A RELAÇÃO PÚBLICO-PRIVADA NA EDUCAÇÃO POR MEIO DO “PROJETO TRILHAS/NATURA”
Resumo: Este artigo compõe uma pesquisa de doutorado. O objetivo é analisar a implementação do Projeto Trilhas/Natura no município de São Miguel do Guamá/PA, para explicar a relação público-privada e suas exigências e consequências para o planejamento e execução das políticas públicas educacionais locais. A perspectiva histórico-dialética baliza esta pesquisa. Será utilizada a revisão bibliográfica e a análise documental. Compreende-se que o Projeto Trilhas no contexto de descentralização do PDE/MEC, via convocação dos empresários para assumir o planejamento e o financiamento dos projetos e programas destinados à educação pública.
Palavras-chave: políticas públicas educacionais; projeto trilhas/natura; relação público-privada.
INTRODUÇÃO
Esta proposta de pesquisa apresenta como objeto de investigação O “Projeto Trilhas/Natura” compreendido a priori como uma forma de implementação da relação público-privada estabelecida no contexto do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE). O PDE é uma política pública educacional pensada pelo Ministério da Educação (MEC) em articulação com um grupo de empresários que incorporam o Compromisso Todos pela Educação (CTE). Justifica-se o interesse pelo tema porque as políticas públicas educacionais no Brasil, conforme Saviani (2007), historicamente, foram articuladas por movimento de educadores e, no caso do PDE, o MEC ao formulá-lo o fez em interlocução com o empresariado.
O PDE e sua efetivação por meio do Plano de Ações Articuladas (PAR) no município de São Miguel do Guamá/PA foi tema de pesquisa de Dissertação de Mestrado da autora, concluída em 2012, a qual elucidou que o PDE promove a articulação de colaboração no município de São Miguel do Guamá por meio do PAR, segundo as perspectivas do MEC. Contudo, esse modelo de colaboração, foi imposto ao município e não permitiu a participação voluntária, na medida em que condicionou o repasse financeiro de projetos e programas a esse processo de adesão, portanto, mediante a ferramenta de planejamento proposta pelo PAR, o município se tornou dependente de uma plataforma única que o MEC utiliza para diagnosticar e atender diferentes municípios, o que implica na falta de autonomia por parte desse ente federado.
O PDE se configura no contexto da descentralização das políticas públicas educacionais. Este processo de descentralização na educação, conforme Oliveira (2002) e Lima (2000) se intensificou a partir da década de 90 por meio da municipalização do Ensino Fundamental, entretanto, esse processo foi um dos efeitos da descentralização às avessas, cujas críticas apontam na direção de uma forma de (re) centralização ou, no máximo, uma (des) concentração A este respeito Lima (2001) afirma que a desconcentração pressupõe a descentralização das ações às outras esferas de gestão das políticas que, no caso da educação, se dá no âmbito dos sistemas regionais, locais e unidades de ensino. Entretanto, as decisões permanecem centralizadas por meio de uma espécie de “controle remoto” das políticas, embora a descentralização seja difundida como um poderoso mecanismo para corrigir as desigualdades educacionais, por meio da otimização dos gastos públicos e dos postulados democráticos que lhes são recorrentemente reafirmados, percebe-se que eles se tornaram pela lógica instituída, justificativas de transferências de competências da esfera central de poder para as locais, respaldadas por noções neoliberais.
Esta pesquisa de doutorado é uma possibilidade de retomar a discussão sobre o PDE no contexto da descentralização das políticas públicas educacionais, tendo em vista que há uma intervenção de empresários ou grupos empresarias, aqui representados pelo Compromisso Todos pela Educação, para assumir o planejamento e o financiamento dos projetos e programas destinados à educação pública, como, por exemplo, o “Projeto Trilhas”.
Nesta linha de raciocínio, Zauli (2003) aponta aspectos importantes para a compreensão dessa dinâmica descentralizadora da reforma do Estado no Brasil, ao longo dos anos de 1990, um deles diz respeito a certo grau das virtudes da descentralização dos processos decisórios e de sua identificação com a perspectiva de construção de um sistema político democrático. Em decorrência da postulação de uma maior eficiência e eficácia da gestão descentralizada de políticas públicas, as reformas descentralizadoras seriam benéficas não somente aos diferentes públicos-alvo das diversas modalidades de intervenção estatal, mas também ao conjunto da sociedade.
Neste cenário, pode-se observar uma descentralização para o mercado, ou seja, de responsabilização social, uma vez que os sistemas ou unidades terão que se manter a partir de uma gerência que os preservem como tais, pois diante de poucos recursos é preciso utilizar as melhores estratégias para o melhor aproveitamento. Neste sentido, a esfera pública é convocada a se mercantilizar. Assim, uma descentralização para o mercado envolve mecanismos complexos:
[...] não se realiza, prioritariamente, pela transferência dos serviços públicos para o setor privado, mas por um conjunto de reformas que buscam aproximar as “decisões do não mercado” (as decisões públicas) das “decisões de mercado”, criando um quase mercado na educação (MARTINS, 2002, p.68).
A descentralização para o mercado, de acordo com Lima (2001) é feita por duas vias que tendem a consolidar o espaço de um quase mercado na educação, uma delas se faz por meio de transferências de toda carga de responsabilidade para o mercado do controle e regulação educacional e a outra pretende realizar a descentralização da responsabilidade da oferta e universalização do serviço educativo para outros setores, entendendo que tais tarefas não são exclusividade do Estado.
Nesse sentido, corrobora-se com Saviani (2014) à medida que há necessidade de um enfrentamento aos grandes grupos empresariais, pois além de atuar no ensino têm ramificações nas forças dominantes da economia e também na própria esfera pública. Dessa forma, torna-se difícil defender a educação pública de qualidade, uma vez que, as forças do privado traduzidas por meio dos mecanismos de mercado vêm “contaminando” em grande medida a esfera pública. É desta forma que o movimento dos empresários ocupa espaço nas redes públicas, como bem ilustram as ações do Movimento “Todos pela Educação”.
Não importa que estejamos tratando da descentralização de funções no âmbito da burocracia central, da transferência de responsabilidades para estados e municípios, da execução de políticas públicas por entidades não governamentais do “Terceiro Setor”, da privatização do fornecimento de bens e serviços públicos, ou de uma combinação qualquer destas diferentes estratégias. Cabe ressaltar que, no contexto de um processo de reforma do Estado, em que estão presentes diferentes formas de descentralização, é importante o alcance de níveis superiores de formulação e implementação de políticas públicas, vale dizer de governance por parte do poder central (ZAULI, 2003, p.47).
Conforme Martins (2012), entende-se que as instituições governamentais constitutivas do Estado, precisam recuperar sua capacidade de pensar e implementar as políticas públicas. Neste sentido, o PDE, quando pensado e implementado pelo MEC em parceria com os empresários, está articulado a uma complexa forma de pensar e conduzir as políticas públicas educacionais, pois se insere no contexto de uma nova relação entre as esferas governamentais e sociedade civil organizada, onde está implícita a descentralização na implementação dessas políticas, o que por um lado, pode se configurar como uma forma do Estado se desobrigar de sua função de prover as políticas públicas e por outro lado, pode se constituir em mecanismo do Estado para retomar sua capacidade de governar.
No contexto dessa relação público-privada estabelecida pelo Compromisso todos pela Educação, várias “parcerias” são feitas entre os órgãos governamentais, como, por exemplo, entre as secretarias municipais de educação e instituições privadas.
Neste estudo, faz-se uma análise especificamente acerca do Projeto Trilhas de iniciativa do Instituto Natura, implantado na rede de ensino do município de São Miguel do Guamá/PA em escolas localizadas do campo. Eis aí a relação entre o público e o privado que será investigado.
O CONTEXTO SÓCIO HISTÓRICO DE CONSTRUÇÃO DA POLÍTICA PÚBLICA EDUCACIONAL: O PROBLEMA
De acordo com Abreu (2010), o lançamento do PDE, em abril de 2007, marcou o início do segundo mandato do Governo Lula (2007-2010) no campo da educação. O Plano Para explicitar os conceitos de Plano, Projeto e Programa ver em Vasconcellos (2006)., documento de organização do Poder Executivo, estava estruturado inicialmente em trinta ações de porte variados e voltadas para todos os níveis e modalidades da educação Ver em SAVIANI, Dermeval. O Plano de Desenvolvimento da Educação: Análise do Projeto do MEC. Educação e sociedade”, 2007. vol.28, nº 100, pp.1231-1255. Esse Plano norteou toda a ação do MEC durante o Governo Lula e teve sua continuidade no Governo Dilma (2011-2014). De acordo com Saviani (2009), o PDE, apresentado ao país em 15 de março de 2007, foi lançado oficialmente em, 24 de abril, juntamente à promulgação do Decreto n. 6.094, dispondo sobre o Plano de Metas Compromisso de Todos pela Educação (uma das ações do PDE), considerado como carro-chefe do PDE. Durante a execução do plano, as ações ampliaram-se. O PDE, na realidade, se apresenta como um grande “guarda-chuva” que abriga praticamente todos os programas previstos pelo MEC (SAVIANI, 2009).
Conforme Krawczyk (2008), o PDE é um plano plurianual 2008/2011 A obrigatoriedade de elaboração de um plano plurianual de quatro anos (inclui o primeiro ano de mandato do sucessor para evitar descontinuidades) está estipulada na Constituição de 1988 para todas as pastas do governo federal (KRAWCZYK, 2008). que reúne ações que cobrem todas as áreas de atuação do MEC e incidem sobre uma série de aspectos nos diferentes níveis de ensino, visando o objetivo comum de melhorar a qualidade da educação. Quase todas essas ações já vinham sendo desenvolvidas, embora haja algumas novas, inspiradas em ações implementadas por organizações não governamentais (ONGs) em escolas públicas. Depreende-se, a partir algumas leituras Saviani (2007; 2009); Gadotti (2008); Adrião e Garcia (2008); Abreu (2010); Krawczyk (2008); Brasil-MEC. (2007)., que o PDE é definido como um programa de Governo e não uma política de Estado A este respeito ver em REZENDE, Flávio da Cunha. Por que falham as Reformas Administrativas? Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004, p. 47-66.. Conforme Valente (2008, p.10), “[...] as políticas e a Gestão da Educação no Brasil, materializadas em ações políticas e programas, são marcadas de um modo geral pelas rupturas, caracterizando políticas de governo e não de Estado”.
Sobre as bases e consistência do PDE, Saviani (2007) afirma que, o MEC ao formular o PDE o fez em interlocução com o empresariado e não com o Movimento de Educadores. Neste sentido, o PDE teria assumido a agenda do “Compromisso todos pela educação”. Este movimento, por sua vez, apresentou-se como iniciativa da sociedade civil, conclamando a participação de todos os setores sociais, mas para o autor esse movimento se constituiu de fato, como um grande aglomerado de grupos empresariais.
A este respeito, Krawczyk (2008) afirma que o MEC teve como parceiro privilegiado para as metas que pretendia atingir até 2011 um grupo empresarial que, em uma atitude bastante propositiva, havia lançado, em outubro de 2006, o Movimento Compromisso Todos pela Educação, nome pelo qual foi batizado também o plano de metas promulgado pelo Governo Federal.
Saviani (2009) alerta para o fato que entre os empresários existe a tendência dominante de considerar a educação como uma questão de boa vontade e de filantropia, que pode ser resolvida pelo voluntariado e, que o interesse desse grupo é ajustar os processos formativos às demandas de mão de obras e aos perfis de consumidores postos pelas empresas. Portanto, a lógica que embasa a proposta do Compromisso Todos pela Educação pode ser traduzida como uma espécie de “Pedagogia dos resultados”: O governo equipa-se com instrumentos de avaliação dos produtos, forçando com isso, que o processo se ajuste as demandas das empresas.
Neste sentido, corroborando com Saviani (2009) é, pois, uma lógica de mercado que se guia pelos mecanismos das “pedagogias das competências A Pedagogia das Competências amplia a ideia de conteúdos formativos e incorpora explicitamente elementos do saber-ser e do saber-fazer, remetendo-se, aliás, mais diretamente a esses saberes relacionados às habilidades de trabalho e aos modos específicos de se colocar diante do mesmo. A ideia de conteúdos ganha um sentido largo, constituindo se não somente dos conhecimentos teóricos formalizados nas matérias e disciplinas, mas de atitudes, comportamentos, hábitos, posturas, elementos que possam compor uma capacidade de trabalho, ou seja, aquilo que Schwartz (1990) definiu como os ingredientes da competência e que remetem a um saber, a um saber-ser e a um saber-fazer vinculados a uma realidade específica. Contemplam, ainda, além de saberes e destrezas, aspectos culturais e sociais (ARAUJO, 2001, p.60-61). ” e da “qualidade total O conceito de “qualidade total” está ligado à reconversão produtiva pelo taylorismo ao introduzir, em lugar da produção em série e em grande escala visando a atender a necessidade de consumo de massa, produção em pequena escala dirigida ao atendimento de determinado nichos de mercados altamente exigentes. Nesse quadro, o conceito de “qualidade total” expressa-se em dois vetores, um externo e outro interno. Pelo primeiro vetor essa expressão pode ser traduzida na frase “satisfação total do cliente”. Pelo segundo vetor aplica-se uma característica inerente ao modelo toyotistas que o diferencia do fordismo: capturar, para o capital, a subjetividade dos trabalhadores. Nessa dimensão, “qualidade total” significa conduzir os trabalhadores a “vestir a camisa da empresa”. A busca da qualidade implica, então a exacerbação da competição entre os trabalhadores que se empenham pessoalmente no objetivo de atingir o grau máximo de eficiência e produtividade na empresa. (SAVIANI, 2009, p.430-440) ”. E esta lógica, assim como nas empresas, visa obter a satisfação dos clientes e interpreta que, nas escolas, aqueles que ensinam são prestadores de serviço; os que aprendem são clientes e a educação é um produto que pode ser produzido com qualidade variável.
Observa-se que na pesquisa de mestrado da autora, constatou que por carência de condições técnicas e financeiras, os municípios aceitam as políticas públicas formuladas pelo MEC e, portanto, não refletem sobre os reflexos, como por exemplo, a perda de autonomia que subjazem as políticas do MEC, especialmente no caso do PDE. Desta forma, os municípios perdem suas características peculiares quanto a metas e resultados para os seus Sistemas de Ensino.
Portanto, nesta pesquisa de doutorado, propõe-se analisar os desdobramentos dessas políticas educacionais providenciadas pelo MEC, via PDE no contexto do Compromisso Todos pela Educação. Logo, as parcerias entre o público e o privado são fechadas nas diferentes instâncias de governo (federal, estadual ou municipal) e nos diferentes níveis de ensino (infantil, fundamental, médio e superior). Assim sendo, compreende-se que estas parcerias sustentam na dinâmica do capital social.
Conforme Pires (2005), o capital social é uma abordagem econômica que serve de fundamento para a política educacional. Relaciona o desempenho institucional ao desenvolvimento econômico principalmente regional.
Uma definição clara do capital social se encontra nos documentos do Banco Mundial. A instituição dá a ênfase a esse tipo de capital como instrumento de desenvolvimento econômico. É adotado como critério para assegurar o bom desempenho aos projetos por eles financiados. Devido à grande influência do Banco Mundial advindas das relações com governos e instituições de desenvolvimento regionais e por sua capacidade internacional de disseminar pesquisas, o capital social na década de 1990 se tornou palavra corrente entre formuladores de políticas, organizações não governamentais e universidades.
Existem diferentes acepções complementares do capital social:
Enquanto para alguns ele se refere a normas e sistemas histórica e coletivamente elaborados, resultando em maior confiança entre atores que o urdiram e os utilizam em suas relações quotidianas, outros o definem como capacidade de cooperar, tolerar, confiar, gerir positivamente conflitos, sendo, portanto, um traço de personalidade. Há ainda, as concepções de capital social como (laços fortes) que envolvem os indivíduos e grupos, em uma estrutura social, fazendo-os, em conjunto, mais ou menos aptos a promover a mútua melhoria em suas condições de desenvolvimento econômico e social (PIRES 2005, p. 87).
O Instituto Natura em seus projetos voltados para educação, parte dessa concepção de capital social como laços fortes que agrega indivíduos e grupos que em conjunto estariam aptos a promover a mútua melhoria em suas condições de desenvolvimento econômico e social. O Relatório Anual do Instituto Natura (2014, p.4;grifo nosso) revela que:
Em 2014, a Natura renovou seu compromisso coletivo com o futuro lançando a Visão de Sustentabilidade 2050, que visa expandir sua geração de valor e provocar impacto econômico, social e ambiental positivo no mundo. A empresa obteve também a certificação de Empresa B, que identifica com parâmetros claros as companhias comprometidas com a construção de um mundo melhor, aliando lucro à geração de bem-estar social e ambiental. Nesse contexto, o Instituto Natura tem um importante papel de participar ativamente do debate para a construção de políticas públicas, apoiando a melhoria da qualidade da educação como um caminho fundamental de transformação da realidade brasileira, gerando impacto positivo e contribuindo para o desenvolvimento sustentável da sociedade.
Discorda-se de tal visão, pois o capital social como defendido pelo autor, pode ser uma manobra do capital para a desresponsabilização do Estado como provedor de políticas sociais e de responsabilização da sociedade civil. Desta forma, reitera-se que toda política educacional que, de algum modo procure envolver a comunidade em sua formulação, gestão e implementação, estará fazendo opção pelo capital social como uma de suas diretivas, mesmo que indiretamente. Mas importante ainda, é notar que a educação é uma das áreas de atuação dos atores sociais (como o empresariado) que melhores e mais rápidas oportunidades cria para a disseminação de ideários e comportamentos, tanto que reformadores sociais com frequência recorrem a ela como instrumento de mudança.
Montaño (2014) faz uma abordagem dentro do materialismo histórico dialético, permitindo ver as entrelinhas das manobras do capital para consolidar o seu modo de produção e como este se perpetua na oferta das políticas sociais, especialmente as educacionais, onde se observa uma retirada do Estado e a interferência do chamado “terceiro setor”.
Montaño (2014) explicita que o termo terceiro setor de um lado, impede uma visão de totalidade e, portanto, deita por terra a perspectiva de transformação social; e, de outro, determina sua clara funcionalidade ao projeto hegemônico de reestruturação do capital que, orientado nos postulados neoliberais, mistifica a sociedade civil, desarticula e apazigua as lutas sociais, além de propiciar maior aceitação à reforma do Estado. Desta forma, o capital se utilizando do pretexto de crise e da escassez, exime o Estado de sua função no que tange a responsabilidade social e assim abre espaço para expansão dos serviços comerciais ou desenvolvidos num suposto “terceiro setor”.
Montaño (2014) conduz ao entendimento da funcionalidade do terceiro setor, no sentido de que este atende a lógica do capital de desresponsabilizar o Estado. Desta forma, entende-se que a relação público-privada no Sistema Público de Ensino, resguarda princípios neoliberais, pois há uma retirada do direito dos cidadãos em ter serviço público de qualidade. E tal responsabilidade financeira sendo, supostamente repassada para o terceiro setor, mas na verdade o que se vê é o contrário, a iniciativa privada nada investe, o que se tem é dinheiro público financiando o modelo de educação em prol do capital e sendo, muitas vezes repassado para este setor privado.
A partir do entendimento que a Teoria do Capital Humano e em seu seio a Teoria do Capital Social fundamentam as políticas sociais, especialmente as políticas públicas educacionais, no bojo das quais se observa a desresponsabilizarão do Estado e consequentemente a prevalência de um “terceiro setor”, sendo responsabilizado em prover, executar e monitorar programas, com um forte apelo de grupos empresariais para tais funções, ratifica-se que o objeto desse estudo está envolto nessa dinâmica.
Destarte, vale ressaltar que uma das indagações da pesquisa de mestrado da autora visava compreender e analisar como o PDE se efetivando no município de São Miguel do Guamá/PA, por meio do PAR, de modo articular o regime de colaboração para a promoção de políticas públicas educacionais naquele município. Agora, nesta pesquisa de doutorado, tem-se como questão central o seguinte: Como a relação público-privada na educação é implementada na Rede Municipal de Ensino em São Miguel do Guamá a partir do “Projeto Trilhas/Natura”?. Assim, objetiva-se analisar a implementação da relação público-privada na educação na Rede Municipal de Ensino de São Miguel do Guamá/PA, a partir do “Projeto Trilhas/Natura” e suas exigências e consequências para o planejamento e execução das políticas públicas educacionais locais.
O CAMINHO INVESTIGATIVO: A BASE TEÓRICO-METODOLÓGICA
Diante de todo o explicitado que, para conhecer os mais variados elementos que envolvem a pesquisa, é necessário um método, um caminho que permita compreender o fenômeno educativo. Para isso, a perspectiva histórico-dialética baliza essa pesquisa, uma vez que concordando com Kosik (2010, p. 39) quando afirma que a
dialética não é o método da redução: é o método da reprodução espiritual e intelectual da realidade é o método do desenvolvimento e da explicitação dos fenômenos culturais partindo da atividade prática objetiva do homem histórico.
Esta pesquisa se configura como uma tentativa de explicitar o PDE, partindo do pressuposto que a idealização e implementação desta política pública se configura como resultante da ação da esfera governamental, entendida aqui na figura do MEC em articulação com a esfera privada, aqui representada por um grupo de empresários representados pelo Todos pela Educação e seu desdobramento no Projeto Trilhas/Natura.
Dito isto, apresenta-se o percurso teórico-metodológico, uma vez que, de acordo com Gohn (2005), “o caráter crítico de uma pesquisa é dado pelo método utilizado, do ponto de vista do paradigma referencial teórico que o alicerça” (p. 262).
Compreender como a lógica privatista da educação, subjacente ao Todos pela Educação via Projeto Trilhas/Natura, vem influenciando a concepção e implementação do PDE, bem como as reais exigências e consequências dessa lógica para o sistema de ensino público municipal pode permitir ao “pensamento comum”, ao mundo da aparência dar lugar à realidade, ao pensamento dialético que se configura na unidade entre o fenômeno e a essência, “caminhando da aparência à essência, da parte ao todo, do singular ao universal, isso tudo em conjunto, levando em conta o modo de constituição, a maneira pela qual se constitui a realidade” (IANNI, 2011, p. 411). Logo, o princípio metodológico da investigação dialética orientará esta pesquisa, uma vez que “[...] cada fenômeno pode ser compreendido como momento do todo. Um fenômeno social é um fato histórico na medida em que é examinado como momento de um determinado todo” (KOSIK, 2010, p. 49).
A relação entre o público e o privado é um fato histórico, uma vez que alianças, movimentos e organizações em defesa da educação pública não representam uma novidade no cenário brasileiro. O destaque do momento atual reside no fato de que há uma aparente formação de coalizões, para designar a junção de “atores públicos e privados, provenientes de diversas instituições e níveis governamentais, que dividem um conjunto de crenças e valores comuns e que buscam manipular as regras, orçamentos e recursos humanos governamentais visando a atingir seus objetivos no longo prazo” (SIMIELLI 2013, p. 568).
Portanto, a partir dos fundamentos de Peroni (2012) afirma-se que o pressuposto teórico-metodológico que embasa a pesquisa é o de que a política educacional é parte da materialização do Estado, que, por sua vez, é parte do movimento histórico em um período particular Particular, aqui, na concepção de Lukács (1978). do capitalismo. Portanto, o Estado não é entendido como uma abstração; é construído por sujeitos individuais e coletivos Sujeitos individuais e coletivos, na concepção de Thompson (1981). em um processo histórico de correlação de forças.
O lócus da pesquisa é o Município de São Miguel do Guamá/PA, os sujeitos da pesquisa serão: Secretário Municipal de educação, Diretor de Ensino Municipal, Coordenador Municipal do Projeto Natura/Trilhas, Coordenação do Conselho Municipal de Educação, Coordenação do Sindicato dos Trabalhadores em Educação (SINTEPP). O caminho metodológico proposto está ancorado na pesquisa de campo. Optou-se pela pesquisa de campo porque se considera que tanto o pesquisador como o pesquisado têm importância peculiar e o “objeto/fonte é abordado em seu meio ambiente próprio. A coleta de dados é feita nas condições naturais em que os fenômenos ocorrem” (SEVERINO, 2007, p. 123).
A pesquisa documental e a revisão bibliográfica ocorrerão concomitantemente e permitirão estabelecer um diálogo entre a literatura produzida sobre a Gestão e Planejamento da Política Pública Educacional e os sujeitos pesquisados.
Por fim, esta pesquisa visa ampliar a análise sobre o PDE iniciada no mestrado, mas agora focalizando no fenômeno da implementação da relação entre o público e o privado na educação por meio do Projeto Trilhas/Natura.
CONSIDERAÇÕES DE PERCURSO
Na pesquisa de mestrado direcionou-se o foco de análise para o Plano de Ações Articuladas (PAR) que é caracterizado como uma ferramenta de planejamento por meio da qual são fornecidos instrumentos para que o município se torne apto a receber as ações/programas do PDE. Em linhas gerais, pode-se inferir que o PAR representa a materialização do PDE no município. Outra questão que permeia o tema é o regime de colaboração, enquanto relação de colaboração entre os entes federados, compreendido como elemento de promoção de políticas públicas.
Esta pesquisa de doutorado é uma possibilidade de retomar a discussão sobre o PDE no contexto da descentralização das políticas públicas educacionais, tendo em vista que há uma intervenção de empresários ou grupos empresarias, aqui representados pelo Compromisso Todos pela Educação, para assumir o planejamento e o financiamento dos projetos e programas destinados à educação pública, como, por exemplo, o “Projeto Trilhas”.
Compreender e analisar o comportamento do município de São Miguel do Guamá/PA, diante dos pressupostos da lógica privatista da educação suscita interesse particular da autora, uma vez que, após a conclusão do mestrado atuou na direção de ensino na Secretaria Municipal e assim pode perceber as exigências de mudança na postura do município em direção à gestão das ações a serem desenvolvidas no cenário educacional local para atender a lógica subjacente ao Todos pela Educação.
Recentemente, em 2015, em visita à Secretaria Municipal de Educação (SEMED) de São Miguel do Guamá/PA com a intenção de esmiuçar como vem ocorrendo essa relação entre o público e privado na rede de ensino municipal, foi possível identificar a informação de que haviam “fechado parceria” com o Instituo Natura para a implantação do “Projeto Trilhas” e que o mesmo seria implantado nas escolas do campo do município de São Miguel. Eis aí uma novidade na implantação e implementação desse projeto, que até então conhecia-se que este projeto era realizado unicamente nas escolas do meio urbano.
Igualmente, é relevante estudar a temática em questão, pois é importante para a academia conhecer a região com suas particularidades, bem como as estratégias governamentais que lá são implementadas. Assim, esta pesquisa iniciada a partir do PDE e que agora enfatiza a relação publica-privada na educação a partir do “Projeto Trilhas/Natura”, continua a ser oportuna para ampliar conhecimentos teórico-metodológicos, bem como para produzir conhecimentos científicos, os quais poderão contribuir com outras pesquisas que se ocuparem na compreensão da inserção da lógica empresarial na realidade do sistema educacional municipal.
Outrossim, cabe também dizer da importância social deste estudo, pelo fato de haver poucas pesquisas em nível nacional que retratem a relação entre público e privado estabelecida por meio do Plano de Desenvolvimento da Educação, especialmente a partir da análise o “Projeto Trilhas/Natura”. Igualmente, não se encontrou pesquisas que evidenciem a temática nos municípios do Estado do Pará, especificamente no município de São Miguel do Guamá, uma vez que a esfera municipal é concebida como lugar “por excelência” de concretização dessas políticas. Espera-se que a pesquisa contribua para a ampliação das discussões e do conhecimento nessa área, assim como aprofundar os referenciais para o desenvolvimento profissional e pessoal da autora.
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