificação que são os sistemas segundo os quais o objeto é separado e que, por sua vez, encontra-se agrupado, associado a outros objetos. E, neste sentido, foi possível perceber que o objeto analisado avizinha-se a outros objetos que, no cenário das Políticas Educacionais em Tecnologias, constitui uma política materializada por meio de programas que serão citados a seguir.
A POLÍTICA DE INFORMÁTICA NO BRASIL: COMO A EDUCAÇÃO ENTRA NESTE DEBATE?
Os primeiros passos da política brasileira em direção à informatização iniciaram no contexto da década de 1960 quando o capitalismo internacional, marcado por uma série de transformações, engendra novas concepções políticas aos governos pós-1964, sobretudo, em detrimento da ameaça socialista no auge da Guerra Fria. A abertura ao capital estrangeiro permeava a política econômica dos governos militares da época que apontava para o crescimento da economia brasileira.
Os investidores estrangeiros, fugindo da crise do modelo fordista-taylorista, encontraram em países da América Latina, como o Brasil, espaços propícios para investimentos do capital produtivo. Para Harvey (2013), foi também um período em que as políticas de substituição de importações em muitos países latino-americanos, em particular, associados ao primeiro grande movimento das multinacionais na direção da manufatura no estrangeiro, formaram uma onda de industrialização fordista em ambientes inteiramente novos.
Associada à entrada de capital internacional, crescia o interesse do Brasil em inserir nos debates a pauta do tema informática, tendo em vista a crescente industrialização e urbanização que anunciava o período em questão. O acesso ao conhecimento científico e tecnológico, que sempre teve importância na luta competitiva, passa a ser renovado com maiores interesses e ênfases, já que num mundo de rápidas mudanças de gostos e necessidades, de sistemas de produção flexíveis, o conhecimento da última técnica e do produto mais novo implica na importante vantagem competitiva (HARVEY, 2013).
Neste cenário, emergem as discussões e primeiras ações para a indústria da informática no Brasil, embora fossem bastante restritas aos pequenos grupos de interesses dos governos militares. Professores universitários de escolas de engenharia, como o Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), ao lado da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, constituíam grupos que nacionalmente se destacaram na formação de recursos humanos para a área de Tecnologias da Informação e Comunicação, somando ainda os técnicos de informática do governo e oficiais militares engenheiros (CASTRO, 2011).
Estes grupos de profissionais debatiam a temática por meio de seminários e congressos, apresentando diversidades de interesses e abordagens. De um lado, havia aqueles cujo interesse era produzir capacidade tecnológica para o desenvolvimento da indústria bélica, considerando o contexto da ameaça socialista durante a Guerra Fria. De outro lado, havia os interessados em constituir uma política para a inserção do Brasil no mercado da informática (CASTRO, 2011). Observa-se, nesta conjuntura, um jogo de interesses políticos associados ao mercado. No entanto, apesar das divergências, ambos os grupos de profissionais, compartilhavam a ideia de que dominar a tecnologia dos computadores seria uma questão estratégica para o Brasil (MARQUES, 2000; CASTRO, 2011).
Na década de 1970, o panorama econômico e político anunciava a valorização do acesso ao conhecimento científico e técnico, favorecendo para modificar as relações entre Estado e Mercado. A indústria, que tradicionalmente dependia de restrições locais (do Estado), no tocante às fontes de matérias-primas e mercados, torna-se muito mais independente (HARVEY, 2013). Percebendo isso, um número cada vez maior de profissionais de informática passou a ter a opinião de que os esforços de desenvolvimento de uma tecnologia de minicomputadores, dominada por brasileiros, não poderiam ter continuidade sem o envolvimento de empresas privadas (MARQUES, 2000). As tímidas discussões e ações limitavam-se, portanto, ao campo da engenharia, ligadas à produção de computadores. Não se falava, ainda, em política de tecnologia para a educação brasileira e nem mesmo o MEC participava destes debates.
Em 1972, foi criada a Comissão de Atividades de Processamento Eletrônico (Capre), constituindo o primeiro órgão do Estado brasileiro encarregado de desenhar caminhos para inserir o Brasil no campo das políticas de fomento à informatização, contudo, somente em 1976, o MEC vem integrar a equipe da Capre (CASTRO, 2011). A inserção do MEC nesta pauta justifica-se após resultado de um estudo elaborado pelo recém-criado Instituto Brasileiro de Informática (IBI) que apontou um déficit acentuado de profissionais de nível médio e superior em projetos de informática. De acordo com Castro (2011), essa conclusão foi decisiva para que a área da educação fosse mobilizada a envolver-se com o processo.
O envolvimento do MEC, neste processo, não se traduzia ainda numa política pública de tecnologia para a educação brasileira, visto que o valor dado à tecnologia da informação era altamente estratégico para o controle do poder político militar da época. Quando falamos em política, consideramos a produção da ação humana interessada, sendo, por isso, uma construção político-social que passa a existir pela ação e práticas discursivas dos sujeitos sociais (GOMES, 2011). Neste sentido, política refere-se ao debate e a disputa da sociedade organizada por meio da participação e, por consequência, por meio do discurso. Para Mainardes (2006), a política é entendida como disputa entre competidores para definir objetivos em que os discursos são usados.
A política vista como discurso, observa os limites sobre o quê é permitido pensar e tem o efeito discursivo, porque somente alguns discursos serão considerados legítimos e investidos de autoridade. Segundo Foucault (2013), isso acontece porque cada sociedade tem seu “regime de verdade”, suas políticas gerais de verdade, tendo, portanto, os discursos que ela aceita e faz funcionar como verdadeiros, ou seja, os sujeitos estão imersos numa variedade de discursos, mas alguns discursos serão mais dominantes que outros (MAINARDES, 2006).
Os discursos que começavam a dominar o campo científico, no início de 1980, pautavam-se no papel do computador como provocador de mudanças pedagógicas profundas e que o grande desafio estaria na mudança da abordagem educacional: transformar uma educação centrada no ensino, na transmissão da informação para uma educação em que o aluno pudesse realizar atividades por intermédio do computador (VALENTE, 1999). O discurso ganhou força no final da década de 1970 e início dos anos 1980 quando o acesso à informação e ao seu controle, aliado à capacidade de analisar dados, tornaram-se essenciais (HARVEY, 2013).
Estes e muitos outros fatores não menos importantes contribuíram para que a informática se consolidasse como uma das prioridades brasileiras no campo da pesquisa. Isso porque o desenvolvimento das tecnologias interessa aos Estados que desejam a supremacia militar e a manutenção do controle; interessa também as organizações empresariais de eletrônica e software, entre os grandes conjuntos geopolíticos; responde ainda aos interesses de seus desenvolvedores e usuários que procuram aumentar a autonomia dos indivíduos; por fim, interessa aos cientistas, artistas, estudantes, ativistas da rede que desejam melhorar a colaboração entre as pessoas (LEVY, 1999).
Ao final dos governos militares, foi estruturada a Comissão Especial de Informática na Educação (SEI) a partir de seminários nacionais realizados nos anos de 1981 e 1982, promovidos em conjunto com o MEC e que contaram com a participação da comunidade científica, a qual recomendou a realização de experimentos piloto com a finalidade de criar referências para uma adequada utilização da informática no campo da educação (ALMEIDA, 2008). É possível afirmar que o I e o II Seminários Nacional de Informática na Educação, realizados respectivamente em 1981 e 1982, marcaram o início mais maduro de um debate para a inserção das TICs nos espaços escolares.
Nos anos 1980 e, principalmente nos de 1990, se verifica que a possibilidade de cada indivíduo dispor de um computador pessoal já se descortinava com a fabricação dos microcomputadores, provocando uma mudança de estrutura de mercado (MARQUES, 2000) nos países desenvolvidos. Partindo do exemplo norte-americano, Valente (1999) salienta que a proliferação dos microcomputadores, no início da década de 1990, permitiu o uso do computador em todos os níveis da educação americana, sendo largamente utilizado na maioria das escolas de ensino fundamental, de ensino médio e nas universidades.
As tecnologias são inseridas no contexto escolar brasileiro ao final dos anos 1980 e início de 1990, muito que timidamente, quando as investigações, até então desenvolvidas, passam a sustentar a adoção de políticas e iniciam a implementação de programas voltados à introdução de computadores nas escolas, cada qual com características próprias, como, por exemplo, o projeto Educação com Computador (EDUCOM) no Brasil (BONILLA, 2012; ALMEIDA, 2008; VALENTE, 1999).
A introdução da informática na educação, segundo a proposta de mudança pedagógica, exige uma formação bastante ampla e profunda dos professores (VALENTE, 1999). Sabendo disso, o governo da época criou o programa de Formação de Recursos Humanos (FORMAR) destinado à formação de professores para o uso do computador no Brasil. Este programa foi criado pelo Governo José Sarney, mediante o Ministério da Educação em 1987, como um dos componentes do Plano de Ação Imediata (PAIE) O Plano de Ação que o texto refere é o Plano de Ação Imediata (PAIE), criado em 1986 quando o MEC decide reativar a área de tecnologia Educacional, criando o Comitê Assessor de Informática na Educação (Caie), com vinculação direta ao gabinete do Ministro da Educação e integrado por representantes de universidades. É a equipe deste comitê que vai criar o PAIE.. Contudo, o referido programa só conseguiu realizar 3 (três) cursos de formação de professores: em 1987 e 1989, na Unicamp e em 1991, na Universidade Federal de Goiás, quando já estava em vigência o Programa de Informática na Educação (PRONINFE) (ALMEIDA; 2008, MORAES, 1997). O que se nota é que essa formação não acompanhou o avanço, tanto tecnológico quanto do nível de compreensão, sobre as questões da informática na educação.
Com o advento da TICs e da internet, a política de fomento ao uso de tecnologias digitais nas escolas ganha ainda mais corpo com a criação de outros programas no cenário brasileiro. O MEC investe na criação do Programa Nacional de Informática na Educação (PRONINFE), instituindo o primeiro programa que disseminaria a utilização da informática educativa nas escolas. Em 1996, é constituída a Secretaria de Educação à Distância (SEED), entendida como anfitriã do Programa TV Escola e instigadora de programas com foco na introdução de tecnologias na escola e na preparação do professor (ALMEIDA, 2008).
Em 1996/97, é criado o Programa Nacional de Informática na Educação (ProInfo), durante o governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso, que continuou a receber significativas atenções ao longo da gestão do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, se desdobrando em ProInfo Integrado e tendo se constituído desde sua criação como o principal programa de educação ligado às tecnologias digitais na educação até o presente momento.
No ano 2000, foi lançado o Livro Verde, contendo metas de implementação do Programa Sociedade da Informação para aplicação das Tecnologias da Informação nos mais amplos segmentos da sociedade brasileira. O documento que lhe deu origem foi elaborado pelo Grupo de Implantação do Programa, composto por representantes do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), da iniciativa privada e do setor acadêmico. Lançado durante o segundo mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso, o Livro Verde contempla um conjunto de ações visando impulsionar o Brasil para a Sociedade da Informação em todos os seus aspectos: ampliação do acesso, meios de conectividade, formação de recursos humanos, incentivo à pesquisa e desenvolvimento, comércio eletrônico, desenvolvimento de novas aplicações (BRASIL, 2000).
Verifica-se que o interesse decorre muito mais do movimento de atores envolvidos, do ponto de vista econômico, com a formulação das políticas de tecnologia, do que da iniciativa ou interesse do MEC (CASTRO, 2011) ou dos anseios dos sujeitos que compõem as próprias escolas. No entanto, de acordo com Bonilla (2009), os interesses sociais começam inserir nos debates a participação social nas iniciativas de universalização das TICs gerando outra dinâmica sintonizada com as necessidades sociais da população brasileira.
Nos últimos dez anos, obedecendo a fases de experimentação, foi lançado o Programa Um Computador por Aluno (PROUCA), sendo este um projeto adaptado e desenvolvido pelo governo brasileiro, tendo como referência o projeto One Laptop per Child (OLPC), criado em 2005, por um grupo de pesquisadores norte-americanos, liderado por Nicholas Negroponte, diretor do Massachussets Institue of Technology (MIT). Com o objetivo de fomentar o uso pedagógico das Tecnologias da Informação e Comunicação TICs aos estudantes do ensino básico, acreditando, com isso, melhorar o processo de aprendizagem destes sujeitos, a proposta foi apresentada ao governo brasileiro por ocasião do Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça, em janeiro de 2005 Informações adquiridas por meio do site wiki.laptop.org, acessado em 16 de janeiro de 2016..
O Projeto UCA, como era chamado, surgiu alicerçado na Presidência da República para facilitar a tomada de decisões e a agilidade na sua implementação. A descrição histórica acima nos chama a atenção para a ausência do MEC nas discussões iniciais sobre o programa, do mesmo modo como ocorreu o início da política voltada para o uso pedagógico das tecnologias. Somente despois de o governo ter aprovado a proposta é que o MEC, através da SEED, tornou-se diretamente responsáveis pelo programa, ainda que numa perspectiva de baixa integração com as outras áreas do ministério, que se mantiveram, aparentemente, resistentes ao experimento (LAVINAS; VEIGA, 2013, p. 4). A partir de 2010 é que o Projeto UCA passa a denominar PROUCA quando é aprovada a Lei nº 12.249, de 10 de junho de 2010, que trata, dentre outros assuntos, da criação do programa.
A contextualização histórica da política que incentiva e defende o uso de tecnologias e a apreciação de determinados programas que consolidaram a prática do discurso, estabeleceram as condições para que o PROUCA e os programas que o antecederam aparecessem e para que, nesta época que estamos vivendo, fosse possível falar da possibilidade de cada aluno de escola pública dispor de um laptop para estudar. Isso significa que o aparecimento desta política foi determinado por um feixe de relações que efetuaram o discurso para que pudéssemos falar sobre uma política educacional para o uso TICs.
Embora a educação seja considerada um elemento-chave na construção de uma sociedade baseada na informação, no conhecimento e no aprendizado, como abordou o Livro Verde, o campo da educação não é o protagonista quando os debates sobre a inserção das tecnologias nas escolas aparecem como pauta. No entanto, como é uma vontade política, econômica e também uma vontade da sociedade, o debate convida a educação a fazer parte da pauta, uma vez que os discursos elegeram verdadeiros os condicionantes para o uso das tecnologias na educação.
A FORMAÇÃO DO OBJETO: A POLÍTICA EDUCACIONAL DE FOMENTO AO USO PEDAGÓGICO DAS TECNOLOGIAS DIGITAIS
Se, em nossa sociedade, nesta época que estamos vivendo, a utilização de tecnologias digitais é considerada como um elemento crucial para o desenvolvimento econômico, e esta verdade está presente nos discursos de políticos, de cientistas e da sociedade em geral, temos aí, o estabelecimento de um conjunto de relações. Relações entre planos de especificação, como as universidades; relações entre a instância de decisão, como os gestores políticos; relações entre as normas familiares que formam o conjunto da sociedade e garantem a aceitação da verdade e; relações nas instituições de educação que, por meio dos seus sujeitos, permitem que estas tecnologias sejam utilizadas. São estas relações que, atuando no discurso das políticas educacionais, permitiram a formação de programas acima supracitados.
Levando em consideração o breve contexto histórico apresentado, foram identificadas as primeiras superfícies de emergência do objeto de estudo. A superfície de emergência que, conforme foi vista, seria o primeiro procedimento de Foucault sobre o regime de existência dos objetos do discurso e consiste em mostrar onde os objetos podem surgir para que em seguida, possam ser designados e analisados (FOUCAULT, 2004).
O cenário brasileiro, que permitiu a constituição de uma política ligada ao uso de tecnologias na educação, esteve alicerçado nas instituições militares e industriais que passaram a ter mais visibilidade no contexto histórico da Guerra Fria. Sabendo que os efeitos desta guerra não foram os mesmos nas diferentes sociedades, no Brasil, onde o desenvolvimento industrial acelerava a economia de mercado, as condições históricas da época foram propícias para que os setores político e econômico pensassem em investir em informática e comunicações. Demarca-se aqui a primeira superfície de emergência que advém de uma época específica em que os debates não foram constituídos diretamente na educação, por isso, podem ser demarcadas sob formas diferentes do discurso atual.
O segundo procedimento que descreve o objeto na sequência, consiste em revelar as instâncias de delimitação dos objetos (FOUCAULT, 2004, p. 47). O nascimento dos enunciados referentes ao uso de tecnologia na educação emerge ao cair das décadas de 1960/70, no âmbito da elite política e econômica brasileira, por meio de instituições militares e de empresas apoiadas no modelo de desenvolvimento industrial da época. Foram estas as instituições regulamentadas, formadas por um conjunto de indivíduos, que detinham o saber e a prática como competência reconhecida pela opinião pública, pela justiça e administração (FOUCAULT, 2004). A esses indivíduos dotados de saber, cabiam as práticas institucionalizadas que delimitavam e constituíam certo objeto numa determinada época, organizando os saberes em torno desse objeto e garantindo o funcionamento das práticas discursivas.
O terceiro caminho apontado por Foucault (2004) trata-se das grades de especificação segundo as quais “separamos, opomos, associamos, reagrupamos, classificamos, derivamos” (FOUCAULT, 2004, p. 47) os diferentes tipos de objetos. Por este caminho, entende-se que o presente debate vincula-se à política que fomenta o uso das tecnologias na educação e é a partir de um enunciado deste que, com as rupturas e descontinuidades, o objeto de que se trata esta análise, pode ser nomeado e alcançado seu status. Assim, é possível traçar uma grade de especificação, levando em conta asconcepções e discursos sobre a importância das TICs na educação, o que permite observar que tais concepções e tais discursos constituem em uma verdade científica porque foi tomado como verdadeiro numa época e está ligado ao sistema de poder (SILVA, 2004). É, neste sentido, que Foucault adverte que:
Não se pode falar de qualquer coisa em qualquer época; não é fácil dizer alguma coisa nova; não basta abrir os olhos, prestar atenção, ou tomar consciência, para que novos objetos logo se iluminem e, na superfície do solo, lancem sua claridade (FOUCAULT, 2004, p. 50).
As superfícies de emergência, as instâncias de delimitação e grades de especificação se relacionam. Nesse caso, definir o objeto do discurso é determinar as relaçõesque se estabelecem entre elas. Na análise dessas relações, não foi difícil perceber que o conhecimento sobre a tecnologia dos computadores já seria um conhecimento científico validado no contexto histórico apresentado na seção anterior, tendo se tornado, portanto, uma verdade científica, logo, uma questão de poder entrelaçada ao saber.
Cada campo discursivo, o político, o econômico e o científico desenvolvem maneiras próprias de formação de seus objetos. O conjunto de relações que este objeto estabelece em cada campo, caracteriza uma formação discursiva entre as instâncias de emergência, de delimitação e de especificação. Do breve contexto exposto, se compreende o que possibilitou o aparecimento do enunciado quanto à importância do uso de tecnologias digitais nas escolas, constituindo uma prática discursiva.
O campo político, econômico e científico elege como verdadeiro o discurso em torno da tecnologia dos computadores, evidenciando um efeito do saber e do poder. Para Foucault (2014), o poder é quem determina os enunciados verdadeiros ou falsos em uma época. Desde então, saber e poder dominar a tecnologia dos computadores tornara-se uma vontade política, econômica e científica que se baseava na verdade de que esta dominação seria imprescindível para o desenvolvimento econômico de um país e para que o Estado dispusesse de instrumentos para o controle de sua soberania.
Por que este enunciado e não outro? Porque ao considerar os discursos a partir das descontinuidades depara-se com um conjunto de regras relacionadas a uma dada prática discursiva que definem em sua especificidade. Tais práticas, com suas regras próprias, estabelecem as relações necessárias para se falar dos objetos, ou seja, para que certos objetos apareçam (SILVA, 2004). Foi pensando nisso que, neste ponto, foi possível relacionar as instâncias de emergência, de delimitação e de especificação para a formação do objeto. Nos diversos campos, o enunciado refere-se à necessidade de utilizar as tecnologias digitais, constituindo uma formação discursiva.
No âmbito da política-econômica nacionalista de informática, o papel atribuído à educação era o de formar os recursos humanos necessários para estruturar um mercado, não apenas consumidor, mas também desenvolvedor e produtor de tecnologia (CASTRO, 2011). O envolvimento do campo da educação com a área de informática não anunciava um propósito de contribuição da tecnologia para a solução de problemas da educação, no entanto, a escola encarrega-se de operar as individualizações disciplinares, engendrando novas subjetividades e vem cumprindo seu papel na constituição da sociedade (VEIGA-NETO, 2011), por isso, é um espaço propício para as práticas discursivas ligadas ao uso das tecnologias e revela o que disse Foucault: “[...] todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo” (FOUCAULT, 2013, p. 41).
A produção dos atuais discursos em torno do uso das tecnologias digitais na educação agrega sentidos de discursos anteriores que o sujeito atual apreende e o faz como produtor. As décadas de 1960/70 foi um período de crise do capitalismo keynesiano e ascensão do capitalismo neoliberal, palco para o advento das grandes multinacionais e transnacionais onde os países capitalistas se esforçavam para mostrar ao mundo as vantagens deste modo de produção em relação ao socialismo soviético. As nações pobres, como as da América Latina, se encontravam envolvidas num regime político militar desenvolvimentista, de grande crescimento econômico e com muito fôlego para a implantação de uma política própria de informática. O contexto histórico da época permitiu a emergência dos discursos da informática na escola dos anos 1980 com a criação dos primeiros projetos de informática na educação.
A primeira década do século XXI é marcada com o advento e disseminação das tecnologias digitais móveis: a telefonia celular foi disseminada e aceita nos mais diversos países facilitando o processo de comunicação e o acesso à informação com os atuais smartphones, notebooks, netebooks e tablets; possibilitaram o uso do computador e da internet em qualquer lugar através dos caracteres de mobilidade, conectividade sem fio, sistema um por um, convergência e uso de diferentes mídias. Este foi contexto das primeiras décadas do século XXI que reverberou os discursos em torno do uso pedagógico das tecnologias digitais e fortaleceu a materialização dos mesmos com a experiência do ProInfo e do PROUCA que são os recentes programas desenvolvidos no Brasil.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Seguindo as regras de formação do objeto, identificou-se, em vários pontos deste texto que, os discursos que legitimam a inclusão das tecnologias no ambiente escolar, constituem uma prática discursiva, por estabelecerem relações com os enunciados de diversos campos discursivos, legitimando uma verdade. De acordo com as teorizações foucaultianas, a prática discursiva não é o ato da fala, mas é o conjunto de enunciados que formam ações, o que nos conduziu a perceber que os discursos em torno do uso das TICs nas escolas, tornam-se uma prática discursiva no momento em que as ações são materializadas com a criação dos programas. No entanto, é importante destacar que uma prática discursiva depende da vontade dos sujeitos envolvidos e muitas vezes esta não é suficiente para gerá-la e fazê-la funcionar.
À luz das teorizações foucaultianas, constata-se que, no Brasil, o uso de tecnologias digitais no contexto pedagógico tem sido um assunto de interesse econômico, político e social sendo que, o campo da educação, no que se refere à ampla gestão, o Ministério da Educação (MEC), não fez parte dos primeiros debates sobre a política de informática no Brasil. A partir da leitura de documentos e textos científicos que permitiu descrever um breve levantamento histórico, verifica-se que o discurso do Estado em relação ao uso pedagógico das TICs é sustentado pelo discurso científico quando ao se perceber que instituições de ensino superior e de pesquisa defendem a política e seus investimentos.
O debate apresentado trouxe a gênese da relação entre educação e tecnologia no Brasil. Daí verificou-se que esta relação interessa muito mais aos atores da economia, com a formulação das políticas de informática, do que da iniciativa ou interesse dos protagonistas da educação, como, por exemplo, o MEC. Castro (2011) revela que muitas políticas relacionadas à tecnologia na educação, em sua origem, alinham-se mais às diretrizes que orientavam a Política Nacional de Informática (PNI) do que àquelas que davam o tom da política educacional geral.
Por tudo isso, é possível afirmar que a educação não entra como protagonista na discussão inicial, mas como personagem secundária, considerada essencial para o alcance de um objetivo e, portanto, repete-se uma política economicista, dando continuidade à mesma estratégia da década de 1960/70 que visa inserir o Brasil numa economia globalizada de acordo com a premissa do neoliberalismo.
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