ENTRE O SABER, O FAZER E O PODER NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO INFANTIL MUNICIPAL: A NARRATIVA DE UMA EXPERIÊNCIA

Resumo: Esta pesquisa problematiza como a Politica Nacional de Educação Infantil orientada pelo Ministério da Educação é implementada pelos municípios, discutindo a relação intergovernamental. Trata-se de uma investigação de viés narrativo-interpretativo. Nos últimos anos, pesquisas, programas e projetos foram propostos pelo MEC para expandir e ressignificar esse direito educacional. Todavia, os sistemas municipais gozam de autonomia para execução de suas responsabilidades. Em meio às discussões sobre o regime de colaboração tem-se a invisibilidade das peculiaridades locais. Buscou-se aprender as relações de poder entre as esferas políticas e o gestor da política de Educação Infantil em âmbito municipal.

Palavras-chave: Educação Infantil; Políticas Públicas; Gestão da Educação Básica.

Experimente: se você fosse você, como seria e o que faria?
 (Clarice Lispector, 1984)


PRÓLOGO

A presente pesquisa vem se construindo e ganhando forma enquanto objeto epistemológico  desde 2012, visando dar continuidade a pesquisa que originou a dissertação do mestrado desta pesquisadora. Seus contornos, nuances e trama se sustentam em um tripé que institui essa investigação, quais sejam: a vivência desta pesquisadora na gestão da educação municipal no âmbito da educação infantil;  a militância social e política em prol da Educação Infantil e dos direitos das crianças, com foco na discussão das políticas nacionais destinadas à área e; os estudos dos paradigmas teórico-metodológicos das ciências sociais que discutem a criança como sujeito histórico de direitos.

O modus operandi  escolhido para escrita deste relato, pelo caráter pessoal e relação subjetiva com a temática, mesmo não adentrando no âmbito das pesquisas autobiográficas, terá o viés de narrativa com característica heterogênea, que transita entre o relato científico e uma escrita livre que visa gozar da licença literária, e busca por meio do ato de narrar, a produção de sentido, através da interpretação de si, em que intenção e intuição se articulam por dentro, tentando dar ressignificados ao vivido.

O exercício de tomar a mim mesma, minhas práticas e vivências (na gestão pública) como objeto de discussão científica, não tem a finalidade de autopromoção ou narcisismo, por que não tomo o “eu” solitário, das ações, emoções e subjetividades íntimas e privadas, mas o “eu “ das identidades sociais,  sujeito normativo:  mulher, negra, nordestina, professora - pesquisadora, classe média baixa, heterossexual, católica, militante social e pós-graduada, esse eu múltiplo, o si Foucaultiano, construído, em construção, subjetivado.

Tal como Pierre Bourdieu em seu “Esboço de uma auto-análise” (2005), - obra autobiográfica que,  segundo ele, não é uma biografia -, este exercício de reflexividade sobre si mesmoexige  “confissões de culpa”, que aqui serão tomadas pelo viés sociológico,  e que buscaram “absolvição”  na filosofia Foucaultiana, pelo exercício da  coragem da verdade; mesmo que outros interpretes possam fazer análises psicanalíticas, as quais não me interessam nesse momento.

Sabe-se, que a maioria das pesquisas sobre política educacional são de abordagem macro-estruturante, bem poucas, têm cunho interpretativo para além da perspectiva da análise de representações sociais; o que torna a tarefa a que estou me propondo, ainda mais árdua e perigosa. Considerando ainda, que as pesquisas sobre “experiências do vivido” no campo educacional, sejam elas autobiografias, memórias, pesquisas do/no cotidiano, narrativas e interpretações de si -, em grande maioria abordam a prática docente, ou seja, as intersubjetividades presentes ao exercício do magistério, poucas  versam sobre a experiência da gestão da política pública. Trabalho “solitário”, para o qual não se tem muita formação para exercício da função, mas se é alvo de muitas críticas, mas de pouca autocrítica reflexiva, tarefa que resolvi assumir e que vos apresento.

O CENÁRIO LUDOVICENSE: OU SOBRE O PODER

No ano de 2012, um mês após o resultado das eleições municipais, fui convidada para uma conversa com camaradas do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), partido da base aliada do recém-eleito Prefeito de São Luís, Edivaldo Holanda Junior (PSB), oportunidade que recebi o convite para compor a equipe da Secretaria Municipal de Educação como Superintendente da área de Educação Infantil, responsável pela gestão da educação das crianças 0 a 5 anos e 11 meses de idade da capital maranhense.

Após consultar várias pessoas, disse sim, e aceitei não um convite, mais o desafio de ser responsável pela implementação da Política Educacional em 78 unidades de educação básica que recebiam cerca de 16.000 crianças de 2 a 6 anos de idade (idade de entrada e permanência das crianças até a conclusão da Educação Infantil), junto a mais ou menos 1.000 professoras, cerca de 250 coordenadoras pedagógicas e 80 gestoras escolares sob minha responsabilidade, cargo que exerci de Janeiro a Novembro de 2013.

Mas o que me levou a receber tal convite? O que me garantiu chegar até aquele lugar? A “filiação” política não era. Ou não, só! Caberia recortar meu percurso e dividir meus caminhos em algumas frentes, que correm paralelamente, e que alicerçaram o tripé que sustenta minha trajetória, todavia, que não cabem nesse recorte de pesquisa. Mas vale a ressalva que os meus lugares de fala, aludidos como o tripé: pesquisa – prática pedagógica (docência e gestão) – militância, são a força motriz dos meus movimentos, pois não se dão em separado, fazem parte de um todo interdependente.

Gosto da ideia de campo como categoria explicativa conforme nos apresentou Bourdieu (1968), quase uma alegoria ilustrativa das correlações de forças e disputas dos agentes que constituem um determinado campo. Aqui, o campo em questão é o campo político (de poder).  Na teoria de campo, segundo o referido autor, um espaço, seja ele físico ou não, é comporto por agentes sociais que possuem diferentes tipos de capital (cultural, político, social, econômico, simbólico), e de acordo com a variedade de tipos de capital e da quantidade/qualidade dos mesmos, os agentes ocupam uma posição determinada dentro do campo, é essa bagagem de capital que garante aos agentes não só sua posição no campo, mais sua capacidade de disputar por espaço dentro dele.

Considerando as características da composição do campo, resta apresentar os agentes (para além dos sujeitos, pois as instituições e esferas de governo também podem ser entendidas enquanto tal) e as forças em disputa no campo da educação municipal de São Luís. Faço a advertência que a configuração desse campo é muito maior do que está sendo apresentada, pois ela se insere dentro da política municipal de forma macro, que se situa dentro de um campo bem maior, em suas relações intergovernamentais. Caberia uma ampla apresentação do campo político (de poder) e as correlações de força inerentes à política maranhense, a qual, mesmo em um governo eleito como oposição, passa a operar pela mesma lógica política que foi “situação” por quase 50 anos. O modus Sarney de fazer política Ver CARVALHO, José M. de.  Mandonismo, Coronelismo, Clientelismo: uma discussão conceitual. Dados, Rio de Janeiro, v. 40, n.20, 1997., que se estende hoje para além das fronteiras maranhenses e tem no compadrio uma de suas maiores marcas.

O Estado é resultado de um processo de concentração de diferentes tipos de capital, capital de força física ou de instrumentos de coerção (exército, polícia), capital econômico, capital cultural, ou melhor, de informações, capital simbólico, concentração que, enquanto tal, constitui o Estado como detentor de uma espécie de metacapital, com poder sobre os outros tipos de capital e sobre seus detentores (...) Segue-se que a construção do  Estado está em pé de igualdade com a construção do campo de poder, entendido como o espaço de jogo no interior do qual os detentores de capital (de diferentes tipos) lutam particularmente pelo poder sobre o Estado, isto é, sobre o capital estatal que assegura o poder sobre os diferentes tipos de capital e sobre sua reprodução (notadamente por meio da instituição escolar) (BOURDIEU, 1996, pp 99 – 100, grifos do autor)

Delinear as características gerais da politica municipal que por vezes assolam muitas secretarias municipais de educação pelo Brasil a fora, é um tema caro e pertinente à conjuntura da politica educacional brasileira contemporânea que no momento discute a implementação de um Sistema Nacional de Educação – SNE, e volta a rediscutir o Regime de Colaboração e o Pacto Federativo. Tais questões são difíceis de serem aprofundadas no espaço delimitado a esse texto, a exemplo também, das implicações da Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF e outras medidas da política nacional que têm afetado negativamente a esfera da educação municipal.

O grande desafio para a construção de um sistema nacional de educação, que respeite o princípio da igualdade de todos brasileiros quanto ao direito à educação, independente de questões territoriais ou de coletividade políticas típicas do federalismo, é o debate denso e consiste sobre as relações intergovernamentais no Brasil quanto à oferta educacional, o que pressupõe o estabelecimento de uma justa distribuição de poder, autoridade e recursos entre os entes federados, garantindo a interdependência e interpenetração dos governos nacional e subnacionais, sem que haja comprometimento de um projeto de desenvolvimento nacional, do qual um dos elementos é a educação (ARAÚJO, 2010, p. 240).

Assim, compete-nos adentrar nas especificidades de São Luís ou ludovicense. A capital maranhense é reconhecida negativamente por ser a única capital dos estados brasileiros que não faz nenhum atendimento em creches públicas às crianças de 0 a 2 anos de idade.  Trata-se da negação de um direito a uma significativa parcela populacional desassistida em uma fase importante de suas vidas em termos: psicossocial, cultural, cognitivo, assim como em âmbito político e econômico, tempos de ampla defesa de um projeto de educação integral e integrada. Das poucas instituições que recebem crianças a partir dos 3 anos de idade, apenas duas são de tempo integral, e ainda há controvérsias sobre a qualidade desse atendimento.

Quanto às demais Unidades de Educação Básica - UEBs, assim denominadas todas as escolas da rede municipal de São Luís, ressalta-se que apenas 72 delas, historicamente, só fazem matrículas e garantem o direito das crianças de 4 a 5 anos  e 11 meses de idade em tempo parcial. Destacando apenas as matrículas em rede direta, sem as escolas comunitárias conveniadas, que foram e são, um logo capítulo paralelo a esse que apresento.

Quase metade das instituições de Educação Infantil conta com estrutura física precarizada, algumas funcionam em prédios anexos, os espaços são pequenos, com baixa iluminação e ventilação natural, poucas dispõem espaços externos que permitam as brincadeiras infantis e atividades pedagógicas extra-sala, contrariando os Padrões de Qualidade e Infraestrutura propostos pelo Ministério da Educação – MEC (2009) para as instituições de Educação Infantil. E ainda, em algumas poucas escolas em que há espaços adequados, como pátios, áreas verde, anfiteatros e brinquedotecas; percebia-se, muitas vezes, a não utilização dos mesmos.

Quanto aos aspectos pedagógicos, que deveriam ter sido o foco da nossa Secretário, Secretária Adjunta e Superintendências de Ensino. gestão, por motivos que ainda apresentarei, infelizmente não o foram. Para além de um calendário letivo atrasado em detrimento da greve de professores e professoras por ajuste salarial, implementação da Lei do Piso do Magistério e condições dignas de trabalho, mas principalmente, pela paralisação de todas as escolas para reformas e manutenções, concomitantemente, engendradas pela gestão anterior Prefeito João Castelo (PSDB)., criou-se um grande problema curricular, além de transtornos com a comunidade ludovicense e Ministério Público, acirrando ainda mais a judicialização da educação (ROSEMBERG, 2015).

Até o ano de 2008,  o retrato que caracterizava a educação municipal enquadrava as seguintes situações: após 6 anos de construção de um sentimento de pertencimento de rede, conquistados por meio da reestruturação da gestão das ações da Secretaria Municipal de Educação, sobretudo por meio da formação continuada de todos  os profissionais; da construção de mais de 30  novas escolas; da realização de concurso público, e de planejamento estratégico; que fez com que prefeito e secretário (ambos do PDT) Prefeito Tadeu Palácio e Secretário Raimundo Moacir Mendes Feitosa. que ocuparam os cargos de 2002 a 2008 ganhassem prêmios e gozassem do reconhecimento nacional, em alguns aspectos. Todo o cenário de crescimento e êxito construído ao logo desses anos começou a ruir e se esfacelar após a posse do prefeito do PSDB em 2009. A educação municipal de São Luís  degradou-se a tal ponto, mas não só ela, que o ex-Prefeito não conseguiu ser reeleito em 2012, gerando uma grande crise financeira ao município.

Nesse contexto, Edivaldo Holanda Junior atual prefeito (recém ingresso ao PDT), surge coberto de expectativas. Os ludovicenses esperavam por um salvador, e a rede municipal de educação parecia carecer mesmo de um grande milagre. Mas as disputas políticas em prol das eleições para o governo do estado que se aproximavam viraram o alvo, após a vitória do pleito municipal, em que a divisão de cargos não visava contemplar apenas os apoios políticos partidários recebidos, mas serem vitrine para as eleições estaduais de 2014.

Todavia, o “Cavalo de Troia” recebido teve como primeiros acontecimentos do inicio da gestão: arrombamentos, assaltos e depredação de oito escolas municipais de Dezembro a Março de 2013, seguido da imposição de assinatura de um Termo do Ajustamento de Conduta – TAC junto ao Ministério Público Estadual, quanto ao cumprimento do déficit de carga horária/curricular gerado no ano de 2012 e o comprometimento de reinicio das aulas para o quanto antes. O que se somou a ameaça de greve de professores/as exigindo a plena implementação da Lei Federal nº 11.738/2008 do Piso do Magistério Público da Educação Básica.

Permeado a essas dificuldades, problemáticas relacionadas às disputas políticas formavam a atmosfera institucional, gerando um clima de constante instabilidade quanto a continuidade do secretário e sua equipe. A falta de direcionamento, a constante intervenção por parte da prefeitura e dos partidos nas questões da gestão educacional; tendo que dar satisfações não só à comunidade escolar pelos problemas das escolas, mas também a mídia oposicionista, alimentada por fogo amigo, à câmara municipal, boa parte também de oposição e, ao Ministério Público, eram entraves que não possibilitavam o andamento das ações pedagógicas.  A entrada, permanência e saída das pessoas dos cargos de comissão pareciam ser a única constância, e mais valorizada que quaisquer questões educacionais.

Dou ênfase ao relato desse cenário, pois julgo que parte dele não é “exclusividade” de São Luís, muitas dessas adversidades e problemas são inerentes aos sistemas municipais de norte a sul do país, muitos deles pela ausência de uma reforma política, mas também da ausência da discussão sobre gestão de políticas públicas em âmbito nacional. No artigo intitulado “O campo das Políticas Públicas de Educação: uma revisão de literatura” Martins (2013) nos provoca a pensar que tipos de pesquisas estão sendo feitas sobre a temática, questionando os aspectos teórico-metodológicos em uma crítica do sempre “mais do mesmo” (p.288). Nele a autora apresenta as seguintes concepções:

Na literatura que procura sistematizar os estudos em políticas educacionais, nota-se a ausência de um ponto relevante. Não há menção ao fato de que o cenário apontado nas pesquisas, muito provavelmente, não diga respeito à análise política da agenda, quando predominaria o foco sobre negociações e conflitos na estruturação de sua pauta, aspectos esses referentes à dimensão da politics.  Infere-se que o contexto acaba compondo, assim, apenas a parte inicial da avaliação/análise de um determinado programa e/ou projeto de governo, sem estabelecer, muitas vezes, maiores articulações com o objeto examinado (MARTINS, 2013, p.288-289).

ENTRE SABERES E FAZERES NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO INFANTIL

Há dez anos Faria (2005) iniciou seu artigo sobre a Politica de Regulação da Primeira Etapa da Educação Básica com a seguinte frase: “Tem sido produto de grande transformação nos conceitos de infância e criança a reformulação de políticas públicas que as contemplem na área da educação” (p. 1014). Ela mostrou-nos que as articulações entre pesquisa, política e prática pedagógica garantiram conquistas e inovações na área, contribuindo para a construção de uma Pedagogia da Infância que se empenha em garantir, via esfera municipal, o direito à educação e a infância das crianças de 0 a 6 anos de idade.

De lá para cá, são realmente inegáveis os avanços qualitativos e quantitativos na área de Educação Infantil, principalmente nos ordenamentos legais e aportes epistemológicos que regem a área. Entretanto, em termo concreto, ou melhor, no âmbito da dignidade das crianças, seja no interior ou não das instituições de Educação Infantil, ainda são poucas as modificações visíveis, e é essa contradição entre o dito, prescrito e o feito, realizável enquanto política pública educacional que trago a tona.

Em estudos anteriores (CANAVIEIRA, 2010), busquei compreender o processo de construção política e epistemológica da Educação Infantil brasileira durante os dois mandatos do governo Lula da Silva (2003 – 2010), relacionando o contexto da política de Educação Infantil pela ótica da militância social, com a fundamentação dos “novos” paradigmas teórico-metodológicos que põem as crianças no centro de seu processo educativo, a Sociologia da Infância. As análises decorrem do contexto de elaboração dos documentos: “Orientações sobre convênios entre secretarias municipais de educação e instituições comunitárias, confessionais ou filantrópicas sem fins lucrativos para a oferta de educação infantil”, “Indicadores de Qualidade na Educação Infantil” e “Práticas cotidianas na Educação Infantil: bases para a reflexão sobre as orientações curriculares” e as novas “Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Infantil”.

As discussões problematizadas na pesquisa intitulada “A Educação Infantil no olho do furacão: o movimento político e as contribuições da Sociologia da Infância” (CANAVIEIRA, 2010) contextualizam o processo de construção política da área, pontuando as (in)constâncias  e o papel dos movimentos sociais, das intelectuais, do “terceiro setor” e do governo, agentes que travam a batalha das ideias em prol de uma concepção de Educação Infantil, mas que chegam a um denominador comum, garantia desse direito.

Contudo, buscando acompanhar esse percurso de construção da área, visando chegar até o chão das instituições de Educação Infantil, o objetivo o qual a maior parte dos documentos e políticas se destina, novamente esbarra nos entraves, agora não mais os teórico-ideológicos ou nas ações parlamentares, mas na micropolítica, nas especificidades regionais, locais que foram tão pouco considerados quando da elaboração dos documentos oficiais em nível nacional.

Continuo então a apresentar o caso de São Luís, não como exemplificação, buscando provar o insucesso dos esforços e conquistas no âmbito da política nacional da área, mas como ponte, como lugar de atravessamento de um ponto a outro, tentando não dar tanto destaque aos pontos, como entendidos como lugares pré-determinados, mas ao percurso, ao lugar do meio, por isso o destaque à experiência, não como metodologia que garante a segurança, mas como território da potência, da imprevisibilidade.

A palavra “experiência” serviu, a muito de nós, para elaborar uma distância a respeito do que poderíamos chamar de “a ordem do discurso pedagógico”, ordem esta que está feita de modos de dizer e de pensar (e de olhar e de escutar, e de ler e de escrever, e de fazer e de querer) nos quais e nos serve para nos situar num lugar, ou numa intempérie, a partir do qual se pode dizer não: o que não somos, o que não queremos. Mas nos serviu também para afirmar nossa vontade de viver, e a possibilidade de uma abertura: para o que não depende de nosso saber nem de nosso poder nem de nossa vontade, para o que só pode se indeterminar comum um talvez (LAROSSA, 2015, p. 177, grifos do autor).

Pois, se eu enquanto pesquisadora tinha conhecimento pujante sobre tais políticas, e enquanto militante tinha até participado, em parte, do processo de elaboração de alguns desses novos ordenamentos legais que visavam assegurar qualidade e equidade à área, por qual motivo não haveria de implementá-los enquanto gestora? Essa foi a pergunta que me fiz em vários momentos. Não se tratava do reducionismo simplista de aplicabilidade do pensado ou ao contrário, que a prática se sobrepõe a teoria, pois a complexidade do real agrega os processos contraditórios e dispares, e as teorias bem explicam isso. Talvez se tratasse de continuar os estudos acerca não só da construção da agenda das políticas, muitas vezes, universalistas demais e sim de pensar a ação.

Na Educação Infantil da rede municipal de São Luís, as fragilidades e entraves podiam ser pontuados por várias perspectivas: na área pedagógica, nas questões infraestruturais, questões administrativo-financeiras e até nas relações interpessoais interinstitucionais.

Quando assumi, ainda tínhamos práticas centradas principalmente no processo de alfabetização das crianças, com professoras centralizadoras de todo o processo educativo; calendário com forte incidência das datas comemorativas; rotinas alienantes; ausência de uma Proposta Curricular; a desconstrução dos momentos de formação continuada e planejamento nas escolas; um péssimo instrumento de registro das atividades diárias das turmas de educação infantil; configuravam o cenário que exigia por profundas mudanças. Infelizmente até o final do período que permaneci gestora nada disso foi mudado, mesmo tendo empreendido esforços para fazê-las.

Sem contar com o desestímulo e descontentamento coletivo, fruto da falta de materiais didáticos e equipamentos eletrônicos; brinquedos; profissionais de serviços gerais para auxiliarem na limpeza e manutenção dos espaços escolares; ausência também de segurança nas escolas; de fardamento escolar e até um polêmico livro didático, se somava às reivindicações.

Os problemas oriundos da gestão das escolas eram inúmeros, da constante ausência de algumas diretoras nas instituições ao autoritarismo exacerbado de outras.  A falta de recursos financeiros pela inexistência dos Conselhos Escolares; a não-resposta dos setores administrativos quanto as demandas materiais e estruturais, a exemplo do abastecimento d’água, por furto ou defeito na rede hidráulica das instituições, era  necessário a constante solicitação de carro-pipa, que nem sempre era atendida em tempo, levando a paralisação das atividades das escolas. Ainda dentro das pautas negativas tinha-se: carência de professores/as; perda de matrículas; alagamento de escolas durante o período das chuvas.

Tudo isso, por vezes, se somava e batia nas portas da Superintendência da área de Educação Infantil, no qual eu, mais quinze profissionais tentávamos dar respostas, entre três auxiliares-administrativo; uma psicóloga e onze coordenadoras pedagógicas, dessas ultimas, 7 eram responsáveis pelo acompanhamento técnico-pedagógico das mais de setenta instituições. Ter conhecimento das demandas e não poder solucioná-las não causa só uma angústia individual, mas um desestímulo, em toda a equipe.

As demandas do setor da Educação Infantil somavam-se à gestão interna da Secretária Municipal de Educação de São Luis - SEMED, a dita política macro: gestão de diretores/as escolares; sistematização do censo, estatística e informatização das informações da rede; relação com as escolas comunitárias conveniadas; recuperação da política de formação continuada e da elaboração da Proposta Curricular da rede e do Plano Municipal de Educação, também faziam e fazem parte das atribuições quando se esta à frente da gestão municipal de educação, mesmo que seja apenas de uma etapa da educação básica, mas no contexto das relações de forças que eram travadas cotidianamente, as disputas de poder refletiam na burocratização e desencontro de ações entre os diferentes setores da Secretaria. Parecia que tudo precisava ser reconstruído a partir do nada, que as experiências exitosas de antes haviram sido todas esquecidas, tal como o desperdício da experiência apontado por Boaventura de Souza Santos (2000).

O excesso de problemas, por vezes, inibe o senso crítico, a sua potencialidade criadora e a capacidade resolutiva, a pressão política soma-se a psicológica, o auto-questionamento sobre o saber-fazer emerge de forma desestabilizadora. A única fonte de confiança nesse momento vem do trabalho coletivo, da capacidade de troca e do comprometimento ético com a verdade.

Na busca de seguir as minhas lealdades, — como nos cobrava a professora-pesquisadora e militante da área da Educação Infantil  Fúlvia Rosemberg sobre para quem voltávamos a atenção e defesa de nossos trabalhos —, mesmo em meio às adversidades procurei desenvolver algumas ações que julgava condizente às pautas políticas e pedagógicas que as pesquisas e a política nacional apresentam como conquistas que visam à qualidade da Educação Infantil.

Comungando da ideia de expansão de matrículas, de aumento de atendimentos em tempo integral, ao uso de recursos federais e a implementação da política nacional de Educação Infantil, deu-se boa parte do trabalho que realizamos. Proinfância, Brasil Carinhoso, Diretrizes em Ação e Formação docente no Curso de Especialização em Educação Infantil eram mais do que obrigação, eram a única possibilidade de aplicação e diálogo com meus objetos de estudo (meus saberes) e minha militância.

Foram meses dedicados ao trabalho de levantamento de dados e sistematização de informações de uma equipe interdisciplinar que envolveu engenheiro, arquitetos, advogados e várias pedagogas que se mobilizaram para a solicitação do maior número de creches possíveis do PROINFÂNCIA junto ao Plano de Ações Articuladas - PAR, via SIMEC. Confirmamos a demanda de 28 comunidades por instituições de Educação Infantil, que envolveu desde o geoprocessamento das áreas/territórios, à negociação de terrenos com as comunidades e até com a Universidade Federal do Maranhão. Sendo que dos 28 pedidos, 21 solicitações foram aprovadas, e até hoje nenhuma instituição construída.

Novas demandas oriundas do cadastro para recebimento dos recursos do Brasil Carinhoso foram outra frente de batalha, tanto na rede direta, como junto à rede Conveniada. O levantamento de um grande número de dados, que a cada ano se modifica, via “aperfeiçoamento” da política nacional, foi uma constante durante esse ano de gestão; para compra de fardamento, para distribuição de alimentação escolar, para compra de livros, dificilmente os dados de uma contagem podiam ser aproveitados para outra demanda. Hoje acredito que o carro-chefe desses primeiros meses foi o planejamento, isso fizemos bem! Mas a mim, sempre parecia insuficiente, pouco palpável em termos de retorno imediato, o que todos nós tanto almejávamos.

Destaco ainda, como caso ilustrativo dos debates, embates e disputas que permeavam as questões pedagógicas, - mas que tinham como pano de fundo as disputas políticas como ponto preponderante para as tomadas de decisões -, o exemplo em torno da compra ou não de livros didáticos para as crianças de 3 a 5 anos de idade. Eu como gestora, militante e pesquisadora da área, posicionei-me contra, - amparada tanto pelas pesquisas recentes na área (CORREA, 2012; NASCIMENTO, 2013) quanto pelos debates no Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil – MIEIB -, partindo para esclarecimento da minha equipe acerca do porquê da negativa. Contudo, mais uma vez fui vencida pelos interesses políticos, em vista da criação de uma Coordenação do livro didático na Educação Infantil, para contemplar as aspirações pessoais de uma familiar de um político importante da capital, mas também de financiadores de campanha.

Após muitos enfrentamentos políticos, a uma imobilidade de ação e um grande desgaste emocional os “gregos” pediram o “cavalo” de volta, “presente” que devolvi com muito gosto, mas não sem pesar. As familiaridades, os vínculos afetivos, a vontade de fazer, a potencialidade que pulsa daquele lugar que necessita de tantas mudanças, mostraram-me que os meus conhecimentos acerca da Educação Infantil, da Política Educacional ou mesmo da Sociologia da Infância não eram/são suficientes, as relações de poder os colocaram à prova.

Um das poucas coisas que valem a pena destacar como fruto da política integrada e do cumprimento do regime de colaboração nesse contexto foi, e continua sendo, a formação das professoras no curso de Especialização em Docência na Educação Infantil MEC/UFMA, incentivo e luta nossa tanto na Secretaria como na Universidade Federal. Essa conquista ninguém pode tirar das professoras e acreditamos que ela é um dos caminhos privilegiados em busca do ideal de qualidade.

Gostaria de dar destaque diferenciado à importância e a necessidade de reflexão sobre a implementação das Políticas Nacionais de Educação pelas redes municipais, pois me aparece  estar havendo um desperdício de esforços do Governo Federal no processo de elaboração das políticas quando estas não são implementas a contento. A cooperação prevista ao regime de colaboração não se efetiva, por vezes parece que o governo ao elaborar tais políticas e atribuir a implementação aos municípios se desresponsabiliza dos resultados. Os municípios buscam inúmeras justificativas e desculpas para o não cumprimento de suas responsabilidades, inclusive sua autonomia de gestão. A exemplo de São Luís, o que a Prefeitura faz com sua autonomia de gestão, além de se eximir?

Nesse constante processo reflexivo sobre o vivido, fui apresentada a duas autoras Pillotto e Voigt (2015), que abordam  um aspecto teórico diferenciado ao exercício da gestão educacional, a importância do “conhecimento sensível”. No contexto brasileiro, em que as políticas são, em sua maioria, pensadas em nível macro para uma realidade tão desigual e diversificada, elementos como: emoção, intuição, percepção, potencial criativo, flexibilidade, empatia, equilíbrio emocional e dinamicidade, devem  misturarem-se e convergirem para a construção de um clima de solidariedade, respeito e cooperação, em que o compromisso ativo e o entusiasmo do/a  gestor/a, promovam além da identificação, o esforço coletivo e a lealdade, preceitos para muitos prefeitos, secretário/as  e gestores/as de políticas públicas.

Esse eu do intelectual acadêmico, tal como prescreve o sociólogo norte-americano Wrigth Mills (2009), incorpora no si sua ideologia, modifica-se e vive aquilo que acredita e defende, por isso é inteiro e singular. “O conhecimento é uma escolha tanto de um modo de vida quanto de uma carreira; quer o saiba ou não, o trabalhador intelectual forma-se a si próprio à medida que trabalha para o aperfeiçoamento de seu ofício (p.22)”.

INCONCLUSÕES

A experiência de ter sido Superintendente de Educação Infantil de São Luís foi algo que deslocou-me do meu eixo de percepção, me levando a ponderar e refletir o exercício da gestão, das relações de poder e do fazer educacional por uma ótica até então desconhecida. O sentido de experiência que apresento, descrevo e defendo não é o de algo que conquistei para o meu currículo, como um acúmulo, algo que se fez bem feito e se repete como êxito, talvez ao contrário, a ideia é o da não repetição, ainda mais dos feitos e o não-feitos nessas condições de gestão. Trata-se de algo da ordem do acontecimento, de outra forma de estar no mundo, que nos toca profundamente e nos modifica.

A finalidade de narrar não foi “apenas” livrar-se de alguns pesos, com desculpas e justificativas, mas buscar cumplicidades que ajudem a pensar caminhos possíveis, apesar das dificuldades, enfrentamentos e medidas que podem e devem ser tomadas para que a implementação da política nacional de educação infantil em âmbito municipal, garanta um educação da pequena infância de qualidade, com espaços dignos, com interações e brincadeiras como eixos articuladores do currículo e as crianças no centro do projeto pedagógico das instituições e de seu processo educativo.

Não é redundante ressaltar que a educação das crianças pequenas em espaços públicos e coletivos continua sendo uma construção social e política, edificada cotidianamente, que precisa ser realizada nos diferentes espaços, âmbitos e, por diferentes agentes, nos quais essa pesquisadora e seus saberes/fazeres pretendem se incluir.

E se eu fosse eu daria tudo o que é meu, e confiaria o futuro ao futuro.
(Clarice Lispector, 1984)

REFERÊNCIAS

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